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Nacional por negação: ensaio e “crítica independente” no último Roberto Schwarz

National for denial: essay and “independent criticism” in the last Roberto Schwarz

RESUMO

O objetivo do artigo é apresentar e analisar a reflexão crítica de Roberto Schwarz sobre os impasses do processo de formação nacional, em particular o modo como esta se apresenta em alguns dos seus ensaios publicados nas últimas três décadas, a partir da virada para os anos 1990. À época, em meio às transformações pelas quais passavam o Brasil e o mundo, Schwarz radicalizou e ampliou o escopo da negatividade já presente nas suas reflexões precedentes, contrapondo-se às visões “positivas” da questão nacional, inscritas no horizonte da modernização capitalista. A hipótese central é a de que essa “negatividade periférica” pode ser apreendida por meio da compreensão do modelo de crítica (ensaística) cultivado pelo “último” Schwarz, modelo que define a sua posição singular no cenário intelectual brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE
Roberto Schwarz; crítica; ensaio; negatividade; periferia

ABSTRACT

The aim of this paper is to present and analyze Roberto Schwarz’s critical reflection about the impasses of the national formation process, especially the way it presents itself in some of his essays published in the last three decades, since the turn to the 1990s. At the time, in face of the transformations that Brazil and the world were undergoing, Schwarz radicalized and broadened the scope of negativity already present in his previous reflections, as opposed to the “positive” views of the national question, inscribed on the horizon of capitalist modernization. The central hypothesis is that this “peripheral negativity” can be seen through the understanding of the (essayistic) critique model cultivated by the “last” Schwarz, a model that defines his unique position in the Brazilian intellectual scenario.

KEYWORDS
Roberto Schwarz; criticism; essay; negativity; periphery

O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal.

(Walter Benjamin, “O caráter destrutivo”, 2000b_____. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 2000b., p. 237).

No cruzamento dos caminhos

Roberto Schwarz não é daqueles intelectuais a quem se define com facilidade. Como Walter Benjamin, uma dentre as suas várias fontes de inspiração, ou Michael Löwy, seu velho amigo benjaminiano, Schwarz sempre transitou pelas bifurcações intelectuais e políticas, resistindo aos enquadramentos confortantes. Tal como o “caráter destrutivo” descrito por Benjamin (2000b, p. 237)_____. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 2000b., o crítico “está sempre na encruzilhada”: judeu austríaco de origem, tornou-se brasileiro, de fato e não apenas de direito, somente no exílio francês, já depois dos 30 anos de idade; sociólogo de formação, fez da crítica literária o núcleo de sua inserção intelectual; marxista num país da periferia do capitalismo, rejeitou desde cedo os esquemas modernizadores nos quais muitos dessa tradição se deixaram embarcar2 2 Sobre as trajetórias cruzadas de Roberto Schwarz e Michael Löwy, cf. Querido (2019a). M. Löwy (1989) se utilizou do aforismo benjaminiano sobre “o caráter destrutivo” para definir o próprio Benjamin como alguém que se encontra no “cruzamento dos caminhos”. Löwy combina essa designação com a definição adorniana de Benjamin como estando “distante de todas as correntes”. .

É da confluência dessas encruzilhadas que decorre a singularidade de Roberto Schwarz na vida intelectual brasileira da segunda metade do século XX, singularidade que se condensa, no plano das ideias, em seu modo de abordagem da problemática da nação periférica, tomando-a em chave negativa, ou seja, antes como problema a ser decifrado do que como horizonte positivo a ser alcançado. Schwarz se distanciou, assim, tanto da aposta na modernização como caminho para a efetiva formação nacional, acalentada notadamente no período anterior ao golpe de 1964, quanto do puro e simples abandono da problemática nacional-periférica, como se a mera referência à questão já levasse a um nacionalismo teórico e político – é o que se verifica, por exemplo, no acerto de contas dos intelectuais paulistas com o nacional-desenvolvimentismo nos anos 1970 e 19803 3 Cf., para ficar apenas em dois exemplos, Franco (1978) e Chauí (1984). .

Da década de 1960 aos dias que correm, Roberto Schwarz consolidou-se, portanto, como expoente brasileiro de um modelo de crítica que, mesmo oriundo da dialética negativa adorniana, não deixou de ser modulado pela especificidade da sociedade criticamente referenciada. É dessa tensão entre modelo teórico e realidade “objetiva” que resulta o que poderíamos chamar de negatividade periférica, cuja densidade vai aumentando simultaneamente ao declínio do horizonte de expectativas fundado na possibilidade de uma resolução integradora do problema nacional por dentro do concerto capitalista das nações. Se já anos 1970, quando o desenvolvimento nacional se torna eixo programático da própria ditadura militar, esse espírito do tempo sofre o seu primeiro tropeço, é sobretudo na década de 1980, e ainda mais na de 1990, que o tombo será consumado. Na trajetória de Schwarz, esse horizonte nebuloso começa a ser assimilado no final dos anos 1980: Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo, sua obra magna publicada em 1990, pode ser lida como a primeira expressão da radicalização dessa negatividade periférica.

O objetivo deste artigo é justamente analisar a forma como tal reflexão crítica sobre os impasses do processo de formação nacional se apresenta nos ensaios mais recentes do crítico austro-brasileiro, redigidos a partir da virada para os anos 1990, ensaios que retomam o legado negativo-machadiano, por assim dizer, mas agora num contexto marcado pelo que ele entenderia – na linha de Robert Kurz – como “colapso” das estratégias terceiro-mundistas de modernização. Busca-se notadamente apreender o modelo de crítica (ensaística) que ampara a reflexão schwarziana, modelo que define a posição singular do autor de origem austríaca no cenário intelectual brasileiro.

Entre Machado, Adorno e Kurz: impasses da modernidade periférica

Um dos (poucos) alunos convocados a participar do chamado “Seminário d’O capital” (1958-1964), grupo de jovens professores interessados na leitura exegética, cerrada, da obra máxima de Karl Marx (RODRIGUES, 2011RODRIGUES, L. S. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-78). Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.), Roberto Schwarz – então estudante de Ciências Sociais na USP da Maria Antônia – não demoraria a se demarcar de seus pares: indisposto com a sociologia à la Florestan Fernandes, já antes do Seminário havia decidido migrar para a teoria literária, sob a órbita de Antonio Candido. Além das evidentes consequências institucionais – depois de fazer o mestrado nos EUA, atuaria como professor assistente na equipe de Candido na USP –, a escolha teria implicações não menos decisivas no plano teórico, na medida em que lhe abriria o leque para referências que não estavam no horizonte dos sociólogos, historiadores e filósofos do “Seminário d’O capital”. Uma figura como Adorno, por exemplo, com quem Schwarz na época já flertava – tanto que cogitou com ele fazer o mestrado na Alemanha –, passava longe dos interesses dos “seminaristas” em matéria de marxismo, limitados a Lukács (2002)LUKÁCS, G. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2002., de História e consciência de classe, e a Sartre (2002)SARTRE, J. P. Crítica da Razão Dialética. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro RJ: Ed. DP&A editora, 2002., o da Crítica à razão dialética4 4 Cf. Querido (2019), artigo no qual sustento a hipótese de que a singularidade da visão schwarziana da sociedade brasileira decorre em grande medida dessa transição precoce das ciências sociais para a crítica literária/cultural, transição que lhe permitiu pensar o passado e o presente da formação social brasileira à luz das experiências intelectuais e/ou artísticas de uma época determinada – donde a “imagem de pensamento” adorniana de um “pensamento ao quadrado” (JAMESON, 1985, p. 41). Em certa medida, o presente artigo dá continuidade a esse anterior, mas agora com foco no modelo crítico sobressaliente a partir dos anos 1990. Se lá o objetivo era mais amplo, aqui o desafio está centrado na elucidação da modalidade de crítica e de trabalho intelectual defendidos por Schwarz nas últimas três décadas. .

Como não poderia deixar de ser, a escolha teria consequências perceptíveis no modo como, mais tarde, Schwarz analisaria – por meio do exame da literatura – os dilemas da modernização e do processo de construção nacional no país. Se nos ensaios compilados no seu primeiro livro, A sereia e o desconfiado (SCHWARZ, 1981SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado: ensaios críticos. São Paulo: Paz e Terra, 1981.), ainda se observa a ausência de uma interpretação específica da formação social brasileira, a análise da obra de Machado de Assis, empreendida a partir da década de 1970, ou seja, após a experiência da ditadura militar a um só tempo reacionária e modernizadora, o levaria a elaborar uma visão própria da história do país. Tanto na sua tese de doutorado, defendida no exílio parisiense e depois publicada com o título Ao vencedor as batatas (1977)5 5 A importância da experiência do exílio na trajetória de Schwarz não pode ser menosprezada. Foi no exílio que ele efetivamente deu o pontapé inicial da sua interpretação singular – via análise da forma literária – do processo de formação da sociedade brasileira. Et pour cause: foi no exílio que, ele, judeu austríaco de origem, no contato com os exilados brasileiros e latino-americanos, se “abrasileirou” de fato, como chegou a dizer. , quanto, sobretudo, em Um mestre na periferia do capitalismo (1990) – dedicado ao último Machado, isto é, àquele que logrou elaborar uma forma literária adequada aos impasses do Brasil oitocentista –, Schwarz desenvolveu essa percepção crítica dos impasses da modernização à brasileira. É como se, para ele, o escritor carioca tivesse descortinado um mal de origem da nossa modernidade, versão periférica daquele eterno retorno do sempre-igual que Benjamin (2000a)BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000a., via Baudelaire, apontara como uma das características do capitalismo moderno.

Essa perspectiva ganharia contornos ainda mais negativos a partir dos anos 1990. É nesse contexto que Roberto Schwarz se deparou com o “livro audacioso”, como ele diria, do crítico alemão Robert Kurz (2001)KURZ, Robert. (1992). O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001., O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, publicado em 1991 na Alemanha e, no ano seguinte, no Brasil, pela Companhia das Letras. Schwarz leu o livro em alemão e escreveu para a Folha de S. Paulo, em maio de 1992, um texto (depois publicado como prefácio à tradução brasileira) resenhando o ensaio, por ele saudado como “inteligente e incisivo [...], que arrisca uma leitura inesperada dos fatos”, isto é, da derrocada dos países socialistas do leste europeu. Para Kurz, conforme o interpreta Schwarz, “a mencionada débâcle representaria, nada menos e pelo contrário, o início da crise do próprio sistema capitalista, bem como a confirmação do argumento básico de O capital” (SCHWARZ, 1999e_____. O livro audacioso de Robert Kurz. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999e, p. 182-188., p. 182).

Ao mesmo tempo que confirmava certo pessimismo adorniano quanto ao destino do progresso capitalista contemporâneo, atualizando-o, o livro de Kurz sinalizava, para Schwarz, a possibilidade de uma crítica radical do sistema estabelecido, entendendo-o nas suas articulações complexas, das quais não escapavam os países socialistas – eles também, assim como os do chamado Terceiro Mundo, compreendidos como partes do sistema mundial de produção de mercadorias, de sorte que a quebra daqueles “explicita tendências e impasses deste” (SCHWARZ, 1999e_____. O livro audacioso de Robert Kurz. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999e, p. 182-188., p. 183). Esses países são um capítulo do “colapso da modernização”: a nova produtividade, derivada da integração crescente entre investigação científica e processo produtivo, seria a eles financeiramente inalcançável, abrindo-se a época das “‘sociedades pós-catástrofe’, onde o desmoronamento dá a tônica” (SCHWARZ, 1999e_____. O livro audacioso de Robert Kurz. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999e, p. 182-188., p. 185). Na mesma perspectiva, as novas forças produtivas seriam incapazes de absorver o conjunto dos “sujeitos monetários desprovidos de dinheiro” (SCHWARZ, 1999e_____. O livro audacioso de Robert Kurz. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999e, p. 182-188., p. 185), como diz o crítico alemão, gerando um decrescimento em termos absolutos da classe trabalhadora, que deixa assim de estar em posição de propor a superação do sistema em crise. Por isso, se, para Kurz (e Schwarz), o “Marx do fetichismo” permanece mais atual do que nunca, o mesmo não poderia ser dito do “Marx da luta de classes”.

Aplicado ao plano nacional, diagnóstico semelhante foi apresentado por Schwarz na conferência “Fim de século”, ministrada na Universidade de Yale, em 1994, e depois compilada em Sequências brasileiras (1999c)_____. Fim de século. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999c, p. 155-162.. Para Schwarz, o fim de século se apresentava sob o signo do impasse: o caráter inconcluso da modernidade se revelara um dado estrutural da formação nacional brasileira, sem que se tivesse aberto, por outro lado, qualquer perspectiva de ruptura com a ordem capitalista global. Não apenas as expectativas vinculadas ao ciclo nacional-desenvolvimentista não se realizaram, como o que tinha sido construído era agora objeto de um “desmanche”. O país do futuro já era presente, e era isso mesmo: uma sociedade cindida por níveis abissais de desigualdade, que viu a sua esperança integradora se desagregar antes mesmo de chegar perto de se efetivar. Nesse cenário, “progresso” e integração nacional já não seguem pelo mesmo caminho, o primeiro como que inviabilizando de vez a possibilidade da última.

É esse o contexto sob o qual Schwarz fará seus reparos retrospectivos ao “Seminário d’O capital”, como que disputando o legado do grupo, tarefa para a qual supunha como necessária a ênfase na negatividade crítica contra a “positivação” levada a cabo por aqueles colegas que, almejando salvar o país, acabaram “salvando” o capitalismo neoliberal à brasileira, emprestando-lhe legitimidade intelectual. Em meio a essa situação no mínimo paradoxal, em que um dos líderes do Seminário, Fernando Henrique Cardoso, estaria à frente de um governo cujo principal objetivo declarado era colocar o Brasil na órbita da globalização em curso, depois de findada a esperança socialista ou social-democrata dos anos 1980, Schwarz se engajou na rememoração da experiência a fim de demarcar a importância fundadora do grupo e, ao mesmo tempo, defender a atualidade da perspectiva intelectual que ele inaugurou, contra os seus próceres ora convertidos ao neoliberalismo. A ponto de, talvez, sobrevalorizar a experiência, conferindo-a mais peso do que ela efetivamente teve.

Não por acaso, a crítica schwarziana aos limites do Seminário, manifestada em conferência de 1994 e depois publicada como ensaio, girará em torno da ideia de que, malgrado o avanço dos trabalhos dos “seminaristas” em relação às perspectivas “dualistas” frequentes nos anos 1950 e 1960, ainda seria possível observar neles um certo déficit de negatividade, engajados que estavam (e como poderia ser diferente?) em encontrar solução para o país, “pois o Brasil [tinha] que ter saída” (SCHWARZ, 1999f_____. Um seminário de Marx. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999f, p. 86-105., p. 104). Como diria Giannotti (2009, p. 55)GIANNOTTI, J. A. Recepções de Marx. Novos Estudos Cebrap, n. 50, 1998., presumivelmente o mais apartado entre eles em relação às questões políticas e econômicas, “o problema [para os seminaristas] era pensar o Brasil, o que estava acontecendo no país, como seria possível engatar o desenvolvimento”.

A ênfase nos impasses do desenvolvimento, obsessão compreensível da intelligentsia moderna no Brasil, favorecia por consequência o desinteresse pela crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria e, mais ainda, pela crítica dos frankfurtianos ao “lado degradante da mercantilização e industrialização da cultura” (SCHWARZ, 1999f_____. Um seminário de Marx. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999f, p. 86-105., p. 104)6 6 Comentando – e defendendo – a ausência dos frankfurtianos no Seminário, Giannotti (2009) questiona de modo retórico: “Roberto Schwarz não comete um anacronismo quando aponta nosso desinteresse por aqueles autores?”. Em grande medida, sim, se poderia acrescentar, mas o anacronismo é revelador, em todo caso, não apenas da posição “adorniana” de Schwarz a partir dos anos 1990, senão também de algo do próprio crítico na sua juventude, cujo mal-estar ainda não lograra dizer seu nome. . A esse desprezo pela dimensão cultural, em especial pelo seu “lado degradante”, se junta uma previsível indiferença pelo “valor de conhecimento da arte moderna, incluída a brasileira, a cuja visão negativa e problematizadora do mundo atual não se atribuía importância” (SCHWARZ, 1999f_____. Um seminário de Marx. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999f, p. 86-105., p. 104). De onde também uma despreocupação deliberada com a questão da forma de redação, quer dizer, com o “acabamento literário” das obras, entre os expoentes do “Seminário d’O capital” (SCHWARZ, 1999f_____. Um seminário de Marx. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999f, p. 86-105., p. 104; 2009_____. Entrevista. In: Paula Monteiro & Flávio Moura (Org.). Retrato de grupo: 40 anos do Cebrap. São Paulo: Cosac Naify, 2009., p. 231).

Crítica e ensaio: à procura de uma “sociologia nova”

Escapar a esses impasses retrospectivamente sistematizados parece ter sido um dos móveis subjetivos da trajetória de Roberto Schwarz, toda ela situada no âmbito de espaços sociais “objetivos”, isto é, atravessado por condições que ultrapassam os atores nele inseridos. Daí a tentativa de, na década de 1990, refazer o percurso daquela experiência intelectual “fundadora” (para os participantes) que foi o “Seminário d’O capital” a fim de se situar como o seu legítimo herdeiro. Afinal, quem, senão ele, se preocuparia não apenas com o lado positivo do desenvolvimento nacional, mas também com o seu lado “degradante”? Quem, senão ele, se preocuparia não apenas com a difusão truncada de um conteúdo, mas também com a forma em que este era comunicado? E quem, senão ele, faria bom proveito do “valor de conhecimento da arte moderna”?

Como se imagina, o único modo de cumprir esses requisitos era por meio da crítica em sentido forte, da crítica como modelo de atividade intelectual, cujo corolário quase que necessário é a escrita ensaística, entre a arte e a ciência, nos moldes da tradição alemã. Sob o permanente risco da sobrevalorização do papel do crítico – cujo estofo cultural deve ser amplo o bastante para lhe permitir estar dentro e fora do objeto a um só tempo –, foi esse o caminho seguido por Schwarz, desde o final da década de 1950, de início na esteira aberta por Candido, depois em voo próprio, sem o didatismo do mestre, que mais tarde assim caracterizaria o pupilo herético:

[Schwarz] não é um autor simples, sendo daqueles que requerem leituras muito atentas para serem compreendidos. Apesar de ter sido professor universitário desde sempre, nunca se dedicou à pesquisa propriamente dita, nem à erudição, nem às obras didáticas. É basicamente um ensaísta, mas um ensaísta que modificou a crítica brasileira, na medida em que superou o tom de fluência jornalística, que foi sempre o nosso melhor modo de trabalhar, num país que só teve crítica universitária depois que o ensino superior da literatura começou e deu os primeiros resultados, isto é, a partir do decênio de 1940.

(CANDIDO, 2007_____. Sobre Roberto Schwarz. In: CEVASCO, M. E.; OHATA, M. Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 13-17., p. 11-12).

Uma tal concepção do trabalho intelectual, como não poderia deixar de ser, entra em rota de colisão com algumas das exigências da pesquisa acadêmica. Coube a Sérgio Miceli, não por acaso, explicitar o incômodo com o modelo crítico encampado por Schwarz, contrapondo-o ao bom método científico.

Enquanto o ensaísta adota a postura de empatia apaixonada e incondicional para com as feições estéticas das obras, como se fosse possível resgatar do tecido de recursos estilísticos a serviço da mimese um modo único e singular de elã autoral, de magia artística, por assim dizer, o cientista social jamais lhe concede um estatuto a tal ponto estanque dos demais produtos da prática social, ainda que possa explorar o véu de encantamento que a envolve. A atividade literária ou artística é um trabalho socialmente construído, como qualquer outro, não lhe cabendo foros privilegiados de tratamento ou sequer um status especial de vigência.

(MICELI, 2007MICELI, S. O chão e as nuvens: ensaios de Roberto Schwarz entre arte e ciência. In: CEVASCO, M. E.; OHATA, M. Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 54-65., p. 57).

Se “o ensaísta ou crítico literário que se preza aspira à condição de escritor”, afirma Miceli, “de artífice de uma prosa original, fluente, macia, persuasiva, digna de merecer uma apreciação estética”, o cientista social, por seu turno, subordinado à objetividade,

[...] reclama o acerto do seu argumento, a densidade de conexões inesperadas mobilizadas pela trama interpretativa, o vigor documental de suas fontes, a força explicativa das evidências trazidas à baila, em suma, reitera a procedência de uma leitura historicamente situada em detrimento do estilo inerente ao intérprete. (MICELI, 2007MICELI, S. O chão e as nuvens: ensaios de Roberto Schwarz entre arte e ciência. In: CEVASCO, M. E.; OHATA, M. Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 54-65., p. 57).

Difícil não lembrar aqui da severa condenação bourdieusiana do modelo crítico adorniano. Em La distinction, critique sociale du jugement, Bourdieu (1979, p. 598 – tradução livre)BOURDIEU, P. La distinction, critique sociale du jugement. Paris: Les Editions de Minuit, 1979. vê em Adorno a “arrogância do teórico que se recusa a sujar as mãos na cozinha da empiria e que permanece visceralmente vinculado aos valores da cultura para estar capacitado a transformá-la em um objeto da ciência”7 7 Antecipando-se a críticas como a de Bourdieu, Adorno (2003a, p. 17) escreveu: “Por receio de qualquer negatividade, rotula-se como perda de tempo o esforço do sujeito para penetrar a suposta objetividade que se esconde atrás da fachada. Tudo é muito mais simples, dizem. Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um devaneio impotente e implica onde não há nada para explicar. Ser um homem com os pés no chão ou com a cabeça nas nuvens, eis a alternativa”. Esta é a alternativa, aliás, replicada por Miceli já no título de seu texto sobre Schwarz. .

Ora, de fato, a crítica ensaística resiste à objetivação científica, mas não porque se entrega ao irracionalismo, e sim porque se recusa a dissolver a complexidade contraditória do objeto nos limites do conceito. No ensaio, escreve Adorno (2003a, p. 27)_____. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003a, p. 15-46. (Coleção Espírito Crítico)., o “pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa”. A crítica ensaística renuncia à certeza dos conceitos científicos. O seu procedimento de totalização se dá através do – e não contra o – fragmento: o ensaio “encontra a sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada” (ADORNO, 2003a_____. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003a, p. 15-46. (Coleção Espírito Crítico)., p. 35). É nesse sentido, escreve Adorno (2003a, p. 30), que a relação do ensaísta com os conceitos poderia ser “comparável ao comportamento de alguém que, em terra estrangeira, é obrigado a falar a língua do país, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que se aprendem na escola”.

Estamos diante, portanto, de duas modalidades distintas de trabalho intelectual: de um lado, a defesa bourdieusiana/miceliana da objetividade científica, na qual a configuração artística ou intelectual é tomada menos naquilo que ela diz ser, e mais no modo como se tornou possível a sua sociogênese, no interior de um campo ou de campos determinados; de outro, a predileção adorniana/schwarziana pela crítica (e pelo ensaio, uma coisa remetendo à outra) como forma de modulação não violenta do objeto, explorando aquilo que escapa à objetividade vigente. Para Adorno, nessa recusa a subjugar o objeto, o ensaio se aproxima da arte, mas dela se diferencia “tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética” (ADORNO, 2003a_____. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003a, p. 15-46. (Coleção Espírito Crítico)., p. 18).

No caso específico de Schwarz, a crítica das configurações artísticas e intelectuais brasileiras poderia levar a uma “sociologia nova”, apoiada naquele “valor de conhecimento” da arte que notara a ausência entre seus colegas de “Seminário d’O capital”. Num país em que a literatura foi, por muito tempo, o principal instrumento de revelação da experiência nacional, a crítica literária estaria no núcleo dessa “sociologia nova”. Não é difícil enxergar nessa contraposição ecos da disputa velada, na sociologia da USP nos anos 1950, entre Florestan Fernandes e Antonio Candido (2000)CANDIDO, A. Crítica e sociologia. In: _____. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 5-16.. Enquanto o primeiro sustentava um ideal científico de sociologia, assentado no rigor metodológico e na pesquisa empírica (FERNANDES, 1958FERNANDES, F. O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros. In: Coleção Estudos Sociais e Políticos, 3, Edições da Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, 1958.), o segundo se caracterizava por uma concepção mais ampla e flexível da disciplina, em articulação com a crítica literária/cultural8 8 Por certo, nem Schwarz é Candido, ou Adorno, nem Miceli é Florestan Fernandes, tampouco Bourdieu. A referência algo arbitrária permite, porém, delinear duas vertentes distintas que se originaram das Ciências Sociais da USP nos anos 1950. .

Para Candido, Adorno, o jovem Lukács ou Schwarz, o social está na própria forma, e não nos condicionantes sociológicos externos que determinariam os rumos tomados pela elaboração formal. A dimensão social ou sociológica do último Machado de Assis da maturidade, por exemplo, estaria, para Schwarz, muito mais na forma dos seus romances, que figuravam a “desfaçatez de classe” das elites oitocentistas, do que na origem social e/ou na trajetória escolar do escritor, que determinariam o seu modo de inserção no campo literário brasileiro em formação, ou mesmo do que no próprio conteúdo retratado nas obras machadianas. Sem a imposição de uma moldura sociológica rígida, os romances de Machado de Assis podem ser lidos, então, como objetos de uma mirada sociológica heterodoxa, “impura”, instável9 9 O sociólogo argentino Elias Palti (2014) criticou o que considera “um limite definitivo da teoria de Schwarz”, a saber: a arbitrariedade de uma perspectiva para a qual o desajuste entre ideias e lugar se dá sempre com as teorias concorrentes, liberais ou conservadores, e não com a sua própria, pressuposta como perfeitamente ajustada à realidade em questão. Na verdade, para Schwarz, até mesmo as “ideologias libertárias” se encontram “fora do lugar”, deixando de sê-lo “quando se reconstroem a partir de contradições locais” (2008b, p. 143). É o que ele tentou fazer com o seu marxismo machadiano, ao preço, talvez, da sobrevalorização do papel da crítica e do crítico, visto como capaz de operar por si só esse movimento de ajustamento. .

A “crítica independente” ou a torre de marfim materialista

Reticente em relação aos excessos cientificistas da sociologia uspiana, Schwarz nem por isso se aproximou, sem mais, da crítica engajada à maneira sartriana. Entusiasta de primeira hora do Partido dos Trabalhadores (PT), o intelectual de origem austríaca não hesitou em defender, em particular a partir da virada para os anos 1990, a independência da crítica diante das pressões políticas conjunturais. É o que se pode ver, por exemplo, num pequeno mas sintomático ensaio publicado em junho de 1994 no antigo caderno Mais! da Folha de S. Paulo. Intitulado “Nunca fomos tão engajados”, o ensaio antecipava a consolidação de certo tipo de engajamento intelectual que viria com a eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República. Um engajamento diferente daquele que, desde Joaquim Nabuco e seu mandato abolicionista, vinha definindo o relevante papel social dos intelectuais brasileiros.

Mas a virada brasileira acompanhava também, e era reforçada, pelos ventos internacionais, com a lógica da mercadoria triunfando aparentemente sem oponentes, conforme a análise de Fredric Jameson citada por Schwarz. Para Jameson (2007)_____. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007., aliás, a lógica cultural pós-moderna – expressão de uma nova e mais pura etapa do capitalismo – se define exatamente, entre outras coisas, pelo esgotamento do processo de modernização e dos esforços de superação dos traços “arcaicos” ainda presentes ao longo do século XX. Modernização para a qual, em especial em países de matriz colonial como o Brasil, os intelectuais haviam sido chamados a participar, a fim de conferir forma “moderna” à nação em construção permanente – até ser “interrompida”. O próprio modernismo pode ser caracterizado, segundo Jameson, como “subproduto da modernização incompleta” – quando ainda havia um “passado” pré-capitalista a ser superado10 10 Schwarz menciona com frequência, em particular em conferências, debates ou bate-papos, o texto “Periodizando os anos 60”, de F. Jameson (1992). E não por acaso: como indica o título, Jameson toma os anos 1960 como uma espécie de década de transição para o que depois ele próprio chamaria de pós-modernismo. No caso brasileiro, essa transição se relaciona ao esgotamento do ciclo nacional-desenvolvimentista. .

Ora, é essa relação entre intelectuais e vida pública que vem abaixo com o “colapso” das estratégias de modernização na periferia do sistema. No caso brasileiro, já com a emergência do novo movimento operário a partir da segunda metade da década de 1970, as condições do engajamento dos intelectuais haviam se transformado de modo significativo. É o que se veria, segundo Schwarz, na “resposta intelectual decepcionante” à abertura democrática nos anos 1980, com o primado da inserção institucional quebrando o “ânimo crítico abrangente” presente no início do processo. Nas suas palavras: “O aprendizado do realismo e dos segredos de ofício, ou do negócio, poderia valer muito à pedagogia política. Mas acabou limitando a liberdade de escrita” (SCHWARZ, 1999d_____. Nunca fomos tão engajados. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999d, p. 172-176., p. 175). O universalismo democrático dos anos 1980 havia se transformado na “universalização” neoliberal dos anos 1990.

O “empenho intelectual” chegava, assim, a um novo patamar, associado e dependente da “acomodação ideológica” correspondente, frente à qual – argumenta Schwarz – apenas a postura “crítica independente” seria capaz de opor uma resposta plausível. Aqui, a petição de princípio adorniana é explícita, chegando à defesa de um retorno à “torre de marfim” – materialista, bem entendido. Escreve o autor:

Pensando melhor, veremos que a intelectualidade nunca esteve tão engajada. Rara mesmo, em nossos dias, é a torre de marfim. Acredito aliás que a crítica independente, sem patrocinador nem interesse direto à vista, é o que mais nos está fazendo falta. Quase todos estamos empenhados, suponhamos, na administração pública, nalgum partido, num departamento da universidade, numa firma de pesquisa, num sindicato, numa associação de profissionais liberais, no ensino secundário, num setor de relações públicas, numa redação de jornal etc., com o objetivo nem sempre muito crível de usar os nossos conhecimentos em favor de alguma espécie de aperfeiçoamento e modernização. Assim, um dos impulsos essenciais à ideia de engajamento, que mandava trazer a cultura dita desinteressada ao comércio dos interesses comuns, se realizou plenamente. O que não ocorreu foi a esperada diferença democrática que esta descida à terra faria. Na falta dela, o compromisso social dos especialistas, incluída aí a dose normal de progressismo, é o mesmo que ir tocando o serviço, e a combatividade do engajamento pode ter algo de um lobby de si próprio.

(SCHWARZ, 1999d_____. Nunca fomos tão engajados. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999d, p. 172-176., p. 176 – grifos nossos).

Em entrevista à revista Der Spiegel realizada em 1969, ano de sua morte e do auge dos seus conflitos com o movimento estudantil, Adorno afirmara: “Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer condutas ou quaisquer ações. Sou um homem teórico, que sente o pensamento teórico como extraordinariamente próximo de suas intenções artísticas”. Ao que o entrevistador replica: “Ciência como torre de marfim, portanto?”. Em resposta, diz Adorno:

Não tenho temor algum da expressão torre de marfim. Essa expressão já teve dias melhores, quando Baudelaire a empregou. Contudo, já que o senhor fala de torre de marfim: creio que uma teoria é muito mais capaz de ter consequências práticas em virtude da sua própria objetividade do que quando se submete de antemão à prática. O relacionamento infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que a teoria se vê submetida a uma pré-censura prática.

(ADORNO, 2003b_____. A filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria. Lua Nova, 2003b, p. 131-138., p. 132 – grifos nossos).

Essa defesa da autonomia da produção intelectual frente às contingências da “prática” é ainda mais marcante, em Adorno, como se sabe, quando se trata da objetivação específica encontrada na (“forma” da) arte. Na esfera da produção estética, a defesa prévia de uma perspectiva “engajada”, seja através de uma tomada de posição política ou da prescrição dos assuntos a serem enquadrados, seria um despautério com consequências artísticas nefastas, como ele argumenta no ensaio “Engagement” (em francês, no título original), de 1962. Questionamento as estratégias político-literárias de (sobretudo) Sartre e de Brecht, Adorno vê na defesa da perspectiva “engajada” um “primado da doutrinação” sobre a forma, que acaba por anular aquilo que a arte necessita – isto é, sua autonomia – para a um só tempo se distanciar e plasmar em outra chave (“negativa”) a realidade empírica.

Afinal, sem a necessidade da prescrição “engajada”, mesmo quando se opõem à empiria, “as obras de arte estão obedecendo às forças dessa empiria” (ADORNO, 1991ADORNO, Theodor. Engagement. In: _____. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 51-71., p. 66 – tradução levemente modificada), como no caso da lírica, ou de autores “vanguardistas” como Kafka e Beckett, que na sua negatividade “provocam uma reação frente à qual as obras oficialmente engajadas desbancam-se como brinquedos” (ADORNO, 1991ADORNO, Theodor. Engagement. In: _____. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 51-71., p. 67). Até mesmo a “verdade política” buscada por Brecht através da atitude reflexiva proveniente do efeito do distanciamento requer mediações que desautorizam a posição “engajada” na arte, uma vez que a “verdade” nesta está sempre mediada pela “forma”. Quando se acentua o “engagement político”, para além das intenções louváveis do autor, o resultado é o “pouco peso [conferido] à realidade política: isso reduz também o efeito político” (ADORNO, 1991ADORNO, Theodor. Engagement. In: _____. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 51-71., p. 60).

Ainda que mediado pela especificidade brasileira, esse debate atravessa a reflexão schwarziana, dos anos 1960 até tempos mais recentes. Desde muito jovem interessado em Brecht, Schwarz acalentou, durante algum tempo, uma visão relativamente positiva do engajamento artístico e intelectual. Basta lembrar de sua peça A lata de lixo da história (SCHWARZ, 2014_____. A lata de lixo da história: chanchada política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.), redigida em 1968, ou seja, em meio aos últimos suspiros da articulação entre experimentação estética e luta política que vinha desde os anos 1950. Publicada apenas nove anos depois, quando essa atmosfera já havia se esfumaçado, a peça não esconde a sua intenção brechtiana, mas o tempero machadiano – inspirado em O alienista – acrescentava a dimensão do impasse brasileiro, sob o signo de mais uma rodada de articulação entre o moderno e o “atrasado”, entre a norma proclamada e a exceção reiterada.

No fim das contas, é como se, já aqui, a voltagem machadiana bloqueasse algo da propensão progressista da forma brechtiana. Seria apenas nos anos 1990, porém, que Schwarz tematizaria os limites do teatro (e do modo de engajamento estético-político) brechtiano, na periferia como no centro do sistema.

O momento do negativo

O acerto de contas viria num ensaio redigido a partir de uma leitura pública de A Santa Joana dos Matadouros, organizada pela Companhia do Latão, intitulado “Altos e baixos da atualidade de Brecht”. O argumento central do ensaio é o de que a busca pela “desnaturalização”, por meio do distanciamento, como modo de superação do obscurantismo – eixo das preocupações brechtianas –, pressupõe um conjunto de condições que não mais existiriam na história recente, ao menos não do mesmo modo.

Entre outras coisas, a “transformação brechtiana do teatro” implicava como correlato a atualidade do comunismo, entrevisto como saída positiva – “ponto de fuga prático” – à mediocridade então desvelada do capitalismo. Segundo Schwarz, se já em meados dos anos 1930, quando a almejada “sociedade superior” era palco da ascensão stalinista, essa perspectiva já era questionável, tornou-se ainda mais nos tempos contemporâneos, quando a passagem da crítica à superação parece bloqueada. Nas suas palavras:

O vínculo entre o experimentalismo acintoso e a luta pela transformação política da sociedade conferia à literatura de Brecht um tipo peculiar de pertinência, para não dizer autoridade. Pelas mesmas razões, ela ficaria mais vulnerável que outras ao desmentido que a história infligiu a suas expectativas.

(SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 125).

No Brasil, esse “vínculo” entre “experimentalismo” e “luta pela transformação política” parecia possível no período entre a virada para os anos 1950 e 1964-1968, ainda que sob impulso nacional-desenvolvimentista, que impunha barreiras à plena incorporação da desmistificação classista almejada por Brecht, tal qual se pode ver nos “paradoxos” do Teatro de Arena, “representativ[os] em sua inconsequência” (SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 121)11 11 Schwarz já havia tratado das ambivalências do Teatro de Arena no seu primeiro ensaio escrito no exílio, “Cultura e política, 1964-69” (SCHWARZ, 2008a). . Mesmo no Brasil, porém, com o avanço da mercantilização da cultura, tais condições definharam, interpondo novos dilemas e desafios à relação entre arte e política. A partir de então, os próprios impulsos vanguardistas – voltados, segundo a análise clássica de Peter Bürger (2012)BURGER, P. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012., para a quebra da distância entre arte e vida – é que eram recuperados pelo capitalismo, sob a égide da primazia quase absoluta do “ponto de vista da mercadoria” (SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 130)12 12 Mais uma vez, aqui, é possível notar a presença do argumento de Fredric Jameson em torno da “lógica cultural pós-moderna”. .

Nesse contexto, afirma Schwarz, é como se o “progresso” mudasse de lado, para desalento da esquerda progressista, para a qual crítica e a superação do passado andavam juntas e bem articuladas na boa direção, seja no horizonte nacional ou propriamente socialista. Mesmo o “materialismo da autorreferência brechtiana” parece comportar, no mundo contemporâneo, em meio ao avanço a passos largos da indústria cultural, “utilizações apologéticas”: o “ganho em inteligência representado pelo distanciamento, concebido outrora para estimular a crítica e liberar a escolha social, troca de sinal sobre o novo fundo de consumismo generalizado” (SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 130).

Na perspectiva sustentada por Schwarz (1999a, p. 132)_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., se há ainda alguma atualidade na proposta brechtiana, esta se situaria menos nas suas elaborações teórico-doutrinárias do que nos traços da composição formal de suas obras, desde que o “prognóstico [aí] embutido” seja tomado como “parte do problema, e já não como lição”. O diagnóstico é semelhante ao de Adorno no “ensaio capital sobre a literatura engajada”, assim descrito por Schwarz, para quem as “objeções” adornianas a Brecht são “incisivas”, mas “certeiras” (SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 133)33. Com efeito, para Schwarz, uma peça como A Santa Joana..., por exemplo, é mais atual quando trata do capital do que quando o assunto é a edificação do sacrifício e do heroísmo das “fortes figuras de ativista”, típicas de uma “posição bolchevique” e que se expressam nas falas do dirigente comunista (SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 134, 136, 134).

Mais uma vez, observa-se aqui a perspectiva adorniana/kurziana para a qual, se os temas do fetichismo, da mercadoria, enfim, do capital, permanecem atuais, talvez ainda mais do que no passado, o mesmo não se pode dizer da “positivação” (e, portanto, da idealização, quase sinônimos para Adorno) de um proletariado entendido como válvula de escape dos impasses e/ou antinomias teóricas e práticas da modernidade burguesa. Por isso mesmo, em A Santa Joana..., escreve Schwarz, visto de hoje,

[...] há mais evidência na configuração do impasse e de seu aprofundamento que na saída revolucionária, limitada à determinação de vencer, ou de resistir e talvez morrer, para que outros trabalhadores vençam mais adiante. Digamos que falta substância específica à perspectiva de superação, o que não desmancha nem atenua as irracionalidades a que respondia, as quais na ausência de alternativa tangível tomam feição de desastre em permanência, para retomar a expressão de Walter Benjamin.

(SCHWARZ, 1999a_____. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a, p. 113-148., p. 146- 147).

Para Schwarz, essa “catástrofe em permanência” evocada por Benjamin em seus ensaios sobre Baudelaire e, depois, no seu testamento (inacabado) político-filosófico, as “teses sobre o conceito de história”, se articula a um “marxismo sombrio”, como o de Adorno, que “resistiu ao tempo”, conforme diz em entrevista de 2003. Segundo Schwarz, “o bloqueio da solução revolucionária e a esterilidade da política eleitoral”, constatados por Adorno, são “diagnósticos, e não preferências. Pode-se discordar, mas as razões para concordar são consideráveis” (SCHWARZ, 2012b_____. Sobre Adorno. In: _____. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012b, p. 44-51., p. 50). Destituída do “proletariado”, central em História e consciência de classe e, até certo ponto, sob roupagem messiânico-profana, em Benjamin, o que resta, em Adorno e Schwarz, é a “negatividade” da crítica cuja irredutibilidade não significa imobilismo, mas sim um passo – hoje ainda mais fundamental – na resistência sem horizonte de futuro pressuposto (QUERIDO, 2013QUERIDO, Fabio Mascaro. Colapso da modernização: Roberto Schwarz e a atualização da dialética à brasileira. Novos Estudos Cebrap, n. 97, 2013, p. 227-233.).

O nacional por negação: a atualidade da negatividade periférica

Para Schwarz, é essa ancoragem negativa que, hoje em dia, garante a atualidade da crítica elaborada na periferia. Num momento em que mesmo países do centro do capitalismo passam por processos visíveis de desintegração social, a crítica da nossa congênita má-formação nacional ganha uma potência global (ARANTES, 2004_____. A fratura brasileira do mundo. In: _____. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004, p. 25-78.). Daí porque, na visão schwarziana, não se trata de abandonar a problemática nacional em nome da universalidade (abstrata) da crítica, mas sim de tomá-la como refração particular do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, refração da ótica da qual este último pode ser visto na sua “exceção”, que, cada vez mais, se torna regra. Definitivamente, a “Minima moralia do subdesenvolvimento” (ARANTES, 1992ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 97) se tornou um capítulo central da trama capitalista contemporânea.

É nesse sentido que se pode falar em “nacional por negação”: mais do que nunca a questão nacional, sendo ainda indescartável, se revela na sua faceta propriamente “negativa”, sem possibilidade de final feliz nos seus próprios termos e, por isso, como expressão particular e sintomática de um processo de “desmanche” mais geral13 13 A ideia de “desmanche” serviu de inspiração, a partir do final da década de 1990, a Francisco de Oliveira e aos pesquisadores do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Cenedic/FFLCH/USP). Em Oliveira, em particular, a reflexão do último Schwarz foi importante para a composição do ensaio “O ornitorrinco” (2003). . Sem ser mais um horizonte positivo de emancipação, tal como, por exemplo, no interlúdio entre 1962-1964, a nação se define então pela negativa, o que abre, por outro lado, numa pequena vantagem do atraso, um novo flanco crítico de alcance global. É nessa negatividade periférica que reside a atualidade intempestiva de Machado de Assis. A sua universalidade se dá por causa – e não apesar – dessa imersão nacional. “Foi no ambiente saturado de injustiças nacionais e de história que o achado universalista [de Machado] adquiriu a densidade e o impulso emancipatório indispensáveis a uma ideia forte de crítica” (SCHWARZ, 2006_____. Leituras em competição. Novos Estudos Cebrap, n. 75, 2006, p. 61-79., p. 72).

Escrevendo sobre Machado de Assis, é como se Schwarz estivesse pensando também em si mesmo: assim como Benjamin tomou Baudelaire como uma mediação estética para a compreensão da emergência da modernidade europeia na Paris capital do século XIX, Schwarz fez da análise dos romances de Machado um caminho para o enquadramento crítico dos impasses da modernidade periférica. Tal como o Baudelaire pós-benjaminiano de Dolf Oehler, porém, o Machado de Schwarz aparece sob uma roupagem antiburguesa, como uma espécie de “traidor de classe”14 14 Numa carta de 16 de abril de 1991, redigida logo após a leitura de Um mestre na periferia do capitalismo, Michael Löwy encarna a figura de Machado de Assis e, desde o purgatório, felicita Roberto Schwarz pela interpretação dos seus romances. Escreve Machado/Löwy: “Aqui no purgatório, onde estou passando férias nos últimos cento e tantos anos, tive a grande satisfação de encontrar alguns dos personagens com os quais você me compara: Flaubert, Baudelaire, Brecht [...]. Fiz circular uma cópia de seu livro entre meus companheiros de vilegiatura, que o leram com muito entusiasmo. Brecht foi o único que fez alguns reparos – ‘é materialismo isso?’ – mas você sabe bem como ele é difícil de contentar”. Curiosamente, a imaginação de Löwy não deixa de anotar um distanciamento real de Schwarz em relação à referência brechtiana. responsável pela primeira grande “autoanálise” da modernidade periférica na sua vertente brasileira15 15 Dolf Oehler (1999) aborda Baudelaire e Flaubert da ótica de uma “autoanálise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris”. Embora inspirado na leitura benjaminiana, Oehler não hesita em sustentar o componente antiburguês da estética baudelairiana. .

Por certo, como se viu aqui, a contrapartida dessa negatividade radical é a sobrevalorização do papel da crítica, alçada à condição de refúgio último da razão “contra a boçalidade do mito”. Crítica cuja legitimidade, portanto, não radica na explicitação de um conjunto de preceitos teórico-metodológicos, em torno dos quais seriam realizadas pesquisas empíricas, mas sim na explicitação dos seus próprios pressupostos normativos, assim como do modo como estes se articulam com o conhecimento “objetivo” do objeto. A garantia contra os eventuais arroubos arbitrários da crítica reside, portanto, em última instância, na capacidade de discernimento intelectual do próprio crítico, sob o constrangimento dos pares e receptores. É essa aparente liberdade subjetiva do crítico que é questionada pelos defensores da superioridade da ciência social acadêmica: mas, no final das contas, em Bourdieu, por exemplo, não é a capacidade reflexiva do sociólogo a garantia última contra as ilusões cientificistas às quais se entregam os agentes do campo científico?

Crítico na periferia do capitalismo, Schwarz adicionou à perspectiva adorniana a preocupação com o lugar das ideias, não apenas o lugar social em uma sociedade determinada, mas também o lugar geopolítico, por assim dizer, em meio ao desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. A condição periférica exige um esforço reflexivo redobrado, o que permite, por outro lado, afinar a reflexão sobre os vínculos entre crítica e realidade. Embora a ele não se reduzam, as ideias têm sempre um lugar, e o reconhecimento dessa relação é o primeiro passo para transcendê-lo teoricamente e, quiçá, transformá-lo politicamente. Mesmo porque, a “última palavra não pertence à nação, nem à cultura hegemônica internacional, mas ao presente conflituado que as atravessa” (SCHWARZ, 2012a_____. Leituras em competição. In: _____. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012a, p. 9-43., p. 42). É esse “presente conflituado” que interessa ao crítico, sempre guiado pela questão a partir da qual mesmo o passado é abordado: que horas são, afinal?

  • 2
    Sobre as trajetórias cruzadas de Roberto Schwarz e Michael Löwy, cf. Querido (2019a)_____. Michael Löwy e Roberto Schwarz: trajetórias cruzadas. Margem Esquerda, n. 32, 2019.. M. Löwy (1989)LÖWY, Michael. Distante de todas as correntes e no cruzamento dos caminhos: Walter Benjamin. In: _____. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 85-109. se utilizou do aforismo benjaminiano sobre “o caráter destrutivo” para definir o próprio Benjamin como alguém que se encontra no “cruzamento dos caminhos”. Löwy combina essa designação com a definição adorniana de Benjamin como estando “distante de todas as correntes”.
  • 3
    Cf., para ficar apenas em dois exemplos, Franco (1978)FRANCO, M. S. C. O tempo das ilusões. In: CHAUÍ, M.; FRANCO, M. S. C. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1978, p. 151-209. e Chauí (1984)CHAUÍ, M. O nacional e o popular na cultura brasileira. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1984..
  • 4
    Cf. Querido (2019)_____. Pensamento ao quadrado: Roberto Schwarz e o Brasil. Lua Nova, n. 107, maio-agosto 2019, p. 235-261., artigo no qual sustento a hipótese de que a singularidade da visão schwarziana da sociedade brasileira decorre em grande medida dessa transição precoce das ciências sociais para a crítica literária/cultural, transição que lhe permitiu pensar o passado e o presente da formação social brasileira à luz das experiências intelectuais e/ou artísticas de uma época determinada – donde a “imagem de pensamento” adorniana de um “pensamento ao quadrado” (JAMESON, 1985JAMESON, Fredric. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. São Paulo: Hucitec, 1985., p. 41). Em certa medida, o presente artigo dá continuidade a esse anterior, mas agora com foco no modelo crítico sobressaliente a partir dos anos 1990. Se lá o objetivo era mais amplo, aqui o desafio está centrado na elucidação da modalidade de crítica e de trabalho intelectual defendidos por Schwarz nas últimas três décadas.
  • 5
    A importância da experiência do exílio na trajetória de Schwarz não pode ser menosprezada. Foi no exílio que ele efetivamente deu o pontapé inicial da sua interpretação singular – via análise da forma literária – do processo de formação da sociedade brasileira. Et pour cause: foi no exílio que, ele, judeu austríaco de origem, no contato com os exilados brasileiros e latino-americanos, se “abrasileirou” de fato, como chegou a dizer.
  • 6
    Comentando – e defendendo – a ausência dos frankfurtianos no Seminário, Giannotti (2009) _____. Entrevista. In: MONTEIRO, Paula; MOURA, Flávio (Org.). Retrato de grupo: 40 anos do Cebrap. São Paulo: Cosac Naify, 2009. questiona de modo retórico: “Roberto Schwarz não comete um anacronismo quando aponta nosso desinteresse por aqueles autores?”. Em grande medida, sim, se poderia acrescentar, mas o anacronismo é revelador, em todo caso, não apenas da posição “adorniana” de Schwarz a partir dos anos 1990, senão também de algo do próprio crítico na sua juventude, cujo mal-estar ainda não lograra dizer seu nome.
  • 7
    Antecipando-se a críticas como a de Bourdieu, Adorno (2003a, p. 17)_____. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003a, p. 15-46. (Coleção Espírito Crítico). escreveu: “Por receio de qualquer negatividade, rotula-se como perda de tempo o esforço do sujeito para penetrar a suposta objetividade que se esconde atrás da fachada. Tudo é muito mais simples, dizem. Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um devaneio impotente e implica onde não há nada para explicar. Ser um homem com os pés no chão ou com a cabeça nas nuvens, eis a alternativa”. Esta é a alternativa, aliás, replicada por Miceli já no título de seu texto sobre Schwarz.
  • 8
    Por certo, nem Schwarz é Candido, ou Adorno, nem Miceli é Florestan Fernandes, tampouco Bourdieu. A referência algo arbitrária permite, porém, delinear duas vertentes distintas que se originaram das Ciências Sociais da USP nos anos 1950.
  • 9
    O sociólogo argentino Elias Palti (2014)PALTI, E. O problema de “As ideias fora do lugar” revisitado: para além da “história das ideias na América Latina”. In: MAIA, João Marcelo Ehlert et al. Ateliê do pensamento social: ideias em perspectiva global. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p. 57-84. criticou o que considera “um limite definitivo da teoria de Schwarz”, a saber: a arbitrariedade de uma perspectiva para a qual o desajuste entre ideias e lugar se dá sempre com as teorias concorrentes, liberais ou conservadores, e não com a sua própria, pressuposta como perfeitamente ajustada à realidade em questão. Na verdade, para Schwarz, até mesmo as “ideologias libertárias” se encontram “fora do lugar”, deixando de sê-lo “quando se reconstroem a partir de contradições locais” (2008b, p. 143)_____. Cuidado com as ideologias alienígenas (Respostas a Movimento). In: _____. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008b, p. 136-145.. É o que ele tentou fazer com o seu marxismo machadiano, ao preço, talvez, da sobrevalorização do papel da crítica e do crítico, visto como capaz de operar por si só esse movimento de ajustamento.
  • 10
    Schwarz menciona com frequência, em particular em conferências, debates ou bate-papos, o texto “Periodizando os anos 60”, de F. Jameson (1992)_____. Periodizando os anos 60. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pós-Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 81-126.. E não por acaso: como indica o título, Jameson toma os anos 1960 como uma espécie de década de transição para o que depois ele próprio chamaria de pós-modernismo. No caso brasileiro, essa transição se relaciona ao esgotamento do ciclo nacional-desenvolvimentista.
  • 11
    Schwarz já havia tratado das ambivalências do Teatro de Arena no seu primeiro ensaio escrito no exílio, “Cultura e política, 1964-69” (SCHWARZ, 2008a_____. Cultura e política, 1964-1969. In: _____. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008a, p. 70-111.).
  • 12
    Mais uma vez, aqui, é possível notar a presença do argumento de Fredric Jameson em torno da “lógica cultural pós-moderna”.
  • 13
    A ideia de “desmanche” serviu de inspiração, a partir do final da década de 1990, a Francisco de Oliveira e aos pesquisadores do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Cenedic/FFLCH/USP). Em Oliveira, em particular, a reflexão do último Schwarz foi importante para a composição do ensaio “O ornitorrinco” (2003).
  • 14
    Numa carta de 16 de abril de 1991, redigida logo após a leitura de Um mestre na periferia do capitalismo, Michael Löwy encarna a figura de Machado de Assis e, desde o purgatório, felicita Roberto Schwarz pela interpretação dos seus romances. Escreve Machado/Löwy: “Aqui no purgatório, onde estou passando férias nos últimos cento e tantos anos, tive a grande satisfação de encontrar alguns dos personagens com os quais você me compara: Flaubert, Baudelaire, Brecht [...]. Fiz circular uma cópia de seu livro entre meus companheiros de vilegiatura, que o leram com muito entusiasmo. Brecht foi o único que fez alguns reparos – ‘é materialismo isso?’ – mas você sabe bem como ele é difícil de contentar”. Curiosamente, a imaginação de Löwy não deixa de anotar um distanciamento real de Schwarz em relação à referência brechtiana.
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    Dolf Oehler (1999)OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos: autoanálise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. aborda Baudelaire e Flaubert da ótica de uma “autoanálise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris”. Embora inspirado na leitura benjaminiana, Oehler não hesita em sustentar o componente antiburguês da estética baudelairiana.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2019
  • Aceito
    18 Nov 2019
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