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Cordialidade, malandragem e autoritarismo: aspectos do Brasil por Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Roberto Schwarz

Cordiality, trickery and authoritarianism: aspects of Brazil by Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido and Roberto Schwarz

RESUMO

O presente artigo dedica-se a reler as noções de cordialidade, malandragem e autoritarismo – conforme estas se apresentam, respectivamente, nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Roberto Schwarz –, a fim de sugerir a validade de tais conceitos para a interpretação do momento brasileiro contemporâneo. Para tal, recorda e coloca em perspectiva tais noções, aproximando-as da situação presente.

PALAVRAS - CHAVE
Sérgio Buarque de Holanda; Antonio Candido; Roberto Schwarz; cordialidade; malandragem

ABSTRACT

The current article aims to rethink the notions of cordiality, trickery and authoritarianism - as they are presented, respectively, in the works of Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido and Roberto Schwarz -, in order to suggest the validity of such concepts for the interpretation of contemporary Brazilian moment. To this end, it recalls and puts such notions in perspective, bringing them closer to the present situation.

KEYWORDS
Sérgio Buarque de Holanda; Antonio Candido; Roberto Schwarz; cordiality; trickery

Em razão de acontecimentos recentes, o Brasil voltou a chamar a atenção global. Temas como a violência e o autoritarismo do país têm pautado debates em uma proporção não vista há tempos. Nesse novo cenário, rever determinadas discussões célebres sobre a formação nacional pode ajudar a compreender fenômenos que, embora atuais, possuem raízes históricas profundas. É nesse sentido que o presente artigo objetiva repensar os conceitos de cordialidade, malandragem e autoritarismo, respectivamente, conforme estes se apresentam nas obras do sociólogo Sérgio Buarque de Holanda e dos críticos literários Antonio Candido e Roberto Schwarz. Considerando também a produção literária brasileira – notadamente o romance Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antonio de Almeida, discutido por Candido e Schwarz em textos memoráveis –, busca-se traçar o percurso do debate acerca dos mencionados aspectos da vida local, com vistas a demonstrar como determinados problemas sociais herdados dos tempos da colonização se transformaram e se ressignificaram ao longo da história, produzindo traços nacionais marcantes que têm vindo à luz de maneira dramática desde o processo político que alguns têm designado como o fim da Nova República.

Vejamos.

Cordialidade, segundo Sérgio Buarque de Holanda

Após estudar na Alemanha, ler Max Webber e se interessar pelo método dialético de Hegel, o jovem sociólogo Sérgio Buarque de Holanda publicaria em 1936 a primeira edição do livro Raízes do Brasil, que se tornaria um clássico de interpretação da vida nacional. Para além das referências estrangeiras que vale mencionar, a obra vinha à tona no rescaldo da Revolução brasileira de 1930, quando a assim chamada República Velha – que revezava no poder as oligarquias rurais das regiões de Minas Gerais e São Paulo – fora destruída pelo movimento militar liderado por Getúlio Vargas. O fenômeno político suscitava paixões radicais, fossem seculares e iluministas, fossem de cunho nacionalista-autoritário. Sérgio (1995b, p. 169)_____. Nossa revolução. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b. demonstrava plena consciência do que estava em jogo à época e, por isso mesmo, propugnava uma “revolução” democrática, opondo-se à veia fascista de nomes como Oliveira Vianna e outros intelectuais orgânicos do Movimento Integralista brasileiro, o qual designava como “mussolinismo indígena” (HOLANDA, 1995b_____. Nossa revolução. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b., p. 187). Para tal, buscava ler a jovem nação a partir de ângulo próprio, fundamentando-se em uma reconstituição da experiência histórica local desde a colonização.

Dentre os muitos textos de Raízes do Brasil que se tornariam célebres, “O homem cordial” viria a ser o mais debatido. Nele, Sérgio apresenta a conhecida tese da cordialidade do Brasil, segundo a qual a vida do país se caracteriza pela aversão ao ritualismo solene e à assepsia do trato polido, sendo antes afeita ao contato próximo, desconhecendo “qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151., p. 148). Esse traço, que podia ser entrevisto nas miudezas cotidianas, era ilustrado através de exemplos pitorescos, como o real “pendor acentuado para o emprego dos diminutivos” e da terminação “inho” aposta às palavras, empregada no sentido de “familiarizar” mais com “as pessoas ou os objetos” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151., p. 148). Esse fundo emotivo aparecia também na esfera religiosa, nas festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora e sua crença em um “Cristo que desce do altar para sambar com o povo” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151., p. 149). Por essas e outras, o brasileiro arquetípico teria algo de caloroso e maleável, opondo-se à sisudez hirta da tradição anglo-saxã, sobretudo àquela dos países onde a cosmovisão puritana era dominante.

A cordialidade, como era de se supor, refletir-se-ia também na esfera institucional. Para o sociólogo, o país repelia a abstração dos valores com pretensão de validez universal e a fria rigidez da lei republicana, deixando-se levar ao sabor dos arranjos e das conveniências práticas. No funcionamento do estado local, de fato sempre se destacavam “vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151., p. 146). Para afiar e ilustrar o argumento, a prosa buarquiana recordava a tragédia grega de Sófocles na qual a cidadã tebana Antígona era proibida pelo rei Creonte de enterrar o cadáver de seu irmão Polinice, condenado a ser devorado pelos animais por atentar contra a pólis. Fosse nos trópicos, sugeria Sérgio, Antígona possivelmente triunfaria sobre o monarca.

Tudo isso, como mostrava o texto em continuação ao que os outros capítulos de Raízes do Brasil já expunham, devia-se à predominância, entre os brasileiros, dos móbeis patriarcais conservados da ordem colonial assentada na monocultura e no latifúndio. À altura da década de 1930, em uma sociedade que ainda não conhecera o galopante ritmo de industrialização e urbanização dos anos ulteriores, vigoraria ainda certa ética familiar dos engenhos que tudo aproximava e fluidificava.

Certamente se tratava de um problema, já que a linha de pensamento de Sérgio Buarque de Holanda (1995a, p. 141)_____. Nossa revolução. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b. se esmerava justamente em demonstrar que “só pela transgressão da vida doméstica e familiar é que nasce o Estado”, no sentido inverso da tese de muitos conservadores da época, para os quais as nações eram prolongamentos do núcleo caseiro. Lá onde Sérgio e a intelectualidade progressista de então miravam a consolidação de uma organização estatal liberal-democrática, a cordialidade brasileira sugeria um entrave, pois “onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151., p. 143-144).

Por outro lado, o texto mais programático de Raízes do Brasil – “Nossa revolução” – também mencionava certa conformidade entre o homem cordial brasileiro e os valores iluministas, o que demonstrava entendimento dialético da questão. Dizia Sérgio:

[...] as ideias da Revolução Francesa encontram apoio em uma atitude que não é estranha ao temperamento nacional. A noção da bondade natural combina-se singularmente com o nosso já assinalado “cordialismo”. A tese de uma humanidade má por natureza e de um combate de todos contra todos há de parecer-nos, ao contrário, extremamente antipática e incômoda. E é aqui que o nosso “homem cordial” encontraria uma possibilidade de articulação entre seus sentimentos e as construções dogmáticas da democracia liberal.

(HOLANDA, 1995b_____. Nossa revolução. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b., p. 184).

Em uma passagem particularmente interessante, o sociólogo ventilava até uma contribuição brasileira ao marxismo, postulando que o temperamento nacional se ajustava à “‘mentalidade anarquista’ do nosso comunismo”, mas não à “disciplina rígida” que a Terceira Internacional então reclamava dos seus partidários (HOLANDA, 1995b_____. Nossa revolução. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b., p. 187).

Em suma, a cordialidade tropical, vista com afinado senso hegeliano de contradição, parecia tanto elemento a ser transcendido por um Estado superior, quanto salvaguarda diante de eventuais ameaças de totalitarismo. Todavia, não era possível prever que, um ano depois da publicação da primeira edição de Raízes do Brasil, Getúlio Vargas colocaria em marcha um autogolpe, instituindo a ditadura do Estado Novo, que tocaria o processo modernizador à maneira autoritária.

Malandragem, segundo Antonio Candido

Entre o término do Estado Novo em 1945 e o golpe militar de 1964, o Brasil conheceria a assim chamada Segunda República, que duraria 19 anos. Finda essa com o estabelecimento de nova ditadura, o debate sobre os temas relativos ao “cordialismo” seria reacendido em nova chave. Nesse âmbito, ganharia destaque o ensaio “Dialética da malandragem”, redigido pelo então professor da Universidade de São Paulo Antonio Candido e publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP em 1970. O objetivo fundamental do texto era oferecer elementos para uma interpretação do romance Memórias de um sargento de milícias (1853), de Manuel Antonio de Almeida, que até então gerava problemas de classificação entre a crítica. Ao fim e ao cabo, como bem se sabe, faria mais do que isso ao dar novo fôlego às teorias buarquianas. Para os fins do presente artigo, cabe recordar tanto a narrativa de Manuel Antonio quanto a argumentação de Candido, ainda que ambas sejam conhecidas.

Difundidas nos jornais do século XIX a modo de folhetim, as Memórias de um sargento de milícias narravam a história do jovem Leonardinho, filho de imigrante lusitano, apadrinhado por habitantes do Rio de Janeiro durante o período em que a Família Real Portuguesa se vira forçada pelo cerco napoleônico a abandonar a Península Ibérica para fixar residência no Brasil. Daí a narrativa começar pela frase: “Era no tempo do rei” (ALMEIDA, 2000ALMEIDA, Manuel Antonio de. (1854). Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ateliê, 2000., p. 7). Por causa de seu tom leve e trocista a obra contrastava com a retórica solene e algo bacharelesca de grande parte dos romancistas profissionais que lhe eram contemporâneos. Não obstante, contrapunha ao sentimentalismo de obras como A Moreninha (1844), do carioca Joaquim Manuel de Macedo, uma sucessão de acontecimentos cômicos, contados em tom de galhofa, entre festas, enrascadas, brigas e muitas trapaças do protagonista.

Não sabendo como catalogar o inusitado objeto literário, os intelectuais brasileiros ainda batiam cabeça na segunda metade do século XX, entendendo-o ora como análogo à novela picaresca espanhola (caso de Josué Montello), ora como romance documental (caso do então dirigente do Partido Comunista Brasileiro, Astrojildo Pereira). Já Candido, partindo de um comentário breve de Darcy Damasceno, demonstrava como, em primeiro lugar, as discrepâncias entre Memórias de um sargento de milícias e obras clássicas da picardia castelhana, como La Vida de Lazarillo de Tormes (1554), desautorizavam comparações simplistas. No Siglo de Oro, pois, o pícaro é atirado pela pobreza no mundo da servidão, razão pela qual tem seu caráter moldado pelas agruras da vida, que o dotam de implacável pragmatismo, bem como de um humor corrosivo que marca o ponto de vista do narrador-personagem. Na vida de Leonardo, ao contrário, o herói é acolhido por protetores (primeiro o Compadre, depois a Comadre), que o retiram do mundo da labuta e lhe dão abrigo material, preservando-lhe certa bondade descrita com simpatia em perspectiva de terceira pessoa.

Além disso, para Candido, o valor do romance de Manuel Antonio não estaria propriamente em sua eficiência em documentar a vida de seu tempo à maneira retratista. Afinal, como já observava Mário de Andrade, a narrativa não apresentava escravos (ver ANDRADE, 1978ANDRADE, Mário de. Introdução. In: ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias. Ed. crítica Cecília de Lara. Rio de Janeiro: LTC, 1978.). No mesmo sentido, não contava com o amplo séquito de burocratas que acompanhou a corte lusitana em sua vinda ao Brasil no início do século XIX. Isto é, o escopo da obra era relativamente restrito, já que elidia simultaneamente o principal elemento do mundo do trabalho e uma parte significativa das camadas dirigentes. Aliás, aí estaria justamente seu trunfo: ao enfocar os estratos médios do Rio de Janeiro de então, Manuel Antonio de Almeida formalizaria um senso de experiência histórica peculiar, caracteristicamente nacional.

Tratava-se, dizia Candido (1970, p. 77)CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., da “dialética da ordem e da desordem”. Nas Memórias de um sargento de milícias, Leonardo oscila entre um polo alinhado com a moral da época (onde se localiza o Compadre bom barbeiro ou a moça correta Luisinha) e um polo oposto onde faz as vezes de trickster ao lado de figuras devassas (como o arruaceiro profissional Chico-Juca ou a farrista capciosamente chamada de Vidinha). Esse trânsito, que termina por incorporar o protagonista ao universo da retidão no happy ending que o converte em sargento de milícias, seria propriamente o princípio de composição que rege o entrecho, mimetizando em sentido forte certa permissividade dos homens livres pobres da época, que, não sendo escravos nem senhores, se tornavam habitués do trambique e dos favores pessoais como meio de subsistência. Logo, o mérito de Manuel Antonio estaria não em registrar as nuances da vida social a modo naturalista, mas em cristalizá-las em estrutura narrativa – processo que Candido (1970, p. 75)CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89. chamaria de “redução estrutural” e Roberto Schwarz (2002, p. 126)SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156. mais tarde classificaria como “dialética de forma literária e processo social”.

Um exemplo particularmente ilustrativo da mencionada arquitetura em pêndulo é o caso do major Vidigal, baseado em figura verídica. Encarnação da ordem instituída, ele cumpre papel de estraga-prazeres intransigente, acabando com festas e atirando personagens na cadeia quando de seus deslizes ilegais. A simples menção do seu nome provoca pânico na gandaia. Como lembra Mário de Andrade (1978)ANDRADE, Mário de. Introdução. In: ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias. Ed. crítica Cecília de Lara. Rio de Janeiro: LTC, 1978., uma quadrinha popular daqueles tempos cantava: “avistei o Vidigal/ fiquei sem sangue/ se não sou tão ligeiro/ o quati me lambe”. Surpreendentemente, contudo, ao prender Leonardo, o impiedoso militar cede aos mais libidinosos instintos e se move diretamente ao polo da desordem quando é requisitado pela Comadre, madrinha do protagonista, acompanhada de uma prostituta e de sua amiga dona Maria, a libertar o herói da narrativa. Diz Candido (1970, p. 81)CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89.: “Vidigal é declarado ‘babão’ e se desmancha de gosto entre as saias das três velhotas”. Leonardo, claro, termina solto.

Esse vaivém entre o cumprimento da lei e as concessões ilícitas seria condensado em símbolo na cena em que o mesmo Vidigal, visitado pelas senhoras, surge de tamancos e roupa caseira, contradizendo sua correição e formalidade habituais. A propósito desse momento, recorda o crítico:

Atarantado com a visita, desfeito em risos e arrepios de erotismo senil, corre para dentro e volta envergando a casaca do uniforme, devidamente abotoada e luzindo em seus galões, mas com as calças domésticas e os mesmos tamancos batendo no assoalho. E aí temos o nosso ríspido dragão da ordem, a consciência ética do mundo, reduzido à imagem viva dos dois hemisférios [...].

(CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., p. 81).

Posto contra uma perspectiva histórica da teoria literária, por si só, o entrelaçamento candidiano de arte e sociedade não apresentava grande ineditismo metodológico. Já Lukács (de quem Candido era leitor) dizia décadas antes que “em literatura o verdadeiramente social é a forma” (apud COSTA, 2012COSTA, Iná Camargo. Nem uma lágrima. São Paulo: Expressão Popular, 2012., p. 12). Para a crítica brasileira, à altura dos anos 1970, porém, tratava-se de palavra de ordem muitas vezes levantada, mas ainda não cumprida – o que tornava tal leitura das Memórias uma novidade local, com notável importância para o pensamento materialista. Além disso, a dialética de ordem e desordem sugeria uma interpretação relativamente original do Brasil. Por um lado, colocava em debate aspectos da vida de setores sociais que vinham à tona há pouco, cartografadas, por exemplo, na clássica tese de doutorado Homens livres na ordem escravocrata (1969), defendida por Maria Sylvia de Carvalho FrancoFRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. (1969). Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Edunesp, 1997. na Universidade de São Paulo apenas um ano antes da dialética da malandragem. Por outro lado, o texto de Candido elevava esses mesmos aspectos à qualidade de traço formativo da sociedade brasileira, conferindo-lhe caráter positivo.

A debatida opinião do crítico a esse respeito, embasada por seu entendimento do que considera o primeiro “romance malandro” (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., p. 71), pode ser vista particularmente na seção do texto intitulada “Mundo sem culpa” (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., p. 84), em que o autor discorre sobre a complacência com que o narrador de Manuel Antonio trata as trapaças de Leonardo, bem como a canalhice dos outros personagens. Após a corrupção do major Vidigal, por exemplo, o protagonista é solto para ser depois incorporado ao exército com boa patente, ainda se casando com Luisinha, de quem arremata cinco heranças. Via de regra, o crime, nas Memórias, compensa. Trata-se, segundo o crítico, de “nostalgia indeterminada de valores mais lídimos”, avessa à rigidez no cumprimento da norma e opositora do que “ameaça a labilidade, que é uma das dimensões fecundas do nosso universo cultural” (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., p. 88). É com isso em vista que Candido compara a história de Leonardo ao enredo de The scarlet letter, de Nathaniel Hawthorne, publicado seis anos após Memórias de um sargento de milícias. Se o americano ecoava a moral puritana de sua sociedade que há não muito tempo condenara as feiticeiras de Salem à fogueira, o romance brasileiro estudado se caracterizava por “uma atitude mais ampla de tolerância corrosiva” e por uma “encantadora neutralidade moral” (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., p. 88).

Antonio Candido, vale dizer, não romantizava o Brasil. Ao contrário, como já mencionado, demonstrava plena consciência de que Manuel Antonio deixava a esfera escravista e “outras violências” ausentes da representação. Em todo caso, conforme também já exposto, o intelectual enxergava dimensão democrática na malandragem, supondo que seus elementos garantiriam “nossa inserção em um mundo eventualmente mais aberto” (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, jun. 1970, p. 67-89., p. 88). Historicizada, a operação se revela compreensível: escrevendo em 1970, Candido se encontrava no mundo mais fechado da ditadura militar brasileira pós-promulgação do Ato Institucional n. 5 – AI-5 (BRASIL, 1968BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso em: 4 dez. 2018.
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) pelo general Arthur da Costa e Silva, que fechou o Congresso, proibiu a existência de partidos políticos de oposição e iniciou um período bárbaro de perseguição, encarceramento, tortura e extermínio da esquerda. Assim, o intelectual obstava a tolerância do universo de lei frouxa ao autoritarismo tropical, que já queimava suas próprias bruxas nos porões do regime militar.

Nesse sentido, o conceito de malandragem, em Candido, em muito faz lembrar a ideia de cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda, de quem o crítico era amigo pessoal, tendo inclusive escrito o prefácio à edição de 1967 de Raízes do Brasil. Nas memórias malandras de Leonardo, por exemplo, grande parte dos personagens eram mesmo chamados pelo narrador condescendente no diminutivo – casos de Vidinha, Luisinha e do próprio Leonardinho. Precisamente essa sorte de proximidade maleável, já apontada em “O homem cordial” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151.), é que é contraposta pelos textos candidianos e buarquianos à impessoalidade inflexível da parte protestante do mundo ocidental-cristão, ganhando nos dois casos caráter de aposta política contra tendências totalitárias. A diferença entre Raízes do Brasil e “Dialética da malandragem”, todavia, é que esta última não enfatizava uma dimensão negativa da cordialidade a ser superada no processo de edificação de uma ordem futura, visto que uma ordem ditatorial, já estabelecida, agora cumpria ser aberta.

Mais tarde, justamente determinados aspectos sombrios do caráter cordial do país, relativamente desconsiderados por Candido, seriam colocados em discussão pela crítica.

Roberto Schwarz, salvo engano

Em 1987, após aniquilar os setores armados da esquerda, assassinar centenas de ativistas e liquidar um terço do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, a ditadura militar tutelara uma transição lenta e gradual ao governo civil do senador José Sarney – latifundiário proprietário de grande parte do estado do Maranhão, alçado ao poder por um colégio eleitoral composto apenas de parlamentares. Embora o sufrágio ainda não vigorasse, o Brasil se preparava para os processos políticos que dariam origem à redação da chamada Constituição Cidadã de 1988 e à sua primeira eleição presidencial direta desde 1961. Em grande parte dos livros de história, o período seria descrito como uma redemocratização.

Nesse contexto, o crítico Roberto Schwarz escreveria o ensaio “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’” (1987). Schwarz trabalhara como professor de literatura na Universidade de São Paulo antes da promulgação do AI-5 (BRASIL, 1968BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso em: 4 dez. 2018.
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), que o forçara a se mudar para Paris, onde concluiria seus estudos de doutorado. Fora colega de departamento de Antonio Candido, com quem manteria estreita amizade e colaboração até o falecimento deste último em 2017. Já retornado ao Brasil com o afrouxamento da repressão, Schwarz se dedicaria a rever parte da produção intelectual correspondente ao período não democrático, com especial atenção à contribuição candidiana e ao que entendia como “o primeiro estudo literário propriamente dialético” (SCHWARZ, 2002SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156., p. 129) a se publicar no país.

O texto de Schwarz se dedicava, antes de mais nada, a destrinchar a importância de “Dialética da malandragem” na valorização do romance como objeto eurístico de grande potencial. Em um momento em que o debate entre a esquerda já não era mais severamente proibido, o crítico confrontava o expediente hermenêutico de Candido com a “linha dos althusserianos, para os quais, como para os positivistas, a forma é uma construção sem realidade própria” (SCHWARZ, 2002SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156., p. 142). Assim, enaltecia a interpretação da gangorra entre ordem e desordem como contraponto ao sociologismo do marxismo vulgar e do patriotismo ufanista, que enxergavam o valor da literatura apenas no que tinha de documento mais explícito. A atenção à forma, ao contrário, permitiria o exame da sociedade em movimento, tal como ela enfim existe. Dizia Schwarz:

[...] deixar em segundo plano a cor local é deixar para trás o Brasil-afirmação-de-identidade do nacionalismo romântico (e talvez da crítica naturalista) ao passo que insistir na construção literária é trazer à frente o Brasil-processo-social, sem unanimidade possível, da consciência moderna.

(SCHWARZ, 2002SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156., p. 136).

No entanto, embora sejam exemplo notável de reconhecimento e admiração pela obra candidiana, os “pressupostos, salvo engano” não deixavam de submeter esta última ao “comentário impiedoso da atualidade” (SCHWARZ, 2002SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156., p. 152). Schwarz, filiado à tradição crítica alemã de corte materialista que recomendava a visão dialética, compreendia a necessidade de pôr em perspectiva histórica a exegese do Brasil, cujos méritos exaltava. Afinal, demonstrava também que a tese da oscilação malandra constituía “denominador comum das indicações sociais”, significando continuidade em relação aos “clássicos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre nos anos 30” (SCHWARZ, 2002SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156., p. 150). É realmente nesse ponto da revisão que o método originalmente hegeliano-webberiano de Raízes do Brasil, passando pela leitura não declarada mas efetivamente lukácsiana de Candido, encontra a dialética de Schwarz de modo a constituir um circuito de pensamento que pode oferecer instrumentos para o decifrar de fenômenos contemporâneos.

Isso porque, a certa altura, “Pressupostos, salvo engano” insinua o seguinte questionamento: “a repressão desencadeada a partir de 1969 – com seus interesses clandestinos em faixa própria, sem definição de responsabilidades [...] – não participava ela também da dialética de ordem e desordem?” (SCHWARZ, 2002SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156., p. 154). Enxergada a partir do presente, a pergunta já parece retórica. Em relação aos elementos da vida nacional, a perversa operação executada pela ditadura militar consistia exatamente em sequestrar – a bem da ordem e do progresso – a característica frouxidão das instituições legais da nação, esvaziando-a de conteúdo democrático de modo a prender, exilar, torturar e executar o que considerasse obstáculo. Assim, a prevalência dos interesses individuais ou grupais sobre a abstração das prerrogativas legais universalistas, já detectada em “O homem cordial” (HOLANDA, 1995aHOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936). O homem cordial. In: _____. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995a, p. 139-151.), adquiria agora dimensão macabra. Ressignificada, a malandragem que absolvera o simpático Leonardinho passava a ser desculpa para afastar os direitos humanos do horizonte e acelerar a eugenia política ao bel-prazer das forças armadas dirigentes. De possível para-choque da democracia nacional, a cordialidade tinha seus sentidos invertidos, produzindo, por ironia histórica, um sistema tão ou mais assassino do que o das próprias modernas sociedades anglo-saxãs de ética protestante como se desvendasse também a verdade dessas últimas, cujos macarthismos e thatcherismos insistiriam em desmentir historicamente a retórica dos checks and balances.

Mais do que o enfim tolerante major Vidigal, o símbolo desse reordenamento, com sua arbitrária jurisdição subterrânea operando à margem da legalidade de fachada, seria o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – torturador e algoz profissional do regime, reconhecido pelo ex-sargento do Exército Marival Chaves como “senhor da vida e da morte” dos centros de repressão da ditadura. Segundo Fernandes, Ustra simplesmente “escolhia quem ia viver e ia morrer” (apud ÉBOLI, 2013ÉBOLI, Evandro. Ex-agente do DOI-Codi diz que Ustra torturava e que era “senhor da vida e da morte”. O Globo, 10 maio 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/ex-agente-do-doi-codi-diz-que-ustra-torturava-que-era-senhor-da-vida-da-morte-8350197>. Acesso em: 11 maio 2013.).Autoritarismo “malandro”

A tese de que o aparato penal edificado pela ditadura não tenha sido totalmente desmantelado durante a transição democrática é assumida, no Brasil, não apenas pela intelectualidade de esquerda. Na obra FHC, forças armadas e polícia: entre o autoritarismo e a democracia, 1999-2002 (2005), o cientista político liberal Jorge ZaveruchaZAVERUCHA, Jorge. FHC, forças armadas e polícia: entre o autoritarismo e a democracia, 1999-2002. Rio de Janeiro: Record, 2005., professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-membro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), demonstra como mecanismos autoritários seguem funcionando no país através do Ministério Público, do Poder Judiciário, da Polícia Militar e da Constituição de 1988, cujo artigo de número 142 prevê a mobilização das Forças Armadas a pretexto de “garantia da lei e da ordem”2 2 Com efeito, de 1989 até o atual momento, essa última prerrogativa já foi usada para garantir a repressão pelo Exército a uma greve de trabalhadores do setor petroleiro durante o governo de Fernando Henrique Cardoso; para conter protestos contra a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no mandato da presidente Dilma Rousseff; e para encerrar uma greve de caminhoneiros durante o governo do vice-presidente Michel Temer, entre outros episódios. . Nesse sentido, os recentes episódios de judicialização da política vividos pelo país, com processos não fundamentados e arbitrariedades de toda espécie, continuam ribombando o argumento de Raízes do Brasil, segundo o qual o Estado brasileiro opera a partir dos desígnios de facções sociais específicas (logicamente pertencentes às camadas dominantes). Em texto de 2018, Iná Camargo Costa afirma, sobre acusações jurídicas recentes, que

[...] seus praticantes são funcionários que tratam o Estado como se fosse coisa sua e seus atos se transformaram em questão pessoal. Em vez de justiça, dedicam-se a uma variante nacional da vendeta, como se estivéssemos em plena Idade Média. Este tipo de anomalia no exercício das funções públicas também concorre para a caracterização do homem cordial.

(COSTA, 2018_____. Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque. OUTRAS PALAVRAS, 2018. Disponível em: <https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque>. Acesso em: 4 dez. 2018.
https://outraspalavras.net/brasil/polemi...
).

Desse ponto de vista, o Brasil parece muito menos uma sociedade propriamente liberal-democrática regida pelo aspecto luminoso da malandragem do que um regime sufragista sui generis, onde vigoram através das instituições os móbeis mais soturnos de uma cordialidade autoritária herdada dos tempos da colônia. De fato, como a reconstituição histórica do presente argumento faz notar, em relação mesmo a outros países sul-americanos são poucos os períodos não despóticos da história brasileira. De apêndice de Portugal, o país passa a império no momento em que grande parte das nações periféricas recém-libertadas já se tornavam repúblicas. Algo análogo também ocorre nos dois primeiros períodos mais ou menos liberal-republicanos da vida da nação, que são cortados por golpes (1937 e 1964). Talvez por isso mesmo, na canção “Cálice”, de 1978, o cantor Chico Buarque, filho de Sérgio, cantasse: “como é difícil, pai, abrir a porta/ essa palavra presa na garganta”.

Essa, no entanto, não é a única dimensão negativa da retraduzida malandragem tropical. Em 2007, Edu Otsuka publicaria, na Revista do Institutos de Estudos Brasileiros, o texto “Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias”, no qual chamaria a atenção para, por exemplo, o inicial sentido de contenda pessoal entre os personagens de Vidigal e Leonardo. No início, pois, o major passa a perseguir o malandro que escapara da sua primeira tentativa de enviá-lo ao cárcere. Elevando o desejo de vingança a obsessão, Vidigal chega mesmo a temer que o trickster brasileiro se torne uma pessoa correta: “se ele se emenda, perco eu a minha vingança” (ALMEIDA, 2000ALMEIDA, Manuel Antonio de. (1854). Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ateliê, 2000., p. 282 apud OTSUKA, 2007, p. 109). Otsuka elenca essa e outras passagens das Memórias com o intuito de demonstrar como, para além da pendulação entre ordem e desordem, a obra de Manuel Antonio se orienta por uma estrutura de inimizades pessoais entre os personagens, que se guiam pelo desejo de bater uns aos outros, por vezes com requintes de crueldade. Esse espírito de rixa seria, também, característico do universo dos homens livres e desvalidos no Brasil do século XIX, para os quais o trabalho era elemento escasso tanto quanto ainda é para boa parte da população, o que acirrava o instinto de subsistência a extremos de competição bárbara. Nem arcaísmo nem premonição, o problema sugere uma característica do modo de produção capitalista brasileiro que permanece. Diria Otsuka:

Não se trata, portanto, de uma inclinação “natural” dos pobres que, abandonados a si mesmos, entregam-se aos impulsos violentos, mas sim de um padrão de comportamento socialmente mediado – e em última instância determinado pela evolução moderna da economia. Dando configuração ao espírito rixoso, o romance de Manuel Antonio de Almeida apreende as peculiaridades da sociedade periférica, resultantes da dinâmica contraditória da própria civilização, cujo fundamento incivil, tanto na periferia quanto no centro, revela o núcleo de violência próprio aos movimentos de expansão do capitalismo.

(OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2017, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i44p105-124.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
, p. 124).

O quanto esse traço de violência continua a marcar o Brasil em meio ao esgarçamento social contemporâneo é assunto que, assim como o permanente estado nacional de anormalidade jurídica, cumpre discutir. Em vista dos acontecimentos políticos recentes, há sérios indícios de que ambos os problemas estejam inclusive se misturando e se retroalimentando – o Estado autoritário encarnando uma agressividade geral, ao mesmo tempo se apresentando como único gestor possível de uma situação de desagregação do mundo do trabalho que produz aquela mesma agressividade. No recente texto “Aspectos ideológicos do bolsonarismo” (2018), por exemplo, Felipe Catalani se debruça sobre os acontecimentos que precederam a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018, argumentando que

[...] agora o próprio Estado (e a justiça oficial) cumprirá o papel de justiceiro popular e de linchador – a transformação espetacular (e popular!) de um juiz como Sergio Moro em “herói” já dava sinais da guinada linchadora e justiceira da justiça e do Estado, que agora se casa com um punitivismo de massas, que já vinha celebrando atos bárbaros como prender um ladrão no poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta e tatuar à força a testa de outro

(CATALANI, 2018CATALANI, Felipe. Aspectos ideológicos do bolsonarismo. Publicado em 31/10/2018. Blog da Boitempo. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/31/aspectos-ideologicos-do-bolsonarismo>. Acesso em: 4 dez. 2018.
https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/31...
).

Nesse sentido, os temas da cordialidade, da malandragem e do autoritarismo continuam a ter importância, indicando que, sob alguns pontos de vista, determinados aspectos da vida nacional ainda recordam de maneira sinistra aqueles do “tempo do rei”, se não das “raízes do Brasil”.

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    Com efeito, de 1989 até o atual momento, essa última prerrogativa já foi usada para garantir a repressão pelo Exército a uma greve de trabalhadores do setor petroleiro durante o governo de Fernando Henrique Cardoso; para conter protestos contra a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no mandato da presidente Dilma Rousseff; e para encerrar uma greve de caminhoneiros durante o governo do vice-presidente Michel Temer, entre outros episódios.
  • LIMA, Gabriel dos Santos. Cordialidade, malandragem e autoritarismo: aspectos do Brasil por Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Roberto Schwarz. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,Brasil, n. 76, p. 93-104, ago. 2020.

Referências

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    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm
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  • CATALANI, Felipe. Aspectos ideológicos do bolsonarismo. Publicado em 31/10/2018. Blog da Boitempo. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/31/aspectos-ideologicos-do-bolsonarismo>. Acesso em: 4 dez. 2018.
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  • COSTA, Iná Camargo. Nem uma lágrima São Paulo: Expressão Popular, 2012.
  • _____. Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque. OUTRAS PALAVRAS, 2018. Disponível em: <https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque>. Acesso em: 4 dez. 2018.
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  • ÉBOLI, Evandro. Ex-agente do DOI-Codi diz que Ustra torturava e que era “senhor da vida e da morte”. O Globo, 10 maio 2013. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/ex-agente-do-doi-codi-diz-que-ustra-torturava-que-era-senhor-da-vida-da-morte-8350197>. Acesso em: 11 maio 2013.
  • FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. (1969). Homens livres na ordem escravocrata São Paulo: Edunesp, 1997.
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  • _____. Nossa revolução. In: _____. Raízes do Brasil 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995b.
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  • SCHWARZ, Roberto. (1987). Pressupostos, salvo engano, de “dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 129-156.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2019
  • Aceito
    13 Jul 2020
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