Acessibilidade / Reportar erro

Sereias: sedução e saber

Mermaids: seduction and knowledge

RESUMO

No recorte de um estudo do mito odisseico em contraponto com a literatura brasileira, a proposta foi trabalhar o tema das Sereias (na Odisseia e no romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, com uma breve incursão pela Lorelei, de Heine). Na sequência de uma leitura adorniana da Odisseia, aborda-se a sereia de um viés menos explorado na diluição desse mito, que é a inquietante relação entre sedução e saber, ou melhor: a sedução pelo conhecimento. Isso levou, inevitavelmente, a um paralelo com o mito bíblico de Adão e Eva e a Árvore do Conhecimento, e consequente superposição das imagens da sereia e da serpente (curiosamente presente no mito indígena da Mãe d’Água).

PALAVRAS-CHAVE
Mito odisseico; Sereias; sedução/saber; Clarice Lispector; leitura adorniana

ABSTRACT

As an element of a contrapuntal study of the Odyssean myth and Brazilian literature, our proposal is to build on the topic of Mermaids (in Odyssey and in the novel An apprenticeship or The book of delights, by Clarice Lispector, with a brief foray into Heine’s Lorelei). Following an Adornian reading of Odyssey, we approach the mermaid issue from a largely untapped viewpoint in the dilution of this myth, namely, the disturbing relationship between seduction and knowledge – or, rather, seduction through knowledge. This inevitably led to a parallel with the biblical myth of Adam and Eve and the Tree of Knowledge, and the consequent overlapping images of the mermaid and the serpent (tantalizingly present in the Mother Water Native myth).

KEYWORDS
Odyssean myth; Mermaids; seduction / knowledge; Clarice Lispector; Adornian reading

As Sereias na Odisseia

Num rastreamento de motivos temáticos da Odisseia, encontradiços na literatura e no imaginário humanos, avulta o tema das Sereias. Efetivamente, de significativa presença não apenas literária como iconográfica, as Sereias povoam a Antiguidade Clássica, de Homero a Plutarco (séc. II d.C.), passando por Eurípides (séc. V a.C.), Platão (séc. IV a.C.), Apolônio de Rodes (séc. III a.C.), Estrabão, Ovídio etc. etc. Entroncando-se na Odisseia – ao menos no que diz respeito ao mundo greco-romano – esse topos no entanto atravessa tempos e espaços e repontará em mitos de outras cepas culturais, com outras modulações.

Talvez seja importante remontarmos à origem mítica desses seres, o que nos levará a um dado significativo: em quase todas as variantes etiológicas do mito, está presente a música ou a poesia: não apenas em algumas versões, as Sereias são filhas das Musas Melpomene ou Terpsícore (GRIMAL, 1988GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine. Paris: PUF, 1988. (Verbete “Sirènes”)., p. 424), como, em outras, elas rivalizam com as Musas. Efetivamente, Plutarco, retomando Platão no Timeu, identifica as Sereias com as 9 Musas (apud BRUNEL, 1997BRUNEL, Pierre. Verbete “As Sereias na Antiguidade”. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997., p. 831). Inicialmente apresentadas na iconografia como seres metade mulheres, metade pássaros, elas passaram posteriormente à tradição – em consonância com seu status de divindades marinhas – como metade mulheres, metade peixes. Mas o que as caracteriza, inescapavelmente, é o canto que encanta. É interessante apontar a importância desse canto – em que a sedução se exerce pela audição – numa civilização com tamanha preponderância do olhar, em que domina a visão.

Em termos literários, a matriz é a Odisseia de Homero, e aí se alude às Sereias especialmente no Canto XII, quando Odisseu conta suas aventuras ao rei dos feácios. Ele inicialmente relata os conselhos que lhe dá a feiticeira Circe para enfrentar as “tribulações” em sua trabalhosa volta a Ítaca (volta a casa, família, reino e poder), e vai adverti-lo dos perigos que representam as terríveis entidades (todas femininas!) Cila, Caribdis e as Sereias. Pois bem, na apresentação que Circe faz das Sereias ressalta aquilo que ao longo dos séculos restará como a característica fulcral desses seres perigosos: voz maravilhosa, seduzem quem delas se aproxime, levando à destruição.

Nada substitui a força do texto original2 2 Utilizarei para todas as citações da épica o texto de Homero (1993): Odisseia (tradução Jaime Bruna). São Paulo: Cultrix. Para a localização dos versos no original (através de colchetes) foi utilizada a edição bilíngue de Homero (2011): Odisseia (tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34. . Narra Odisseu:

Então me disse textualmente a augusta Circe:

– [...] Agora, escuta: o que te vou dizer um deus mesmo te fará lembrar. Primeiro encontrarás as duas Sereias: elas fascinam todos os homens que se aproximam. Se alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das Sereias, adeus regresso! Não tornará a ver a esposa e os filhos inocentes sentados alegres a seu lado, porque com seu canto melodioso, elas o fascinam, sentadas na campina em meio a montões de ossos de corpos em decomposição cobertos de peles amarfanhadas. Toca para diante: amassa cera doce de mel e veda os ouvidos de teus tripulantes para que mais ninguém as ouça. Se tu próprio as quiseres ouvir, que eles te amarrem de pés e mãos, de pé na carlinga do barco veloz, e que as pontas das cordas pendam fora de teu alcance, para te deleitares ouvindo o canto das Sereias; se insistires com teus companheiros para te soltarem, que eles te prendam com laços ainda mais numerosos. Depois que teus companheiros tiverem remado para além delas [...]. [Canto XII, v. 38-55].

(HOMERO, 1993, p. 142).

Num segundo momento do mesmo Canto XII, Odisseu conta a seus camaradas o que lhes predissera Circe, repetindo quase que nos mesmos termos o que ouvira da deusa.

Figura 1
Odysseus and the Sirens. Attic red-figured stamnos, ca. 480-470 BC. / Siren Painter (eponymous vase)

Uma leitura superficial já revela o fascínio exercido por essas criaturas, através da voz e do canto. Aqui cabe um parêntese para uma reflexão a respeito da relação no nível do significante entre “canto” e “encanto”. Trata-se de uma relação etimológica: em grego “encantador” é epodôs, e “encantar” é epiodein, ambos de epi = sobre, por cima de, e ode = canto. Encantar é “cantar por cima de”. Agnese Grieco, discorrendo sobre o vocábulo “sereia”, diz que “Através dos séculos, parece de todo modo que entre os estudiosos reina um certo acordo em fazer derivar a palavra sirein do radical semítico sir: ‘encantamento’, ‘canto mágico’” (GRIECO, 2017GRIECO, Agnese. Atlante dele sirene: viaggio sentimentale tra le creature che ci incantano da milleni. Milano: Il Saggiatore, 2017., p. 30 – tradução minha).

No texto de Homero, para além do canto e do encanto, a ação destruidora desses seres fatais é indiciada pelos corpos em decomposição na ilha em que habitam. Importa dizer que o texto homérico não fornece uma descrição física dessas criaturas, sua representatividade é dada pela iconografia, que nos mostra seres metade pássaros, metade mulheres. A figuração pisciforme (metade mulher, metade peixe) é posterior, datando de fins da Idade Média.

Mas o que cantam as Sereias? Qual o conteúdo desse canto? Essa informação será dada mais adiante, nesse mesmo Canto XII da épica, na sequência do relato de Odisseu ao rei dos feácios sobre o encontro efetivo que tivera com as Sereias:

Estávamos à distância de um grito, avançando rapidamente, quando elas perceberam o ligeiro barco singrando perto e ergueram um canto mavioso: “Dirige-te para cá, decantado Odisseu, grande glória dos aqueus; detém o teu barco para ouvir-nos cantar. Até hoje ninguém passou vogando além daqui, sem antes ouvir a doce voz de nossos lábios e quem a ouviu partiu deleitado e mais sábio. Nós sabemos, com efeito, tudo quanto os argivos e troianos sofreram na extensa Troia pela vontade dos deuses e sabemos tudo quanto se passa na terra fecunda”.

Assim diziam, entoando um belo cantar. Meu coração desejava escutá-las; eu pedia aos companheiros que me soltassem, acenando-lhes com os sobrolhos; eles, porém acurvando-se, remavam. Súbito, Perímedes e Euríloco levantaram-se e prenderam-me com laços mais numerosos e apertados. Quando, afinal eles tinham passado além das Sereias e já não ouvíamos a sua voz e o seu canto, sem demora meus leais companheiros retiraram a cera com que eu lhes vedara os ouvidos e soltaram-me dos laços. [v. 182-200].

(HOMERO, 1993HOMERO. Odisseia. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1993., p. 145).

Mas o que é significativo – e esse é um elemento em geral descurado na diluição do mito das Sereias, ou melhor, totalmente ausente na comercialização consumista do mito – é o tipo de sedução que elas representariam para quem cai na sua armadilha: as Sereias sabem “tudo quanto os argivos e troianos sofreram na extensa Troia pela vontade dos deuses”; e “sabem tudo quanto se passa na terra fecunda” (v. 191). Prometem apenas, a quem os ouve, que partirá “mais sábio”. Uma observação aqui se impõe, a ligação etimológica entre sabor e saber, entre sabor e sabedoria: formas derivadas do verbo sapio. Sapio = ter gosto, ter a inteligência de, conhecer, saber. E que está presente no torneio usado no português de Portugal “saber a” = ter gosto de; com efeito, um português diz “isso me sabe bem” para expressar “eu gosto”. A sabedoria tem a ver com gosto. No mito odisseico a tentação/danação vem pelo ouvido, pela escuta; no mito bíblico, a tentação – comer a maçã – vem pela boca, pelo degustar.

As Sereias seduzem pela promessa de um saber que é fundamental a Odisseu, que lhe concerne vitalmente, na medida em que conhecem tudo que gregos e troianos viveram em Troia; mas, para além da própria épica, sabem “tudo quanto se passa na terra fecunda”. São detentoras de um conhecimento de uma amplidão totalizante. Não há nenhum sinal de sedução sexualizada, não há sinal de uma beleza corporal das Sereias, nada de uma descrição física; no entanto, a sua voz, reiteradamente descrita, é qualificada várias vezes como “doce”, e, sobretudo, nos é apresentado o seu efeito: elas fascinam, atraem prometendo conhecimento. Sua sedução, não é demais repetir, é a do saber. No entanto, que fique claro, elas não disponibilizam esse saber no canto que Odisseu, amarrado ao barco e impossibilitado de lançar-se ao seu encontro, efetivamente ouve. Seu canto apenas promete o saber, o anuncia, mas como Odisseu não cai na armadilha, não experimentará o que o deixaria “mais sábio”. Ouve a promessa do saber, mas não prova desse fruto. No entanto, outros marinheiros, cujos ossos e peles se veem na ilha das Sereias, esses se deixaram atrair até elas – e morreram. Conhecimento e danação articulados.

As Sereias no mundo grego corresponderiam, assim, à serpente no mundo bíblico, tentando Adão e Eva para que provem do fruto da Árvore do Conhecimento do Éden. Gabriel Germain, em seu alentado Genèse de l’Odyssée. Le fantastique et le sacré, tem um capítulo que todos gostaríamos de ter visto mais desenvolvido, com o subtítulo: “Les sirènes et la tentation du savoir” (GERMAIN, 1954GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954., p. 382-390). E aí o autor se pergunta sobre o canto das Sereias: “Ele age sobre os sentidos, ou procura atingir diretamente o espírito? Qual é sua ‘tentação’?”. Responde rápido: “A armadilha que elas apresentam a um espírito avisado é pois este terrível fruto do conhecimento pelo qual nossos primeiros pais perderam o Éden”. E continua: “Restituindo sua importância a esta tentação pelo saber, tira-se esta curta narração dentre os apólogos simplórios para aparentá-lo a mitos dos quais acabamos de citar o mais conhecido e mais evidente” (GERMAIN, 1954GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954., p. 384 – tradução minha). Deixa para uma nota de rodapé, citando . E. HarrisonHARRISON, J. E. Prolegomena, p. 198. Apud GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954, p. 384., sem comentários, o problema que mais nos interessa: “É estranho e belo que Homero faça dirigir-se o apelo das Sereias ao espírito, não à carne. Para o homem primitivo, grego ou semita, o desejo de saber – de ser como os deuses, era o desejo fatal” (apud GERMAIN, 1954GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954., p. 384.) A ele não sucumbiu Odisseu. É importante que se diga que essa interpretação do saber entranhado na história das Sereias inicia-se já na Antiguidade Clássica, vem de longe: para Cícero no séc. I AC, em De Finibus, as Sereias, por serem fonte da ciência, seduzem a curiosidade que estigmatiza o espírito humano (apud BRUNEL, 1997BRUNEL, Pierre. Verbete “As Sereias na Antiguidade”. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997., p. 831).

Por outro, lado, nesse mito de outra cepa cultural, que é o do Livro do Gênesis, lemos:

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: ‘Vós não podeis comer de todas as árvores do Jardim?’” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.” A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava e ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueiras e se cingiram.

(Gênesis, 3, 1-17)3 3 Bíblia de Jerusalém (São Paulo, Edições Paulinas, 1973). Tradução do texto em português diretamente dos originais. .
Figura 2
The fall of man (Genesis 3:4) /

Aqui também acabou havendo, em algumas das interpretações, uma erotização do mito, como se a “tentação” da serpente fosse da esfera sexual. Descura-se o “adquirir discernimento”, o tornarem-se “versados no bem e no mal” e a reiterada alusão à imagem de “abrirem-se os olhos”. Mas o que importa são as consequências: a Queda, a expulsão do Paraíso, e a perda da imortalidade, com seu preço em dores, velhice e morte.

Nesse cotejo de dois textos fundadores de Civilização, de duas obras canônicas, uma observação: na Odisseia, o astuto Odisseu não comeu desse fruto que lhe foi apresentado, resistiu às Sereias, escapou da danação.

Importa agora ver como o herói grego agirá ao longo de suas demais aventuras – mas isso implicará em um recuo teórico, como se segue.

As Sereias e a interpretação adorniana da Odisseia

Nos capítulos “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e esclarecimento” da Dialética do esclarecimento, Adorno desenvolve sua famosa interpretação da Odisseia, que pode ser resumida como a viagem metafórica do homem ocidental em busca da constituição do sujeito (ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986.). Ele aponta uma unidade em todas as lendas difusas que constituem o tecido das aventuras do herói, e que estão recolhidas entre os cantos IX e XII da épica: narrativas que ocupam 4 Cantos da epopeia, totalizando aproximadamente 2.200 versos – mais de um sexto do poema. Elas versam sobre o confronto de Odisseu com seres fantásticos e primitivos, como, por exemplo, gigantes antropófagos com um olho só, ou monstros híbridos, como Cila e Caribdis, e, num outro registro, mas igualmente fatais, as Sereias.

Grandes helenistas debruçaram-se sobre esse miolo folclórico da Odisseia (CARPENTER, 1974CARPENTER, Rhys. Folk tale, fiction and saga in the homeric epics. Berkeley; Los Angeles, University of California Press, 1974. (The Sather Classical Lectures, XX).; GERMAIN, 1954GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954.; PAGE, 1988PAGE, Denys. Racconti popolari nell’Odissea. Trad. R. Velardi. [S. l.]: Liguore Editore, 1988.; HANSEN, 1977HANSEN, William. Homer and the folktale. In: MORRIS, I.; POWELL, B (Org.). A new companion to Homer. Leiden: Brill, 1997, p. 442-462., apontando o caráter de oralidade da epopeia – que a irmanará à poesia oral de outros povos. Explica-se: uma vez que os poemas homéricos são, essencialmente, poesia oral, é lícito deduzir que a Odisseia apresenta elementos também encontráveis na literatura da oralidade de outras culturas. É assim que Page, por exemplo, em seu Racconti popolari nell’Odissea trabalha com o “gênero” de narrativas folclóricas encontradiças em outras civilizações, do Mediterrâneo à Índia, da Nova Zelândia à África, e assim por diante – e que justificaria, por sinal, que aproximemos o mais famoso topos da Odisseia, o das Sereias, à Mãe d’Água, Yara ou Ypupiara dos nossos indígenas, os dois últimos à margem de qualquer influência colonizadora europeia.

Impõe-se aqui um parêntese para tratar minimamente do mito da sereia no Brasil. Para Câmara Cascudo (1954, p. 370)_____. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954. a Mãe d’Água é um mito morfologicamente europeu, do ciclo atlântico; por outro lado, Ypupiara (ou Ipupiara), uma narrativa do Brasil dos Quinhentos e Seiscentos, pode ser considerado um dos mais antigos mitos brasileiros, registrado por cronistas coloniais como Anchieta, Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Fernão Cardim, Gabriel de Souza. (CASCUDO, 1954_____. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954., p. 316). Esse ser que habita o fundo das águas e pode ser fêmea ou macho, “bestial, faminto, repugnante, de ferocidade primitiva e bruta” (CASCUDO, 1954_____. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954., p. 317), destruía os indígenas que dele se aproximassem. Por outro lado, um fato curioso é que a forma da Mãe d’Água (correspondente para os estudiosos do folclore à sereia europeia) é inicialmente ofídica. Lemos no verbete “Mãe d’Água” do Dicionário do folclore brasileiro de Câmara Cascudo (1954, p. 370)CASCUDO, Luís da Câmara. Hipupiaras, botos e mães d’água... . In: _____. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947.: “Ainda em 1819, von Martius escrevia que a Mãe d’Água, paranamaia, mãe do rio, era serpente esverdeada ou parda (Viagem pelo Brasil, III, 135)”. (Registre-se essa instigante sobreposição das imagens da sereia e da serpente no mito brasileiro.)

Voltemos a Adorno. Ele analisa os episódios em que Odisseu, no retorno de Troia a Ítaca, tem um embate com forças arcaicas, míticas e mágicas, que ele vence através da razão, sabendo renunciar num primeiro momento, para poder ao fim afirmar-se plenamente: “Nos perigos mortais que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria vida e à identidade da pessoa” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986., p. 43).

Efetivamente, em todas as aventuras mais significativas vividas pelo herói, delineia-se sempre o mesmo esquema. Por exemplo, no encontro com os lotófagos, Odisseu renuncia a provar da flor do lótus, planta que, uma vez ingerida, o mergulharia num estado de felicidade e comunhão panteísta com a natureza, mas lhe tiraria a memória e, consequentemente, o desejo da volta a Ítaca; ele não come as vacas, proibidas porque pertenciam ao deus Hélio, contrariamente a seus camaradas, que comeram e, todos, pereceram; vence o ciclope Polifemo, que ele cega depois de embebedar, mas renuncia a alardear seu próprio nome de vencedor, dizendo chamar-se “Ninguém” (o que impediu que os demais ciclopes o atacassem quando viessem socorrer o companheiro ferido): “Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer”, diz Adorno (1986b, p. 65)ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986..

Poderíamos falar aqui, freudianamente, da necessidade da repressão para a passagem da Natureza à Cultura. Essa repressão é iconizada pelo episódio paradigmático das Sereias: como já vimos, o herói vence sua sedução fazendo-se, muito sugestivamente, amarrar ao mastro do navio (ao seu próprio eixo, poderíamos interpretar), o que o impediria de atirar-se aos braços das cantoras, ao mesmo tempo que coloca cera nos ouvidos da tripulação para que não ouvissem o canto e continuassem a remar, sem desviar o barco de sua rota. Eu poderia dizer também que aqui nesse episódio vemos a sedução encenada no seu viés etimológico: se-ducere significa conduzir para o lado, levar à parte, afastar, desviar (do latim se = à parte + ducere = conduzir).

De fato, foi baseado nos enfrentamentos de Odisseu com esses seres folclóricos, de narrativas do gênero “maravilhoso”, que os filósofos de Frankfurt teceram suas doutas considerações sobre a constituição do eu, aí vendo um percurso do sujeito em confronto com potências míticas, e através do qual ele se individua, nessa passagem do mythos ao logos: “As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que desviam o eu da trajetória de sua lógica”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986., p. 56.) Efetivamente, Odisseu é transformado no protótipo do ser humano:

A Humanidade teve que se submeter a terríveis provações até que se formasse o eu, o caráter idêntico, determinado e viril do homem, e toda infância ainda é de certa forma a repetição disso. O esforço para manter a coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentação de perdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo.

(ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986., p. 44).

E como em quase todas as obras fundadoras de uma cultura, na Odisseia é a viagem que estrutura a narrativa. Com efeito, da Eneida (viagem de Eneias, até fundar Roma), passando pela Divina comédia (viagem de Dante pelos 3 reinos de Inferno, Purgatório e Céu), pelos Lusíadas (viagem de Vasco da Gama, por mares nunca dantes navegados) etc. etc.... até a travessia do nosso Riobaldo em Grande sertão: veredas, aqui também se desdobra o topos da Vita/Via (Vita = Vida / Via = Caminho), da Vida enquanto Viagem: “A viagem errante de Troia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986., p. 56).

Com efeito, a literatura é testemunha do desenvolvimento espiritual do homem. Assim como a tragédia grega mostra a formação do homem como sujeito responsável, estando então os gregos do século V a.C. às voltas com a categoria da “vontade” (VERNANT; NAQUET, 1977VERNANT, J.-P. Esboços da vontade na tragédia grega. In: VERNANT, J.-P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977., p. 35-62), nos tempos homéricos, recuados de quatro séculos (por volta do séc. IX a.C.), lida-se com algo ainda mais primordial: a questão do in-divíduo no sentido etimológico, do não dividido. Adorno e Horkheimer, ao tratarem do herói da Odisseia, falam de um processo de questionamento da unidade do próprio ser, apontando, por exemplo, o episódio do Canto XX, em que Odisseu, retornado a Ítaca mas ainda incógnito, observa como as servas do palácio se esgueiravam de noite para ir ao encontro dos pretendentes. Ele se enfurece, quer castigá-las, mas não pode agir, sob pena de colocar em risco seus planos futuros. Diz o texto homérico: “o coração em seu peito ladrava. [...] Batendo no coração, punia-o com as seguintes palavras: ‘Aguenta, coração!’”4 4 Aliás, Pacience, mon coeur! é o título de um livro de Jacqueline Romilly (1991), apontando o esboço de uma >psicologia no mundo grego. . Para os filósofos frankfurtianos, “o sujeito ainda não está configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos, seu ânimo e seu coração excitam-se independentemente dele” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986., p. 243). De fato, Adorno e Horkheimer apontam nos embates de Ulisses com as Sereias, com o Ciclope, com os lotófagos etc. uma constante: a necessidade de se constituir como sujeito passa pela necessidade de se dominar. Dizem eles: “Ulisses por assim dizer se perde a fim de se ganhar” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986., p. 56).

No entanto, ao longo do texto, nem sempre se tratará de vencer monstros ou mesmo de driblá-los, às vezes o inimigo é interno. Na consulta que Odisseu faz a Tirésias, no reino dos mortos (na primeira Nekya) no Canto XI da Odisseia (v. 105 e ss.), a volta à casa é posta na dependência da sua capacidade de “domar o coração” .

Finalmente, pensando na literatura de uma maneira geral, creio que se poderia dizer que é esse processo de busca de uma identidade configurada, de uma individuação a ser conquistada, que resta a grande parte da ficção intimista contemporânea, como apontarei mais adiante, ao abordar Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, focando na questão da sereia e do conhecimento.

Uma aprendizagem

Em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.), a odisseia é outra. Nesse romance em que a protagonista tem nome de sereia (Lorelei, a sereia nórdica), toda a temática gira em torno da constituição do eu. Efetivamente, Lorelei (chamada ao longo do romance, na maioria das vezes, pelo apelido redutor “Lóri”) contracena com a personagem Ulisses, estabelecendo-se um complexo jogo de reapropriações, retomadas e inversões da Odisseia. Lóri não apenas descola da protagonista da Odisseia, Penélope, identificando-se ao viajante Odisseu, mas também, começando pelo seu nome, constela toda uma temática ligada à sereia. Assim, de um lado vê-se às voltas com problemas da sedução feminina e suas falácias (sedução no sentido etimológico já apontado, de se- ducere = conduzir para o lado, desviar da rota); mas de outro lado, num nível mais profundo, bordeja a questão da articulação entre a sereia e o saber, que, como vimos, aproxima familiarmente as Sereias de Homero à serpente bíblica, no mito do Gênesis. Não por acaso, a maçã tem uma presença significativa no romance de Clarice, como se verá. E “morder a maçã” é tingido com as cores da modernidade.

Eu falei em reapropriações e inversões: nessa reescrita em clave intimista da epopeia grega, a viagem é interior e efetivada pela personagem feminina, enquanto Ulisses é quem espera. É o caso de se acompanhar o percurso de Lorelei em sua “busca da constituição do sujeito” (para falar nos termos de Adorno), auxiliada não por Atena (a protetora do herói grego), mas por um Ulisses professor de filosofia, numa “aprendizagem” em que, ao final, individuados, os dois se encontrarão no amor. O romance mostra os vários percalços dessa empreitada de constituir-se um “eu”: aventuras todas interiorizadas e, quando exteriores, reduzidas às dimensões da vida moderna ou, mais especificamente, do quotidiano da média-alta burguesia brasileira na virada dos anos 60 a 70 do século passado.

Antes de prosseguir, urge explicar a pertinência da abordagem de um romance brasileiro da contemporaneidade em contraponto com esse texto paradigmático da literatura ocidental, que é a Odisseia. Edward Said, em seu indispensável Humanismo e crítica democrática, aponta o caráter lúdico, de descoberta e invenção que possa ter uma releitura de um texto canônico:

Alguns etimologistas especulam que a palavra “cânone” (como em “canônico”) é relacionada à palavra arábica “qanun”, isto é, “lei” no sentido legalista e compulsório do termo. Mas esse é apenas um significado um tanto restritivo. O outro é um significado musical, o cânon como uma forma contrapontística que emprega inúmeras vozes que em geral imitam rigorosamente umas às outras, uma forma, em outras palavras, que expressa movimento, brincadeira, descoberta e, no sentido retórico, invenção. Vistas dessa maneira, as humanidades canônicas, longe de serem uma tábua rígida de regras fixas e monumentos que nos intimidam a partir do passado – [...] – sempre permanecerão abertas a combinações mutáveis de sentido e significação; toda leitura e interpretação de uma obra canônica a reanima no presente, fornece uma ocasião para releitura, permite que o moderno e o novo sejam situados num amplo campo histórico, cuja utilidade é nos mostrar a história como um processo agonístico que ainda está sendo feito, em vez de terminado e decidido de uma vez por todas.

(SAID, 2007SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 45).

A citação é longa, mas sua riqueza e expressividade na formulação das ideias justificam a transcrição. Efetivamente, tal reapropriação, implicando numa “reanimação” no presente de uma obra que integra, inapelavelmente, o cânone da literatura ocidental, tem como um dos efeitos aproximá-la de nós, mostrá-la viva. E o que é mais importante: esse confronto, fazendo ressaltar as diferenças e peculiaridades de cada polo, permite que se conheça melhor a nossa literatura, os tempos presentes. Uma prática imantada pela ideia de Walter Benjamin, segundo a qual “O problema não é interpretar a obra literária em conexão com o seu tempo, mas sim tornar evidente, no tempo que a viu nascer, o tempo que a conhece e julga, ou seja, o nosso” (BENJAMIN, 1971BENJAMIN, Walter. Histoire littéraire et science de la littérature. In: _____. Poésie et revolution. Paris: Denoel, 1971., p. 14 – tradução minha).

Voltemos a Uma aprendizagem: contrariamente aos entes míticos com que Odisseu se defronta na épica, no romance de Clarice Lispector não são seres excepcionais ou perigos extremos e externos que desafiam a protagonista na sua trajetória rumo a uma individuação, mas os internos. Trata-se de um processo de busca de uma identidade, de uma individuação a ser conquistada, numa aventura interior. Retomo, como se vê, a interpretação adorniana da Odisseia, acima sintetizada como a viagem metafórica do homem ocidental em busca da constituição do eu. Pois bem, essa viagem interior é o que estrutura o romance. Trata-se, efetivamente, de uma “reapropriação” que, conscientemente, essa autora faz da Odisseia, um “capital cultural”, uma “herança clássica” nos termos de Bourdieu5 5 Para Bourdieu, embora seja formalmente oferecido a todos, tal capital cultural pertence realmente aos que detêm os meios para dele se apropriarem, quer dizer, “os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais (ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los” (BOURDIEU, 2007, p. 296-297) (2007, p. 296). Como se verá, há aqui um paralelismo invertido – pois, apesar de o protagonista ser “professor de filosofia” – representando a metis (para os gregos, a inteligência, que é a característica fundamental de Odisseu) – e ser aquele que conduz Lóri, a “constituição do sujeito” é efetivada, ou melhor, nos é mostrada em seu processo, sobretudo pela personagem feminina. Há assim, um jogo entre homem/mulher, inteligência/sedução, seduzido/sedutora, espera/viagem, com os agentes trocados.

Lóri faz a viagem, empreende a sua aventura interior, Ulisses é quem espera, paciente, e pacientemente ensina – posição um tanto irritante ao longo do livro e que, para Benedito Nunes (1973, p. 76)NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edições Quiron, 1973., era “exercida com pedanteria e em tom didático”. Por outro lado, não deixa de aflorar aqui um certo involuntário machismo: é o homem o mestre, o professor universitário, individuado, “pronto”, que dá aulas de Filosofia na faculdade, enquanto a mulher, professorinha primária, reconhece, como diz o narrador, que “a condição humana de Ulisses era maior que a dela” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 27). Em uma ou outra vez, Ulisses também se mostra a caminho, o que o deixa mais interessante, declarando viver uma “procura intensa e uma esperança violenta” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 57). Diz ele: “Lóri, você nem ao menos consegue sentir o que há de profunda e arriscada aventura no que nós dois tentamos? Lóri, Lóri! Nós estamos tentando a alegria! Você ao menos sente isso? E sente como nos arriscamos no perigo?” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 69).

Essa retomada da Odisseia é bastante significativa nesse romance, e o confronto com o texto matriz propicia que se conheça melhor a atualidade. Não no que diz respeito ao protagonismo feminino, pois a Penélope do mito era uma personagem forte, malgrado o contingenciamento de seu lugar social fixado pelo horizonte de sua cultura (ela é a mulher que fica e chora, enquanto seu homem vai para a luta e vive sua odisseia). Embora dependente de marido e filho, na realidade ela tem um papel significativo na épica: engana os príncipes aqueus por 10 anos, com o ardil do manto que tece de dia e desmancha à noite. Astuta (apesar de ser esse o epíteto primordial de Odisseu), ela interfere com força no enredo e com sua trama enreda o mundo masculino.

Como Penélope, Lóri também tece:

[...] faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações [...], faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade [...], faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos [...].

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 20-21).

Vislumbra-se aqui uma série de paralelos entre as duas protagonistas, respectivamente da épica e do romance, irmanadas nas sensações “fiadas com fios de ouro”: nas questões afetivas (“faz de conta que amava e era amada”), em não precisar “morrer de saudade”, nos “nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos”. No entanto, no jogo de reapropriações e inversões que venho apontando, como não ver nesse último “faz de conta” uma alusão não a Penélope, mas a Odisseu amarrado pelos pulsos ao mastro de seu navio, com nós de marinheiro, para escapar da sedução das sábias sereias?

Por outro lado, não só no plano do “faz de conta” da personagem, mas também no pragmático, Lóri é apresentada bordando: “Não vira mais Ulisses, nem ele lhe telefonara. Há uma semana que ela bordava uma toalha de mesa, e com as mãos ocupadas e destras conseguia passar os longos dias das férias escolares. Bordava, bordava” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 73).

As “aventuras” de Lóri no mundo exterior são banais acontecimentos do dia a dia de uma representante da classe média alta do Rio de Janeiro, de fins da década de 60 – no registro do quotidiano. Algumas de suas aventuras do dia a dia, corriqueiras, são apresentadas quase que carnavalizadamente, como, por exemplo, o telefonema dificílimo “para chamar o bombeiro de encanamentos de água” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 19); mas outras se revestem de um caráter inapelavelmente simbólico, como o banho de mar iniciático, de madrugada, sozinha, do qual ela sai fertilizada pela água salgada; ou comer uma galinha à cabidela, enfrentando sentir o “gosto voraz” de sangue do molho pardo, feito com o sangue espesso da ave degolada; ou ir ver os peixes trazidos por pescadores à praia, com o “cheiro sensual” que o peixe cru tem (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 116). Mas há também outras experiências sensoriais a que ela se entrega, como inebriar-se com o perfume da dama-da-noite; como tomar nas mãos uma batata na feira e demoradamente apalpar-lhe a casca surpreendentemente delicada; como comer uma pera, que cede na sua boca; como regozijar-se com o vermelho (afogueando o mundo) das roupas dadas às crianças na escola; ou, numa situação em que “os ouvidos se afiam”, fazer a “meditação do silêncio” etc. etc. Como se vê, Lóri mergulha numa aprendizagem que incide sobre os cinco sentidos, abrangendo, respectivamente, olfato, tato, gosto, visão, audição.

Tal empreitada é dos dois e implicará em domar o coração (para falar nos termos de Homero); em renunciar (para falar nos termos de Adorno). O Ulisses de Uma aprendizagem, embora desejando-a, declara esperar que Lóri “também tenha corpo-alma para amar” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 57).

O livro foi publicado em 1969, e é inevitável a observação de que foi engendrado em plena ditadura civil-militar brasileira, instalada pelo golpe de 64, escrito após o AI-5 (o Ato Institucional n. 5, de fins de 1968), e nada deixa revelar do que se passa no campo político-social. De fato, o tempo que estrutura o romance é o tempo cíclico da natureza. Depois de um capítulo inicial, “A origem da Primavera”, passa-se o Verão, Outono, Inverno, e, previsivelmente, será na Primavera que Lorelei e Ulisses se encontrarão plenamente.

Mostra-se um percurso que é uma aprendizagem afetiva e existencial que vai desembocar na estação em que o amor floresce, em que os seres do reino animal se acasalam e em que tudo brota e reverdece. Nesse livro que se inicia com uma vírgula e acaba com um dois-pontos – portanto, assumindo o caráter intervalar de tudo – delineia-se um percurso. O enredo se sobrepõe ao ciclo do Cosmos, indo de uma Primavera à próxima Primavera – que, como todos sabemos, é um recomeço. E fica indiciado como devem ser interpretados os dois-pontos com que o livro termina (como sugere Ulisses ao final da primeira noite do casal): “Nós dois sabemos que estamos à soleira de uma porta aberta a uma vida nova. É a porta, Lóri” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 176).

O estado que as personagens atingem é o da “individualidade como pessoa” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 178). Tínhamos visto, logo na primeira página, no seu monólogo-fluxo-de-consciência, que a protagonista, ao escolher o vestido que usaria para “se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses”, lembra-se de que ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem o nome, não respondesse “Lóri”, mas “meu nome é eu”6 6 Odisseu, no episódio em que cega o gigante Polifemo, quando este lhe pergunta o nome, responde “Meu nome é Ninguém” (para que os outros >ciclopes não o identificassem quando fosse>m socorrer o companheiro ferido). (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 19-20). No entanto será em outras formulações da busca da subjetividade que esse topos volta, como um leitmotiv: “A mais premente necessidade de um ser humano é tornar-se um ser humano”; “E o que o ser humano mais aspira é tornar-se um ser humano” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 39, e 87) . São máximas que ecoam algo de outro grego: refiro-me à lírica de Píndaro, cujo verso “Torna-te o que tu és!” foi utilizada por Nietzsche como epígrafe para o seu livro Ecce Homo. Pois bem, ao final do romance, as personagens reconhecem esse ideal como atingido.

Retomemos o contraponto com a Odisseia nas demais reapropriações, inversões e transgressões. Afora a pequena passagem, acima referida, em que se alude a Lóri tecelã, a protagonista nada tem de Penélope, mas, nessa sua viagem interior, de um lado identifica-se com Odisseu, experienciando a grande viagem em sua aventura de individuação; de outro lado, a partir do seu nome, que remete, como já apontei, à sereia nórdica, constela toda uma temática ligada à sereia, vendo-se às voltas com problemas da sedução feminina. Mas aqui, num nível mais profundo, bordeja a questão menos evidente da articulação entre sedução e saber, presente nas Sereias de Homero, aproximando-as da serpente bíblica. É isso que justifica, como se verá, a significação que nesse romance ganha a simbologia da maçã. Mas, antes, vamos à Sereia.

Há um momento importante no romance em que o nome da protagonista é explicitado. Diz Ulisses à sua namorada:

É uma pena que seu apelido seja Lóri, porque seu nome Loreley é mais bonito. Sabe quem era Loreley?

– Era alguém?

– Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar, já não me lembro mais dos detalhes.

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p 113-114).

Antes de remontarmos ao poema de Heine, algumas explicações se fazem necessárias: Lorelei (ou Loreley) é um rochedo localizado na Alemanha, junto ao Reno, elevando-se 120 metros acima do nível do rio. A rocha Lorelei situa-se na parte mais estreita do Reno entre a Suíça e o mar do Norte, num segmento caracterizado por pedras que afloram quase à superfície, além de correntezas, que fazem desse um lugar perigoso. Além disso, a região é caracterizada por um eco, que impressiona. Ao longo dos tempos, numerosos marinheiros perderam suas vidas nesse local7 7 Cf. https://www.google.com.br/search?source=hp&ei=R_uXXL_jC7nA5OUPt_O8-A8&q=Heine+Loreley+&btnK=Pesquisa+Google&oq= . Daí se originaram várias lendas folclóricas, sobre ninfas que viviam nas águas; e vários autores da literatura erudita retomaram esse tema, dos quais destaco Brentano e Heine. Clemens Brentano, em 1801BRENTANO, Clemens. Ballade de la Loreley. Tradução francesa. In: _____. Godwi, ou La statue de la mère, 1801., escreveu A balada de Loreley (BELLMANN, 1980BELLMANN, Werner. Brentanos Lore Lay-Ballade und der antike Echo-Mythos. In: Detlev Lüders (Ed.). Clemens Brentano. Beiträge des Kolloquiums im Freien Deutschen Hochstift 1978. Tübingen, 1980.), que conta a história de uma mulher encantadora associada ao rochedo, acusada de enfeitiçar os homens, causando sua morte.

Figura 3
Statue of Lorelei, Loreley port, St. Goarshausen, Rhienland-Palatinate, Germany /

Em 1824, Heinrich Heine revisitou o tema de Brentano em um de seus poemas mais famosos, “Die Lorelei”:

Não sei o que significa que eu esteja tão triste; uma lenda dos velhos tempos não abandona meu pensamento. O ar está frio, escurece e calmo flui o Reno; o cimo da montanha faísca no crepúsculo do fim do dia. A mais bela jovem está sentada lá em cima, maravilhosa; suas joias de ouro brilham, ela penteia seus cabelos louros. Ela se penteia com um pente de ouro enquanto canta uma canção: uma estranha e poderosa melodia. No pequeno barco o marinheiro tomado de uma ânsia pungente não vê os recifes à sua frente, olha só para cima, para o alto. Ao fim, acredito, as ondas Engolem barco e barqueiro; Isso, com seu canto, Foi o que fez Lore-Ley. (HEINE, 1824HEINE, Heinrich. Die Lorelei. In: _____. Buch der Lieder. Berlin: S. Fischer Verlag, 1824.)8 8 Tradução minha (literal e caseira)>. Eis o texto original: “Ich weiß nicht, was soll es bedeuten,/ dass ich so traurig bin;/ ein Märchen aus alten Zeiten,/ das kommt mir nicht aus dem Sinn.// Die Luft ist kühl und es dunkelt,/ und ruhig fließt der Rhein;/ der Gipfel des Berges funkelt/im Abendsonnenschein.// Die schönste Jungfrau sitzet/dort oben wunderbar;/ ihr goldnes Geschmeide blitzet,/ sie kämmt ihr goldenes Haar.// Sie kämmt es mit goldenem Kamme/ und singt ein Lied dabei;/ das hat eine wundersame,/ gewaltige Melodei.// Den Schiffer im kleinen Schiffe/ ergreift es mit wildem Weh;/ er schaut nicht die Felsenriffe,/ er schaut nur hinauf in die Höh.// Ich glaube, die Wellen verschlingen/am Ende Schiffer und Kahn;/ und das hat mit ihrem Singen/ die Lore-Ley getan” (HEINE, 1824). .

Encontram-se aqui as grandes invariantes do mito das Sereias: a mulher associada a um canto que fascina, a atração que leva à morte, a sedução. E aquilo que se foi agregando ao longo do tempo, no recorte das narrativas folclóricas: os longos cabelos loiros, o pente de ouro, o ato de pentear-se enquanto canta. Mas em Heine está totalmente ausente o assunto que particularmente me interessa, a relação da sereia com o saber, a sedução pelo saber.

Retornemos a Uma aprendizagem. Um dado curioso é que, em ao menos duas passagens do romance, como que num relance, alude-se à esfinge – também um ser híbrido de animal com rosto feminino, também ligada a um saber. Diz Ulisses: “Teu rosto, Lóri, tem um mistério de esfinge: decifra-me ou te devoro” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 105). E antes, ao se preparar para encontrar Ulisses, diz Lóri em seu monólogo: “Decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 24). A relação entre essas entidades míticas, esfinge e Sereia, além do fato de a esfinge também “cantar”, e ambas serem monstros diante dos quais não há possibilidade de acordo (ou o ser humano as vence e elas sucumbem na destruição, ou elas vencem, e o homem morre), é sua ligação obscura com um conhecimento.

Processa-se ao longo do romance uma nítida evolução: no início Lóri agencia todos os quesitos habituais da sedução feminina superficial, mas quando vai naquela noite ao encontro de Ulisses, sai de cara lavada, com apenas uma camisola por debaixo da capa de chuva. Detecta-se o abandono progressivo das “práticas” exteriores de sedução – como o uso da maquiagem pesada (que virava uma máscara, também no sentido do “persona”), perfumes, “vestidos caros sempre justos” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 23) – pois, como diz o narrador, “era só isso que sabia fazer para atraí-lo” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 23) etc. etc. – para um outro tipo de sedução, que tem a ver com a busca do conhecimento a que ela se entrega e que fascina o companheiro. Só quando dispensa todos os recursos exteriores da sedução, essa mulher está “pronta” para ficar com o seu homem.

Um dado extremamente interessante é apontar de que maneira Clarice Lispector desenvolve esse elemento que sublinhei em Homero, e que ficou estranhamente ausente na diluição do mito das Sereias: sua inquietante associação a um saber – que, como já referi, as aparenta à serpente do Éden – em cuja sedução caiu Eva, arrastando Adão. E é esse mito que acabará por dominar no final de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, com a prevalência do símbolo da maçã.

Importa dizer que na primeira página do romance já se alude à maçã, no monólogo interior com que se inicia o texto, em que Lóri pensa em “dispor na fruteira as maçãs que eram sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 19)

Essa maçã, Lóri vai comer, de fato, lá pelo meio do livro, e simbolicamente, ao final, num sonho, numa alusão direta e explícita à narrativa bíblica. Mas a leitura do mito feita por Clarice traz uma inversão fundamental: ao morder a maçã, Lóri entra no Paraíso.

Nada substitui o contato com o texto, sem mediações:

Foi no dia seguinte que, entrando em casa viu a maçã solta sobre a mesa.

Era uma maçã vermelha, de casca lisa e resistente. Pegou a maçã com as duas mãos: era fresca e pesada. Colocou-a de novo sobre a mesa para vê-la como antes. E era como se visse a fotografia de uma maçã no espaço vazio. Depois de examiná-la, de revirá-la, de ver como nunca vira a sua redondez e sua cor escarlate – então devagar, deu-lhe uma mordida.

E, oh Deus, como se fosse a maçã proibida do paraíso, mas que ela agora já conhecesse o bem, e não só o mal como antes. Ao contrário de Eva, ao morder a maçã, entrava no Paraíso.

Só deu uma mordida e depositou a maçã na mesa. Porque alguma coisa desconhecida estava suavemente acontecendo. Era o começo – de um estado de graça.

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 154 – grifos meus).

Como se vê, foi aqui convocado, ao lado da épica grega, o outro grande cânon da literatura ocidental, que é a Bíblia, o “Grande Código”, como a nomeia o crítico Northrop Frye (1982)FRYE, Northrop. Le Grand Code: La Bible et la littérature. Trad. Catherine Malamoud. Paris: Seuil, 1982.. E temos aqui também, para citar de novo Edward Said, o cânon como uma forma contrapontística, que “expressa movimento, brincadeira, descoberta, invenção [...] com combinações mutáveis de sentido e significação” (SAID, 2007SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 45). Efetivamente, como quer o crítico palestino, toda leitura e interpretação de uma obra canônica a reanima no presente, fornecendo uma ocasião para releitura (SAID, 2007SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 45).

No contexto das relações entre sedução e conhecimento, o mito bíblico é desconstruído/reconstruído. Lóri morde a maçã, e isso não é uma transgressão; ou melhor, é uma transgressão necessária. A consequência de morder a maçã é detidamente descrita, ela leva à lucidez, uma lucidez de quem, “sem esforço, sabe”. Lóri a chama de estado de graça:

Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradiava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez que Lóri só chamava de leve porque na graça tudo era tão, tão leve. Era uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isso: sabe. Que não lhe perguntassem o que, pois só poderia responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 155).

Sim, vem explicitado com todas as letras: morder a maçã leva ao saber. Mas protagonista “depois lentamente saiu daquela situação.” E ao final do capítulo, chega a percepção de que

Havia experimentado alguma coisa que parecia redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo ficassem acentuados os estreitos limites dessa condição. E exatamente porque depois da graça a condição humana se revelava na sua pobreza implorante, aprendia-se a amar mais, a esperar mais.

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 154).

Trata-se da percepção de um estado contraditório, de seres marcados pela finitude, pela precariedade e pela cisão, à beira do risco; que sabem que a completude é um processo de busca renovada e incessante; que sabem – como diz Chico Buarque, na canção Beatriz – que “para sempre é sempre por um triz”.

Essa experiência, provocada simbolicamente pelo morder a maçã, precede o encontro sexual de Lorelei com Ulisses. Ela vai para a casa dele, dispensados todos os signos convencionais de sedução feminina – “Fora tudo tão rápido e intenso que não se lembrara sequer de se pintar” (LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 167). Nas páginas finais do romance, na sequência de uma conversa dos amantes, ainda na cama, explicita-se a temática da sedução, que é nomeada com todas as letras, mas na chave oposta àquela esperada pelo nome de sereia, e também oposta a uma identificação com a Eva bíblica:

Meu amor, disse ela sorrindo, você me seduziu diabolicamente. Sem tristeza nem arrependimento, eu sinto como se tivesse enfim mordido a polpa do fruto que eu pensava ser proibido. Você me transformou na mulher que sou. Você me seduziu, sorriu ela.

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 177).

Mas, antes, houve o sonho de Lorelei. Pois logo após terem finalmente a sua primeira relação sexual, num “semissono”, ela sonhou com a maçã, dessa vez num contexto erótico:

Foi nesse estado de sonho-deslumbre que ela sonhou vendo que a fruta do mundo era dela. Ou se não era, que acabara de tocá-la. Era uma fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço escuro, brilhando de uma quase luz de ouro. E que no ar mesmo ela encostava a boca na fruta e conseguia mordê-la, deixando-a no entanto inteira, tremeluzindo no espaço. Pois assim era com Ulisses: eles se haviam possuído além do que parecia ser possível e permitido, e no entanto ele e ela estavam inteiros.

(LISPECTOR, 1993LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993., p. 175).
Figura 4
Logotipo da empresa Apple / CC Wikimedia Commons

Plenitude e incompletude, inteireza e cisão. O ser pleno, efetivamente, só existe no mito. Para além desse viés sexualizado que parece querer prevalecer, ao fim, no romance de Clarice, nesse recorte das relações entre sedução e saber, conhecimento e danação, o mito bíblico é desconstruído/reconstruído. O ser humano, consciência cindida, vive sob o signo da fragmentação. E da transgressão. Há aí nessa “fruta do mundo”, nessa “fruta enorme , escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço escuro, brilhando de uma quase luz de ouro”, uma grande condensação: além da maçã do Éden, ela nos remete à maçã de Newton (cuja teoria da gravidade significou um marco decisivo na ciência para a humanidade); ao pretensioso símbolo da cidade de Nova York (a “Big Apple”) e ao que ela significa em termos de civilização e ambiguidade9 9 À guisa de um comentário mínimo, uma reflexão de um filósofo tecendo considerações sobre a Dialética da ilustração de Adorno/Horkheimer: “A dialética da Ilustração é idêntica à do poder burguês. [...] O drama de uma sociedade que desenvolveu sua tecnologia, sua burocracia e seu potencial bélico até o paroxismo, enquanto os indivíduos se submetem a uma impotência tanto maior quanto mais elevado o nível quantitativo do progresso, prefigura-se nessa cisão operada pela epistemologia científica do pensamento da Ilustração” (SUBIRATS, 1986, p. 118). ; e finalmente, remete ao logotipo da maçã mordida da Apple, estampado nos nossos computadores e celulares “inteligentes” (muito posteriores ao romance de Clarice, diga-se de passagem). Aquilo que existe de prometeico no ser humano sempre será disruptor: é roubo do fogo dos céus?

Em todo o caso, a busca do conhecimento bordeja o abismo da danação: “After such knowledge, what forgiveness?”10 10 “Depois de tal saber, qual perdão?” (ELIOT, 2018, p. 67). , diz o verso de Eliot (2018, p. 67) em “Gerontion”.

  • 2
    Utilizarei para todas as citações da épica o texto de Homero (1993)HOMERO. Odisseia. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1993.: Odisseia (tradução Jaime Bruna). São Paulo: Cultrix. Para a localização dos versos no original (através de colchetes) foi utilizada a edição bilíngue de Homero (2011_____. Odisseia. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.): Odisseia (tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34.
  • 3
    Bíblia de JerusalémBÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1987. (São Paulo, Edições Paulinas, 1973). Tradução do texto em português diretamente dos originais.
  • 4
    Aliás, Pacience, mon coeur! é o título de um livro de Jacqueline Romilly (1991)ROMILLY, Jacqueline. Patience, mon coeur!: l’essor de la psychologie dans la littérature grecque classique. Paris: Les Belles Lettres, 1991. (Études Anciennes)., apontando o esboço de uma >psicologia no mundo grego.
  • 5
    Para Bourdieu, embora seja formalmente oferecido a todos, tal capital cultural pertence realmente aos que detêm os meios para dele se apropriarem, quer dizer, “os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais (ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los” (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Intr., org. e seleção por Sérgio Micelli. São Paulo: Perspectiva, 2007., p. 296-297)
  • 6
    Odisseu, no episódio em que cega o gigante Polifemo, quando este lhe pergunta o nome, responde “Meu nome é Ninguém” (para que os outros >ciclopes não o identificassem quando fosse>m socorrer o companheiro ferido).
  • 7
  • 8
    Tradução minha (literal e caseira)>. Eis o texto original: “Ich weiß nicht, was soll es bedeuten,/ dass ich so traurig bin;/ ein Märchen aus alten Zeiten,/ das kommt mir nicht aus dem Sinn.// Die Luft ist kühl und es dunkelt,/ und ruhig fließt der Rhein;/ der Gipfel des Berges funkelt/im Abendsonnenschein.// Die schönste Jungfrau sitzet/dort oben wunderbar;/ ihr goldnes Geschmeide blitzet,/ sie kämmt ihr goldenes Haar.// Sie kämmt es mit goldenem Kamme/ und singt ein Lied dabei;/ das hat eine wundersame,/ gewaltige Melodei.// Den Schiffer im kleinen Schiffe/ ergreift es mit wildem Weh;/ er schaut nicht die Felsenriffe,/ er schaut nur hinauf in die Höh.// Ich glaube, die Wellen verschlingen/am Ende Schiffer und Kahn;/ und das hat mit ihrem Singen/ die Lore-Ley getan” (HEINE, 1824HEINE, Heinrich. Die Lorelei. In: _____. Buch der Lieder. Berlin: S. Fischer Verlag, 1824.).
  • 9
    À guisa de um comentário mínimo, uma reflexão de um filósofo tecendo considerações sobre a Dialética da ilustração de Adorno/Horkheimer: “A dialética da Ilustração é idêntica à do poder burguês. [...] O drama de uma sociedade que desenvolveu sua tecnologia, sua burocracia e seu potencial bélico até o paroxismo, enquanto os indivíduos se submetem a uma impotência tanto maior quanto mais elevado o nível quantitativo do progresso, prefigura-se nessa cisão operada pela epistemologia científica do pensamento da Ilustração” (SUBIRATS, 1986SUBIRATS, Eduardo. Paisagens da solidão: ensaios sobre filosofia e cultura. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1986., p. 118).
  • 10
    “Depois de tal saber, qual perdão?” (ELIOT, 2018ELIOT, T. S. Poemas. Org. e trad. Caetano Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 67).
  • MENESES, Adelia Bezerra de. Sereias: sedução e saber. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 75, p. 71-93, abr. 2020.

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “O conceito de esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”. In: _____. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
  • BELLMANN, Werner. Brentanos Lore Lay-Ballade und der antike Echo-Mythos. In: Detlev Lüders (Ed.). Clemens Brentano. Beiträge des Kolloquiums im Freien Deutschen Hochstift 1978 Tübingen, 1980.
  • BENJAMIN, Walter. Histoire littéraire et science de la littérature. In: _____. Poésie et revolution Paris: Denoel, 1971.
  • BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.
  • BOITANI, Piero. Il grande racconto di Ulisse Bologna: Società editrice il Mulino, 2016.
  • BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas Intr., org. e seleção por Sérgio Micelli. São Paulo: Perspectiva, 2007.
  • BRENTANO, Clemens. Ballade de la Loreley. Tradução francesa. In: _____. Godwi, ou La statue de la mère, 1801.
  • BRUNEL, Pierre. Verbete “As Sereias na Antiguidade”. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
  • CARPENTER, Rhys. Folk tale, fiction and saga in the homeric epics Berkeley; Los Angeles, University of California Press, 1974. (The Sather Classical Lectures, XX).
  • CASCUDO, Luís da Câmara. Hipupiaras, botos e mães d’água... . In: _____. Geografia dos mitos brasileiros Rio de Janeiro: José Olympio, 1947.
  • _____. Dicionário do folclore brasileiro Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954.
  • ELIOT, T. S. Poemas Org. e trad. Caetano Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • FRYE, Northrop. Le Grand Code: La Bible et la littérature. Trad. Catherine Malamoud. Paris: Seuil, 1982.
  • GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954.
  • GRIECO, Agnese. Atlante dele sirene: viaggio sentimentale tra le creature che ci incantano da milleni. Milano: Il Saggiatore, 2017.
  • GRIMAL, Pierre. Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine Paris: PUF, 1988. (Verbete “Sirènes”).
  • HANSEN, William. Homer and the folktale. In: MORRIS, I.; POWELL, B (Org.). A new companion to Homer Leiden: Brill, 1997, p. 442-462.
  • HARRISON, J. E. Prolegomena, p. 198. Apud GERMAIN, Gabriel. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de France, 1954, p. 384.
  • HEINE, Heinrich. Die Lorelei. In: _____. Buch der Lieder Berlin: S. Fischer Verlag, 1824.
  • HOMERO. Odisseia Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1993.
  • _____. Odisseia Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.
  • LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
  • MORRIS, I.; POWELL, B. (Org.). A new companion to Homer Leiden: Brill. 1997.
  • NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector São Paulo: Edições Quiron, 1973.
  • PAGE, Denys. Racconti popolari nell’Odissea. Trad. R. Velardi. [S. l.]: Liguore Editore, 1988.
  • PLATÃO. “Da Criação da Alma” no Timeu, 1029-c-e. Apud BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 831, n. 7.
  • ROMILLY, Jacqueline. Patience, mon coeur!: l’essor de la psychologie dans la littérature grecque classique. Paris: Les Belles Lettres, 1991. (Études Anciennes).
  • SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • SUBIRATS, Eduardo. Paisagens da solidão: ensaios sobre filosofia e cultura. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1986.
  • VERNANT, J.-P. Esboços da vontade na tragédia grega. In: VERNANT, J.-P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga São Paulo: Duas Cidades, 1977.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2019
  • Aceito
    16 Jan 2020
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br