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A história vista pelas lentes das ciências sociais: uma interpretação de Economia colonial brasileira nos séculos XVI e XVII, de Celso Furtado

History seen through the lens of the social sciences: an interpretation of “Economia colonial brasileira nos séculos XVI e XVII” by Celso Furtado

RESUMO

O artigo propõe uma leitura da tese de doutorado de Celso Furtado, intitulada Economia colonial brasileira nos séculos XVI e XVII, defendida na Universidade de Paris em 1948. Embora seja considerado o trabalho mais historiográfico de Celso Furtado, argumentamos que seu contato com a história, nesse momento, foi orientado por questões colocadas pelas ciências sociais. Para tanto, examinamos alguns temas de sua tese indicando como a análise é inspirada por questões originadas da sociologia e da economia.

PALAVRAS-CHAVE:
Celso Furtado; Escola dos Annales; história econômica brasileira

ABSTRACT

The article proposes a reading of Celso Furtado’s doctoral thesis, entitled Economia colonial brasileira nos séculos XVI e XVII, defended at the University of Paris in 1948. Although it is considered the most historiographical work of Celso Furtado, we argue that his contact with history, at that time, was guided by issues arising from the social sciences. To this end, we examine some themes in his thesis, demonstrating how analysis is oriented by questions originating from sociology and economics.

KEYWORDS:
Celso Furtado; Annales School; economic history of Brazil

Uma das grandes contribuições de Celso Furtado ao campo da economia foi, sem dúvida, a incorporação da perspectiva histórica para explicar o fenômeno do subdesenvolvimento e captar as formas de interação das sociedades humanas com o sistema capitalista. Essa importância primordial da história, evidente em seus escritos, caminha lado a lado com sua análise econômica, social e cultural, reforçando a historicidade dos fenômenos examinados. A história está no centro da originalidade furtadiana: é a espinha dorsal de sua teoria do desenvolvimento econômico, o lastro de suas reflexões sobre as possibilidades de autonomia dos estados nacionais, a força latente capaz de fazer frente aos impasses da globalização e uma fonte vital na luta pela construção da nação.

Pensamento extremamente rico e profundo, que guarda também certos mistérios. Se ele realiza agudas análises a respeito do desenvolvimento econômico, se percebe os diferentes contextos e condições nos quais a industrialização pode romper estruturas subdesenvolvidas, se identifica a força dos traços culturais no perfil de consumo das sociedades e o papel da criatividade como energia libertadora, suas reflexões raramente dirigem-se para questões metodológicas que revelem os bastidores conceituais de suas interpretações. No caso da história, especificamente, ela está em toda parte, mas recolhe-se e desaparece tão logo tentamos delimitar o local específico que ocupa na paisagem dinâmica de seu pensamento.

Seria somente na década de 1970 que Celso Furtado começaria a nos fornecer pistas a respeito da constituição e formação de seu pensamento. Elas fazem parte de seus textos estritamente autobiográficos, escritos a partir de 1973, com Aventuras de um economista brasileiro e, depois, em A fantasia organizada de 1985, ou de outras retrospectivas de sua trajetória, como as que aparecem em O capitalismo global, de 1999, e Em busca de novo modelo, de 2002.

Mas o momento decisivo nesse desvelamento da importância da história em sua obra ocorreu em 2001, com a publicação de sua tese de doutorado, Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII, defendida em 1948 na Faculdade de Direito da Universidade de Paris2 2 Para um panorama da recepção dessa publicação entre os intérpretes de Celso Furtado, ver: Saes, 2020. . Esse trabalho permitiu pela primeira vez uma avaliação mais segura de seus conhecimentos históricos sob diversos ângulos: as referências bibliográficas que seriam omitidas em Formação econômica do Brasil (SZMERACSÁNY, 1999), o diálogo com o pensamento social brasileiro (RICUPERO, 2005RICUPERO, Bernardo. Celso Furtado e o pensamento social brasileiro. Estudos Avançados, v. 19, n. 53, 2005, p. 371-377. https://doi.org/10.1590/s0103-40142005000100024.
https://doi.org/10.1590/s0103-4014200500...
) e com a historiografia brasileira e europeia (VIEIRA, 2007VIEIRA, Rosa Maria. Celso Furtado: reforma, política e ideologia (1950-1964). São Paulo: Educ, 2007.; PAULA, 2015PAULA, João Antonio de. Celso Furtado, a história e a historiografia. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 10, n. 17, p. 144-165, jul.-dez. 2015.), o uso de procedimentos metodológicos próprios do historiador, como o método comparativo (SILVA, 2011SILVA, Roberto Pereira. O jovem Celso Furtado: história, política e ideologia (1941-1948). Bauru: Edusc, 2011.) e as aproximações com a Escola dos Annales (SILVA, 2011; BOIANOVSKY, 2015BOIANOVSKY, Mauro. Between Lévi-Strauss and Braudel: Furtado and the historical-structural method in Latin American political economy. Journal of Economic Methodology, v. 22, n. 4, 2015, p. 1-26. https://doi.org/10.1080/1350178x.2015.1024879
https://doi.org/10.1080/1350178x.2015.10...
).

Mais recentemente, publicações levadas a cabo por Rosa Freire d’Aguiar à frente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, vieram complementar e ampliar o material disponível aos intérpretes para examinar o papel da história no pensamento de Furtado. A publicação, em 2014, de Anos de formação - 1938-1948, sexto volume da coleção Arquivos Celso Furtado, traz à luz textos anteriores a seu ingresso na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), entre artigos na imprensa, inéditos e uma pequena seleção de cartas do autor. Mais recentemente, Diários intermitentes (2019) tornou acessíveis seus diários pessoais, nos aproximando ainda mais de sua relação com a história, que remonta aos 18 anos, quando registrou, no dia 20 de agosto de 1938, a ideia de “escrever uma História da Civilização Brasileira” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 48).

Esse conjunto de trabalhos abriu caminho à compreensão de um período de intenso convívio com a história, durante os anos passados na França, entre 1946 e 1948, enquanto escrevia seu trabalho de doutoramento. Nesse momento, Paris era o epicentro de uma imensa renovação nos estudos históricos, sintomaticamente chamada por Peter Burke (1997BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: Editora da Unesp, 1997.) de “a Revolução Francesa da historiografia”. Vivendo nesse ambiente revolucionário, escrevendo uma tese sobre a economia brasileira nos séculos XVI e XVII na Universidade de Paris, contando com a “belíssima coleção de livros sobre o Brasil” (FURTADO, 1997aFURTADO, Celso. Aventuras de um economista brasileiro. In: FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Tomo II. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Paz e Terra, 1997a, p. 9-26., p. 113) da biblioteca do Museu do Homem, Celso Furtado teria entrado em sintonia com o “estado da arte do melhor da historiografia europeia”, considerando-se os “autores e fontes que utilizou, pelo enquadramento dos problemas teóricos e historiográficos que fez” (PAULA, 2015PAULA, João Antonio de. Celso Furtado, a história e a historiografia. Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 10, n. 17, p. 144-165, jul.-dez. 2015., p. 158). Esse contato não se restringiu à produção europeia, mas também foi ocasião para adquirir “amplo conhecimento das fontes e historiografias do Brasil e de Portugal” (PAULA, 2015, p. 151). Exposto ao modo revolucionário de fazer história na França, ele teria tido um forte contato com a disciplina, cuja marca se faria sentir não somente no texto apresentado em 1948, mas em sua produção posterior.

A história sob as lentes das ciências sociais

Hoje nos parece inegável a importância desse período francês na obra de Celso Furtado. Contudo, não se deve exagerar o impacto dessa estadia pois nosso autor chega à cidade-luz com uma formação já avançada em ciências sociais e uma consciência clara da função e do papel do intelectual na sociedade3 3 Cabe destacar, sob esse aspecto, a importância da leitura de Karl Mannheim, que Celso Furtado (1997a) considera fundamental em sua trajetória. Ver: Vieira, 2007; Bianconi, 2014. . Seu contato com a história não foi o mesmo que esperaríamos de alguém que se profissionalizava no ofício de historiador. Ao contrário, sua aproximação tinha como ponto de fuga as ciências sociais, estas sim, seu principal foco de interesse nessa época. É isso que podemos ler na carta que escreveu a seu pai, Maurício Furtado, em 23 de março de 1947:

[...] quase todo o trabalho de pesquisa é feito dentro do método histórico e fundado numa imensa erudição. Falta, entretanto, o ar novo da pesquisa sociológica. Nas ciências sociais, que é o terreno a que me refiro, navega-se mais pelas águas do passado que pelas do presente. O que me está interessando, presentemente, é a pesquisa histórica, coisa que no Brasil quase não se faz. (FURTADO, 2014FURTADO, Celso. Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra o doutorado. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014. (Arquivos Celso Furtado 6)., p. 315).

Em outra missiva, agora a Jacques Billard, no mês seguinte, lemos:

[...] o gosto pela pesquisa histórica é indubitavelmente o traço característico do estudo. E neste ponto eu gostaria de fazer uma observação: há uma tendência marcada para a cultura livresca, afastada dos problemas da realidade. Trata-se, em parte, de uma questão de método: abusa-se do método histórico. Tenho a impressão de que uma verdadeira revolução será feita aqui quando criarem na universidade uma faculdade de sociologia. (FURTADO, 2014FURTADO, Celso. Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra o doutorado. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014. (Arquivos Celso Furtado 6)., p. 376).

Nesses dois testemunhos, percebemos que o estudo da história, em si mesmo, não lhe interessava, sendo imprescindível o contato com as ciências sociais, sob o risco do conhecimento se tornar “livresco”. Além disso, a reflexão sobre o passado deveria ter olhos no presente, nos “problemas da realidade”. Em 1947, portanto, ao iniciar seu doutoramento, Celso Furtado sonha com o impacto das ciências sociais sobre a história. Mas a qual ciência social em particular estaria se referindo? Meses depois, em 30 de setembro, início do ano letivo na Europa, anota em seu diário: “estou pensando em dedicar este ano estritamente aos estudos de economia: farei o curso superior na universidade e tentarei uma defesa de tese de doutorado” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 108-109). A dedicação à economia, sabemos hoje, será duradoura em sua obra4 4 Tamás Szmrecsányi (1999, p. 209) notou muito bem a comunhão desses dois interesses nesse período parisiense ao indicar que a tese de doutorado é um trabalho “desenvolvido no contexto mais genérico de uma ciência social voltada tanto para a história quanto para a economia”. Outros autores (COUTINHO, 2008; ALCOUFFE, 2009) também apontam os anos de estudos parisienses como o momento de aprofundamento na teoria econômica. .

A percepção de Celso Furtado nos incita a refletir sobre o contexto historiográfico do momento. Desenrolava-se a renovação da história pelo contato com as ciências sociais, projeto central da Escola dos Annales. Segundo Peter Burke (1997BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: Editora da Unesp, 1997., p. 11-12), essa renovação passaria pela “substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema”, pelo abandono da história política e, em terceiro lugar, pela “colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística, a antropologia social e tantas outras”. A essas características, François Dosse (2003DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: Edusc, 2003., p. 100) acrescenta que “a interrogação do passado a partir do presente tem para os Annales valor heurístico”. Já Fernando Novais e Rogério Silva (2013NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. Introdução. In: NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. (org.). Nova história em perspectiva. V. 1. São Paulo: Cosac e Naify, 2013., p. 9) definem a Escola dos Annales, precisamente pelo diálogo com as ciências sociais, sendo esse diálogo o marco divisório na história da historiografia, entre a história tradicional e a história moderna, inaugurada pela escola francesa.

Dessa forma, ecoando uma insatisfação partilhada pelos fundadores daquela revista, mas sem dar indícios de que tinha consciência da revolução em curso, o trabalho de doutoramento de Celso Furtado traria as marcas particulares de alguém que adentra nos labirintos da história tendo as ciências sociais como guia.

Como formularia muito mais tarde em seu livro Em busca de novo modelo:

[...] ao introduzir a dimensão histórica, fui levado também a colocar uma questão metodológica: que contribuição podiam dar as ciências sociais, em particular a economia, ao estudo da história? Pergunta similar vinha sendo feita pelos historiadores europeus da École des Annales. Eles buscavam ajuda nas ciências sociais, e nós, partindo destas, buscávamos a resposta na história. (FURTADO, 2002FURTADO, Celso. Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. São Paulo: Paz e Terra, 2002., p. 73)5 5 Estabelecer as formas de diálogo possíveis entre a história e as ciências sociais ou a distinção entre uma problemática originada de um ou outro domínio disciplinar não são problemas simples. Segundo Novais e Silva (2011) a história se vale das ciências sociais quando preserva suas características principais: estabelecimento de uma narrativa dos acontecimentos, compreensão da totalidade do acontecer humano e criação de uma memória social. Para William Sewell Jr. (2017), por sua vez, o domínio exclusivo do historiador é a reflexão sobre a temporalidade, enquanto os cientistas sociais buscam resultados normativos. Um diálogo entre elas seria pela inserção da temporalidade nos campos do saber sociais e por maior discussão teórica e conceitual no trabalho dos historiadores. .

O interesse pelas ciências sociais, auxiliadas pela história, foi em direção contrária à da escola francesa, o que nos leva ao problema desse artigo. Como nosso autor, partindo de questões específicas do campo das ciências sociais, interrogou a história em sua tese de doutorado? Como podemos captar, nesse trabalho de 1948, uma problemática típica das ciências sociais que “busca resposta na história”?

Como já apontamos, parte da solução decorre de Celso Furtado já possuir uma bagagem intelectual suficientemente ampla para direcionar e hierarquizar seus interesses de pesquisa. As leituras no campo das ciências sociais remontam à sua graduação em direito no Rio de Janeiro e, talvez, mesmo antes disso. Desde os inícios da década de 1940 ele produzia artigos sobre teoria da organização, administração pública, modelos de planejamento, estudos no campo da ciência política e textos sobre conjuntura econômica internacional6 6 Ver o volume que reúne o conjunto dessa produção (FURTADO, 2014). Para uma análise desses escritos, ver: Silva, 2011. Renata Bianconi (2014) apresenta a melhor reconstituição das fontes e leituras de Celso Furtado no período anterior à Cepal. . A isso, deve-se acrescentar o desejo de compreender o presente, leitmotiv retomado com diversas variações em sua obra e perceptível em Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII.

Quanto a esse interesse pelo presente, destaquemos que sua ideia original nunca foi escrever uma tese de doutorado como parte de um ritual acadêmico que o conduziria à docência, mas sim viajar pela Europa e assistir à reconstrução econômica e social por que passava o continente. Após ver malogradas algumas alternativas de viabilizar a estadia na Europa, percebeu que “a alternativa era fixar-me em Paris, obter uma matrícula universitária que justificasse minha permanência e, a partir daí, viajar pelo continente convulsionado onde já eram visíveis as primeiras emanações da Guerra Fria” (FURTADO, 1997bFURTADO, Celso. A fantasia organizada. In: FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Tomo I. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Paz e Terra, 1997b, p. 87-360., p. 98)7 7 Celso Furtado prossegue: “A verdade é que, na época, em nada me atraíam os títulos, particularmente os universitários. Não via sentido em perder tempo estudando para preparar exames, desviando a atenção do mar de coisas importantes que estavam ocorrendo no mundo real diante de meus olhos” (FURTADO, 1997b, p. 101-102). .

A matrícula na Universidade de Paris, portanto, não foi o objetivo principal, mas o meio pelo qual realizaria o desiderato de vivenciar um continente em reconstrução. Essa problemática maior foi um norte e um filtro para a assimilação dos conhecimentos históricos, que jamais se cristalizaram em seus escritos como erudição histórica8 8 Podemos considerar erudição histórica, na acepção corrente no século XIX, como o domínio das fontes - aliás, mecanismo imprescindível para a escrita da história - e a discussão de problemas, o estabelecimento de um dado ou de uma informação controversa a partir do manejo da documentação. Nessa segunda acepção, apareceria como uma interrupção na narrativa, de tal maneira que “algumas narrativas poderiam ser eruditas em função de seu lastro documental e da maneira como combinavam narrativa com momentos de resolução de dúvidas” (SANTOS, 2014, p. 83). , mas se constituíram em elementos capazes de dar substância e permitir a problematização de questões nascidas nas ciências sociais, sobretudo a economia e a sociologia.

Ora, como vimos, Celso Furtado espanta-se com a forte presença do método e da erudição histórica que caracteriza o ambiente intelectual parisiense. Ele contrapõe a isso “o ar novo da pesquisa sociológica”, antídoto que permitiria concatenar a atividade de pesquisa com os problemas do presente. Preocupações que estão expressas no próprio subtítulo de sua tese: “elementos de história econômica aplicados à análise de problemas econômicos e sociais”. Por isso, Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII é fundamental para compreender como a história o auxiliou na compreensão de “problemas econômicos e sociais”. Assim, propomos examinar dois momentos desse trabalho, as partes I e III, onde as questões por nós levantadas aparecem de maneira cristalina.

Da primeira parte destacaremos a formação do Estado português e seu papel nas grandes navegações como um exemplo da problemática da relação entre classes sociais, interesses econômicos e poder político. Da última parte do texto de doutoramento, por sua vez, iremos reter a análise sobre os “atavismos coloniais” que atravessaram séculos e colocam problemas no presente. Esses dois elementos, nos parece, permitirão apreender como Celso Furtado aproximou-se da história sob as lentes das ciências sociais.

As classes sociais na formação do Estado português

Logo no início de sua tese, o autor explica sua hipótese de trabalho: “a burguesia comercial marítima portuguesa, precocemente desenvolvida, foi a força propulsora do movimento das descobertas” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 14). Essa premissa teria origem na obra do intelectual português António Sérgio, desenvolvida posteriormente por Jaime Cortesão. Contudo, Furtado (2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 14-15) destaca que, “abandonando o método estritamente histórico - que é o dos autores citados - encaramos os mesmos problemas de um ponto de vista sociológico. [...] procuramos reconstituir a marcha geral dos acontecimentos e captar-lhes o sentido”9 9 Segundo Furtado (2001, p. 15 “A. Sérgio induziu sua ‘hipótese’ da análise de um trecho do cronista Zurara”. .

O abandono do método histórico e a opção por uma abordagem sociológica nos colocam diante, não de uma narrativa de acontecimentos, mas sim da delimitação de um movimento de conjunto.

De fato, António Sérgio chegou à sua “hipótese” de trabalho através da interpretação da Crônica da tomada de Ceuta por el Rei D. João I, escrita por Gomes Eanes de Zurara em 1453. Para o ensaísta português, três fatores embasam sua proposição: a sugestão da tomada do território africano teria partido do “financista e vedor da fazenda do rei”, João Afonso, que se contrapõe à ideia do soberano de organizar um torneio para armar seus filhos como cavaleiros; João Afonso, por sua vez, seria um representante “da burguesia do comércio marítimo, com caráter cosmopolita”; em terceiro lugar, a origem dos recursos para a empresa provinha dos comerciantes burgueses (SÉRGIO, 1980SÉRGIO, António. A conquista de Ceuta. Anotações (1919). In: SÉRGIO, António. Ensaios. T. I. 3. ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1980., p. 266-269)10 10 Em outros textos (1971, 1980) António Sérgio defenderia sua tese de críticos como David Lopes e mesmo Jaime Cortesão, nos quais reforçaria os dois últimos pontos de sua hipótese. Em seu ensaio “Sobre a revolução de 1383-1385”, por sua vez, acentua ainda mais a proximidade da burguesia com a nova casa reinante, pois considera que “cabe o nome de burguesa a uma revolução qualquer quando é o burguês como burguês quem dirige a luta, quem dela se aproveita; quando o burguês é, não soldado, mas meneur e político” (SÉRGIO, 1971, p. 135). Para uma discussão sobre essa interpretação. Ver: Silva, 2011, p. 114-118. .

Conforme anunciada, a interpretação de Celso Furtado se descola da narrativa dos eventos para buscar os fundamentos sociais do processo. Para tanto, caberá um papel fundamental à definição de feudalismo proposta por Henri Pirenne, que conformará a interpretação furtadiana da peculiaridade da burguesia e do Estado português. Celso Furtado, em outro momento, mencionou o impacto causado pela obra do historiador belga, que propõe uma história atravessada pela sociologia e pela economia11 11 Segundo Thoen e Vanhaute (2011), Henri Pirenne, influenciado pela Escola Histórica Alemã, incorporou conceitos oriundos da economia, da sociologia e da psicologia em sua obra. Além disso, ele seria o grande responsável por espalhar a concepção de uma história econômica fora dos países germanófilos da Europa. . Ao relembrar as leituras de seus anos de graduação em direito, nos diz que:

[...] ampliei minhas leituras no campo da sociologia, principalmente da sociologia alemã: Max Weber, Tönnies, Hans Freyer, Simmel. Também nessa época tomei contato com Henri Pirenne, que será de importância definitiva para mim. São os trabalhos desse autor sobre a história medieval europeia, bem como os de Sombart, Sée e outros sobre as origens do capitalismo, e, afinal, os de António Sérgio sobre a história portuguesa, que me permitirão ver a importância dos estudos de economia para melhor compreender a História. (FURTADO, 1997aFURTADO, Celso. Aventuras de um economista brasileiro. In: FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Tomo II. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Paz e Terra, 1997a, p. 9-26., p. 19-20).

Ora, é importante destacar que, embora historiador, Henri Pirenne deu grande atenção aos fenômenos econômicos, e essa proximidade entre história e ciências sociais, aliás, é o que explica que Marc Bloch e Lucien Febvre, nas duas ocasiões em que trabalharam para criar a revista dos Annales, o tenham convidado para dirigir o periódico (BURKE, 1997BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. São Paulo: Editora da Unesp, 1997., p. 32-33)12 12 O papel de Pirenne como um dos pioneiros da história econômica é assinalado por outros autores, tais como François Dosse (2003) e Pierre Racine (1997). . Dele, Celso Furtado irá reter, nessa primeira parte da tese, a definição de feudalismo, que se mostrará fundamental para captar a dinâmica social do reino português antes dos descobrimentos.

Para Pirenne, o feudalismo é resultado da interrupção do comércio no Mediterrâneo, o que forçou a sociedade europeia a se reorganizar em novas bases: economia agrária autossuficiente em unidades de produção fechadas - os feudos -, involução da escravidão para a servidão como resultado de uma economia baseada na terra, diminuição até quase o desaparecimento das trocas mercantis e substituição por trocas in natura. Em consequência, as cidades, centros de comércio na Antiguidade, perdem sua função mercantil, tornando-se locais de administração civil ou religiosa. O mesmo acontece com a burguesia comercial, que perde importância ou é jogada às margens dessa sociedade para dar lugar a uma aristocracia ligada à terra, dependente do trabalho servil para sua própria reprodução social (PIRENNE, 1936PIRENNE, Henri. Histoire de l’Europe: des invasions au XVIe siècle. 4. ed. Paris: Alcan ; Bruxelas: NSE, 1936., p. 58-68)13 13 Para uma síntese das teses de Pirenne, ver: Verhulst, 1989. .

Esse processo mudaria completamente a face da Europa, marcando uma ruptura muito mais radical com o mundo antigo do que as invasões bárbaras. No entanto, segundo Furtado, seu impacto foi muito restrito em Portugal, onde a presença moura, o intercâmbio social e as trocas econômicas, sobretudo com a costa africana, jamais cessaram durante o medievo lusitano, o que impediu “a formação de um sistema econômico fechado, autárquico, que teria que ser o fundamento mesmo da ordem feudal” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 21). Além disso, a burguesia nascente se formou em oposição ao caráter agrário de Castela. Assim, enquanto a nobreza agrária tinha sua origem na apropriação de territórios conquistados aos mouros, a burguesia originava-se dos portos e se fortaleceu tão logo foi possível retomar ou ampliar o comércio marítimo com Flandres e Inglaterra, ao norte e com os portos do Levante a partir dos séculos XII e XIII. Se, para Pirenne, a contradição entre campo e cidade se instala na Europa medieval nos séculos XIII e XIV, na sociedade portuguesa essa oposição jamais se apresentou com a mesma radicalidade. No interior do continente, onde os fundamentos sociais e econômicos do feudalismo vigoraram por mais de três séculos, o sistema resistiu às mudanças, enquanto em Portugal a burguesia não encontrou uma forte aristocracia: “a monarquia lusitana [...] se afirmou através de uma vitória da cidade sobre o campo - a burguesia sobre uma fraca aristocracia feudal” (FURTADO, 2001, p. 21). Em outras palavras, a peculiaridade portuguesa reside em que, ao contrário do resto do continente, as instituições feudais jamais se cristalizaram, e mesmo os latifundiários não possuíam raízes na sociedade, pois sua riqueza e seus territórios vinham da Reconquista e eram, portanto, recentes. Em consequência, as instituições feudais não estavam sedimentadas o suficiente para refrear a expansão do comércio e da burguesia urbana.

Observando o movimento da análise, vemos que Celso Furtado retoma as origens sociais de Portugal e seu processo de independência frente a Castela não a partir de batalhas e intrigas palacianas e tampouco recorrendo a uma narrativa de eventos, mas sim observando a composição social da nação. Ao identificar latifundiários e burgueses, encontra nessas duas classes um traço de origem moura que as unificaria, e uma ausência de valores feudais que também diminuiria os conflitos entre elas, se comparadas à forte oposição entre cidade e campo que marca o fim do feudalismo e o surgimento do capitalismo no resto da Europa.

Outra característica marcante da trajetória portuguesa foi “a identificação da cidade, da população marítima, com o espírito de independência nacional” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 27). As classes ligadas ao comércio se uniram para impedir uma reunificação com Castela, e desse confronto surgiu a Revolução de Avis. Para Furtado, o Estado português nasce burguês, com a ascensão dessa classe à sua direção. Ela não possuía ligações com o passado feudal, e sua liderança foi facilitada pela ausência de instituições feudais. Enquanto França e Inglaterra atravessaram um processo secular de assimilação da burguesia pela nobreza através de casamentos, a sociedade portuguesa se caracterizou pela ausência de laços de sangue, mobilidade social - como exemplificado pela participação dos judeus nos empreendimentos comerciais nos primeiros séculos - e a preponderância da riqueza móvel sobre os bens fundiários. Esses elementos aproximavam o reino português das cidades italianas, onde também se “implantará a supremacia definitiva da classe burguesa, isto é, dos núcleos urbanos” (FURTADO, 2001, p. 27).

Dessa forma, a precoce ascensão política da burguesia e sua capacidade de incorporar os interesses das classes agrárias em seu projeto de expansão estão na origem e são a causa da expansão marítima. Para ele, o infante d. Henrique representava “a fusão definitiva das duas classes no espírito de expansão e conquista do Estado português” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 30). Em outras palavras, “as expansões marítimas portuguesas, bem como a colonização que delas resultou, são fenômenos diretamente ligados à ascensão da classe comercial no pequeno reino ibérico, ascensão ocorrida precocemente por motivos sociais e econômicos mencionados” (FURTADO, 2001, p. 31).

Com isso, Celso Furtado acompanhou a formação da nacionalidade portuguesa e a expansão marítima sob a ótica das classes sociais que a compõem e das tensões e modificações entre elas. Abandonando a história factual, o recurso à análise social tem em sua base a definição de feudalismo de Henri Pirenne14 14 Embora a análise centrada nas classes sociais portuguesas seja fundamental para Celso Furtado, ele não explicita qual conceito de classe está utilizando. No entanto, nos parece ser possível aplicar para o caso a mesma observação que Thoen e Vanhaute (2011, p. 344 - tradução nossa) fizeram sobre o historiador belga: “Para Pirenne e muitos outros historiadores e economistas que eram seus contemporâneos, este [o termo classe] era um termo geral para designar um grupo social”. . Ao optar por essa abordagem das navegações, percebemos um distanciamento da erudição histórica e a aproximação de interpretações que mobilizam as ciências sociais. A concepção feudalismo é fundamental para a caracterização da dinâmica social e econômica que dará origem tanto ao Estado português, quanto às expedições comerciais. A observação dessa dinâmica social e econômica, por sua vez, dispensa Celso Furtado do exame da cronologia das batalhas e das intrigas palacianas, pois o processo histórico tem como motor a dinâmica da sociedade e os interesses econômicos. É assim que podemos entender o abandono do “método estritamente histórico” e a opção por uma abordagem dos problemas centrada em “um ponto de vista sociológico” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 14-15). É a formação e a dinâmica das classes sociais que impulsionam e dão a direção e o sentido das transformações analisadas: tanto a Revolução de Avis quanto a expansão marítima resultam de processos políticos, sociais e econômicos amplos, e não de figuras individualizadas. A compreensão do fenômeno é feita pelo “movimento de conjunto”. Essa interpretação, vale dizer, causou impacto em seu diretor de tese, o economista Maurice Byé. Em um dos poucos comentários que registou em seu diário a respeito da seção de defesa, anota: “o Byé disse-me que minha tese tinha concorrido para que ele mudasse seu ponto de vista relativamente ao estado de desenvolvimento histórico de Portugal à época da Reconquista, e por aí adiante” (FURTADO, 2019, p. 117).

A herança colonial e a permanência das elites econômicas no poder

Na terceira parte de sua tese de doutorado, intitulada “Atavismos coloniais do Brasil atual”, também é possível captar como a problemática das ciências sociais organiza e interroga o conhecimento histórico. Na introdução de seu trabalho, Celso Furtado (2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 20) anuncia: “na última parte da presente tese fazemos uma tentativa de aplicação da teoria de Henri Pirenne de correlação dos períodos da história social do capitalismo com a formação de novas elites dirigentes”.

Aqui podemos encontrar o que João António de Paula classificou, em referência aos Annales, como uma típica história-problema que, ademais, restará como uma interrogação permanente na obra de Celso Furtado15 15 Para o historiador mineiro, “Celso Furtado organizou sua obra, o fundamental de seu trabalho como economista, historiador e homem público, a partir de um problema, que está posto desde sua tese de doutorado e que ali aparece como a permanência dos ‘atavismos coloniais’ do Brasil” (PAULA, 2015, p. 157). . Mais ainda, a compreensão do presente como ponto de chegada de qualquer investigação - algo apontado como ausente no método histórico que encontrou na década de 1940 na França - aparece com nitidez nesse momento do texto, que se refere, não mais aos séculos XVI e XVII, mas ao Brasil “atual”, em uma visada de longa duração16 16 Essa análise da longa duração, na qual Celso Furtado percebe as consequências, no presente, de processos sociais e econômicos surgidos no início da colonização, é apontada por Mauro Boianovsky (2015, p. 14-18) como um ponto em comum entre nosso autor e a Escola dos Annales. . Dessa forma, Furtado estabelece uma interface entre o passado e o presente que rompe as balizas cronológicas e efetua aquilo que acreditava ser fundamental na produção do conhecimento: a preocupação com os problemas de seu tempo17 17 Para uma análise da obra de Celso Furtado centrada na transtemporalidade, argumentando que sua interpretação da economia brasileira exigiu a inter-relação entre presente, passado e futuro, ver: Silva, 2015. Sobre o conceito de transtemporalidade, ver: Arruda, 2014. .

Por sua vez, a referência a Henri Pirenne nos aproxima novamente da percepção de Celso Furtado a respeito do uso das ciências sociais como uma ferramenta indispensável ao historiador, tal como explicitada pelo autor de “As etapas sociais do capitalismo” (PIRENNE, 1914PIRENNE, Henri. Les périodes de l’histoire sociale du capitalisme. Bulletin de l’Academie royale de Belgique, classe de lettres, n. 5, 1914, p. 1-25. Disponível em: https://bit.ly/32XjOL0. Acesso em: 18 ago. 2020.
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). Importante, nesse sentido, é verificar a aplicação da tese de Pirenne para compreender as elites dirigentes no Brasil. Para ele,

[...] não é do grupo de capitalistas de uma época dada que sai o grupo de capitalistas da época seguinte. A cada transformação do movimento econômico se produz uma solução de continuidade. Os capitalistas que até então desenvolveram suas atividades se reconhecem, digamos, incapazes de se adaptarem às condições que exigem habilidades até então desconhecidas e que requerem métodos ainda não utilizados. Eles se retiram da luta para se transformarem em uma aristocracia cujos membros, se ainda intervêm no manejo dos negócios, só o fazem de forma passiva, na qualidade de sócios comanditários. (PIRENNE, 1914PIRENNE, Henri. Les périodes de l’histoire sociale du capitalisme. Bulletin de l’Academie royale de Belgique, classe de lettres, n. 5, 1914, p. 1-25. Disponível em: https://bit.ly/32XjOL0. Acesso em: 18 ago. 2020.
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, p. 4 - tradução nossa).

Segundo Pirenne (1914PIRENNE, Henri. Les périodes de l’histoire sociale du capitalisme. Bulletin de l’Academie royale de Belgique, classe de lettres, n. 5, 1914, p. 1-25. Disponível em: https://bit.ly/32XjOL0. Acesso em: 18 ago. 2020.
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), cada grupo de capitalistas, formado a partir de um conjunto de atividades comerciais dentro de limites estabelecidos pela conjuntura econômica, política e social na qual se encontram, retira-se das atividades comerciais ao atingir determinado nível de recursos, ou quando seus negócios começam a sofrer restrições econômicas ou concorrência de novos grupos. Esses capitalistas então extraem seus recursos do circuito comercial e os canalizam para investimentos em terra ou propriedades urbanas, fazendo, ao mesmo tempo, movimentos para se integrarem à nobreza. Por sua vez, uma nova classe de capitalistas entra em cena, contornando a concorrência e as regulamentações anteriores, ampliando o escopo dos negócios, até que, por fim, também se retira para dar lugar a outros capitalistas. Assim, cada etapa é caracteriza por forte dinamismo nas fases iniciais e, em seguida, pelo conservadorismo. Esse movimento seria uma caraterística constante desde os comerciantes varejistas das cidades medievais até os empreendedores da Revolução Industrial no século XVIII. Ele expressaria, também, a própria resistência das estruturas e dos valores sociais do feudalismo europeu. Durante todo esse período, a aristocracia feudal, firmemente constituída, seria um campo de atração, absorvendo esses homens cuja fortuna criada no comércio de longa distância não se enquadrava na divisão social tripartite típica do feudalismo18 18 Para um balanço da influência da tese de Pirenne, ver: Thoen e Vanhaute (2011, p. 335-345). .

Essa interpretação, que trata da dicotomia entre vanguarda e conservadorismo, é o instrumento com o qual Celso Furtado interroga a história econômica brasileira. Observando o que chamou de “persistência da monocultura”, estabelece paralelos entre a evolução da colônia e da Europa, no que se refere às relações entre classes sociais e poder econômico. No Brasil, cada ciclo econômico em crise provoca a desorganização produtiva de sua respectiva região, muito embora as classes senhoriais consigam manter seu poder social e político. Em suas palavras, “ocorre aqui fenômeno semelhante ao que observou Pirenne na história social do capitalismo na Europa” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 146).

Contudo, essa permanência assume uma dimensão muito mais grave no caso brasileiro. Com efeito, a monocultura continuou sendo a principal forma de atividade econômica no país. Essa estrutura produtiva e as classes senhoriais que dela se nutriam sobreviveram até mesmo à independência política. O café reiterou esses elementos, pois, a despeito do assalariamento que provocou, “a célula da vida política do país continua a ser o grande domínio monocultural” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 147).

Essa interpretação é ampliada com o exame da cultura canavieira nordestina. Celso Furtado discute a modernização dessa produção no século XX, com o surgimento das usinas e o conflito travado com os tradicionais senhores de engenho da região. A solução encontrada, dada a “resistência das tradições seculares” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 149) da monocultura, foi um arranjo que centralizava o processamento do açúcar nas usinas, mas estas eram impedidas de possuir terras, estando obrigadas a moer a cana dos antigos engenhos, cujas técnicas de plantio e colheita eram arcaicas. Com isso, surge uma discrepância entre a capacidade de produção e processamento das unidades industriais frente ao arcaísmo das formas de plantio e de colheita herdadas da economia colonial. Nesse conflito, Furtado identifica um gargalo no processamento industrial do açúcar, dado pela permanência do controle da terra pelos antigos engenhos. A elite agrária criou um mecanismo extraeconômico de defesa, o que lhe permite compará-la ao “fenômeno social que se passou na Europa com a eclosão da burguesia. A aristocracia dominante, de origem feudal, possuía elementos de defesa contra os quais as armas de ataque da burguesia nem sempre eram eficazes” (FURTADO, 2001, p. 150).

Dito de outra forma, Celso Furtado detecta a forte resiliência dos senhores de engenho, que conservam o poder social e econômico. A despeito de inovações tecnológicas e da nova inserção do Brasil no mercado internacional no século XX, eles foram capazes de lutar contra o capital internacional que financiava essa modernização produtiva (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 150-151). Assim, se na Europa a resistência aristocrática, segundo Pirenne, não bloqueava o avanço do capitalismo e a entrada de novos capitalistas, no Brasil, ao contrário, a persistência dessa elite impedia a modernização das atividades econômicas.

O mesmo ocorria com a agricultura em geral. Celso Furtado encontrou no século XX a mesma divisão - já observada por Caio Prado Júnior na Colônia - entre grande lavoura e agricultura de subsistência. A resolução desse atavismo não poderia ser feita de maneira uniforme, pois colocava problemas diferentes. Para a monocultura, a única solução é a racionalização dos processos produtivos, pois não é mais possível seu crescimento em extensão, dada a queda de demanda no mercado internacional em razão de “crises e guerras sucessivas” (FURTADO, 2011, p. 162). Já a agricultura de subsistência deverá expandir-se pela multiplicação de pequenas unidades, contornando as dificuldades de acessar recursos dos grandes produtores e dos centros financeiros internacionais. Para tanto, o caminho principal para essa expansão é “a entrega da terra a quem nela trabalha, que assim se verá livre do peso que presentemente representa o grande latifúndio rentista” (FURTADO, 2011, p. 162).

Aqui, portanto, vemos Celso Furtado saindo do diagnóstico dos problemas do presente e avançando para uma efetiva proposta de intervenção na realidade, através de uma política distributiva de terras. Nesse momento, cristaliza-se na análise o continuum passado e presente, e a ele soma-se um projeto de transformação, de ruptura: uma proposta de futuro.

A continuidade da monocultura, de suas técnicas de produção e de suas elites econômicas provocará, ainda, outro problema, ao impedir o surgimento de uma consciência e participação democráticas. O domínio colonial brasileiro apresentou uma “extrema polarização social” entre senhores e escravos. Ao contrário dos Estados Unidos, onde esse domínio desapareceu, predominando um tipo de sociedade cuja origem encontra-se nas antigas colônias de povoamento do Nordeste estadunidense, no Brasil, a sobrevivência da monocultura perpetuou o patriarcalismo, consolidando uma sociedade baseada em senhores e escravos e excluindo todos aqueles que não se enquadrassem nessa mescla de exploração econômica e social que caracterizava a grande propriedade monocultora19 19 Importante destacar que, nesse momento, Celso Furtado retoma seu ensaio de 1946, escrito ainda no Brasil, intitulado “Trajetória da democracia na América” (FURTADO, 2014, p. 219-241). O argumento geral desse trabalho é que a crescente penetração de técnicas de administração e de gerenciamento do Estado feito a partir de critérios técnicos e militares pode colocar em risco a existência da democracia nos Estados Unidos. Esse processo viria em contraposição à formação da cultura democrática cuja raiz está na participação comunitária nas decisões políticas, cuja célula política seria o município em seu modelo surgido nas colônias do Nordeste norte-americano. Ver, sobre isso: Silva, 2011, p. 77-82. .

Essa preponderância continuou após a República, com o regime municipal. Este “será uma expressão puramente exterior. Por trás estará o senhor todo-poderoso do domínio, de quem todos dependem e a quem todos obedecem”. Assim, o município brasileiro jamais dará origem à “formação de uma mentalidade política e de uma consciência de coletividade” (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 168-169).

Persistência da monocultura, atraso técnico, controle social e político nas mãos dos senhores de terra, baixa produtividade agrícola, ausência de mentalidade democrática, tais são os atavismos coloniais do Brasil atual de Celso Furtado. Todos decorrem dessa forma de produção típica da colônia. Dela derivam o atraso técnico e a perpetuação de elites com poder político, social e econômico, tal como os senhores de engenho nordestinos, que resistiram às fortíssimas crises sofridas pelo açúcar desde a segunda metade do século XVII. Ainda que o redirecionamento da produção açucareira para o mercado interno tenha dado um pequeno fôlego a esse sistema econômico, a preservação social, política e econômica de sua classe dirigente mostra o poder de resiliência da estrutura social criada no Brasil. Essa força, por sua vez, cristalizou-se no monopólio do poder político, que impede o surgimento de uma “mentalidade democrática”.

Nessa percepção da descontinuidade dos ciclos econômicos e da continuidade das formas de poder social das elites senhoriais está o grande problema do Brasil moderno. Para ele,

[...] a eliminação desse ativismo colonial - a monocultura - se apresenta ainda hoje como um problema fundamental para o Brasil. Transplantar para dentro do país o eixo de sua vida econômica, superar o regime de colônia agrícola estritamente exportadora de alimentos exóticos: eis o problema brasileiro. (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 147).

Retomando as considerações de Henri Pirenne, temos que esse imobilismo é a contrapartida social do problema econômico:

[...] os interesses criados em torno de uma determinada forma de produção consolidam posições e hierarquizam valores. Desaparecida aquela forma de produção, os valores sociais cristalizados a seu redor apresentam menor fluidez que sua base material. Daqui a persistência através dos séculos de todo um grupamento social ligado a certos valores, vivendo de glórias passadas e em completa estagnação. (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 148).

A comparação entre as etapas de um sistema econômico e a correlação de sua composição social, tal como colocada pelo historiador belga, abrem para Celso Furtado uma interpretação original sobre o passado brasileiro. De um lado, temos a permanência social de uma classe econômica desligada das principais correntes do comércio internacional “vivendo de glórias passadas”. Por outro lado, e aqui reside a inovação trazida por Celso Furtado, o principal problema econômico e social brasileiro não reside, necessariamente, na crise de uma atividade monocultora, mas, sim, na passagem de um ciclo econômico a outro. Embora tenha analisado, ao longo de sua tese, a produção açucareira, o problema que se coloca para o Brasil moderno e que emerge sem dúvida alguma da problemática levantada por Pirenne reside na transição entre os sistemas produtivos e no que esse processo deixa de fixo, de imutável social, econômica e culturalmente nas atividades em decadência.

Em suas palavras,

[...] a substituição de uma cultura agrícola por outra exigirá profundas modificações na estrutura social. Muitas vezes o centro da economia do país se deslocará de uma região para outra. Elementos audaciosos tomarão a iniciativa do novo trabalho. A classe senhorial ligada à atividade econômica decadente ficará vegetando e vivendo de glórias passadas. (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001., p. 145-146).

Essa última parte da tese, portanto, demonstra em que medida a história foi utilizada por Celso Furtado para clarificar os problemas do presente. No entanto, nossa análise ficaria incompleta se não discutíssemos os resultados analíticos trazidos por esse procedimento metodológico.

Ao examinar os “atavismos coloniais do Brasil atual” e apresentar os problemas do país no século XX, Celso Furtado extrapola a cronologia proposta em sua tese, evidenciando o movimento dialético em que passado e presente se explicam mutuamente. Notemos, ainda, que, ao enfatizar a resistência social do grande senhor patriarcal, Furtado acessa uma realidade e um processo social diverso daquele examinado por Pirenne em sua história social do capitalismo. Para o historiador belga, a cada nova etapa, o espírito da nova classe de empreendedores supera os entraves e os limites especulativos da geração anterior, fazendo com que o sistema capitalista ganhe força. Ao contrário, a sociedade patriarcal que se formou no Brasil bloqueia qualquer tipo de inovação e dá lugar somente a novas formas de produção (elas também, monocultoras) quando o sistema exportador entra em crise. Ainda nesses casos, o prestígio político, social e econômico desses senhores permanece, impedindo renovações. Essa persistência ou esse atavismo condena o país ao atraso econômico, social e político. Daí, portanto, a ênfase que nosso autor joga sobre a passagem de um ciclo econômico a outro como o grande problema a ser enfrentado no presente.

Conclusões

Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII nos mostra o contato que Celso Furtado teve com a história enquanto esteve em Paris. Em um ambiente de intensa renovação historiográfica, aprofundou suas leituras a respeito da história econômica brasileira, o que deixou marcas duradouras em sua obra. Quisemos chamar atenção para a formação intelectual madura de Celso Furtado no campo das ciências sociais, que lhe permitiu interrogar a história partindo de preocupações oriundas das disciplinas que investigam a sociedade e a economia. Em certos aspectos, o resultado de sua tese tem as marcas desse interesse, ainda que não nos tenha sido possível adentrar nas correntes de pensamento econômico e sociológico que ele utilizou. De toda forma, sinalizar esse interesse e esse direcionamento nos parece essencial para compreender os desdobramentos e as direções que sua obra tomará.

Nos temas abordados neste artigo foi possível observar a transmutação de questões históricas em problemas sociais e econômicos. A formação do Estado português e as Grandes Navegações foram examinadas pelo viés das classes sociais que comandaram esses dois processos. Na terceira parte, o abandono dos marcos cronológicos para delinear os problemas do presente também resultou na observação da perpetuação das classes senhoriais e de seu poder político e econômico, travando a modernização do país. As duas pontas da tese, portanto, são ligadas por essa preocupação com a participação das classes sociais no Estado.

Finalmente, é preciso compreender que a importância inegável da história na obra de Celso Furtado não significa que ela tenha tido o mesmo peso e a mesma utilização ao longo de suas análises. Em seu trabalho de doutorado, ela foi interrogada sob uma problemática das elites sociais e econômicas. Em outros escritos ela será mobilizada de outras formas, partindo de outros problemas, de outros arranjos teóricos e metodológicos, o que exigirá dos pesquisadores um tratamento sempre cauteloso e particular a essa questão.

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    Para um panorama da recepção dessa publicação entre os intérpretes de Celso Furtado, ver: Saes, 2020.
  • 3
    Cabe destacar, sob esse aspecto, a importância da leitura de Karl Mannheim, que Celso Furtado (1997a) considera fundamental em sua trajetória. Ver: Vieira, 2007; Bianconi, 2014.
  • 4
    Tamás Szmrecsányi (1999, p. 209) notou muito bem a comunhão desses dois interesses nesse período parisiense ao indicar que a tese de doutorado é um trabalho “desenvolvido no contexto mais genérico de uma ciência social voltada tanto para a história quanto para a economia”. Outros autores (COUTINHO, 2008; ALCOUFFE, 2009) também apontam os anos de estudos parisienses como o momento de aprofundamento na teoria econômica.
  • 5
    Estabelecer as formas de diálogo possíveis entre a história e as ciências sociais ou a distinção entre uma problemática originada de um ou outro domínio disciplinar não são problemas simples. Segundo Novais e Silva (2011) a história se vale das ciências sociais quando preserva suas características principais: estabelecimento de uma narrativa dos acontecimentos, compreensão da totalidade do acontecer humano e criação de uma memória social. Para William Sewell Jr. (2017), por sua vez, o domínio exclusivo do historiador é a reflexão sobre a temporalidade, enquanto os cientistas sociais buscam resultados normativos. Um diálogo entre elas seria pela inserção da temporalidade nos campos do saber sociais e por maior discussão teórica e conceitual no trabalho dos historiadores.
  • 6
    Ver o volume que reúne o conjunto dessa produção (FURTADO, 2014). Para uma análise desses escritos, ver: Silva, 2011. Renata Bianconi (2014) apresenta a melhor reconstituição das fontes e leituras de Celso Furtado no período anterior à Cepal.
  • 7
    Celso Furtado prossegue: “A verdade é que, na época, em nada me atraíam os títulos, particularmente os universitários. Não via sentido em perder tempo estudando para preparar exames, desviando a atenção do mar de coisas importantes que estavam ocorrendo no mundo real diante de meus olhos” (FURTADO, 1997b, p. 101-102).
  • 8
    Podemos considerar erudição histórica, na acepção corrente no século XIX, como o domínio das fontes - aliás, mecanismo imprescindível para a escrita da história - e a discussão de problemas, o estabelecimento de um dado ou de uma informação controversa a partir do manejo da documentação. Nessa segunda acepção, apareceria como uma interrupção na narrativa, de tal maneira que “algumas narrativas poderiam ser eruditas em função de seu lastro documental e da maneira como combinavam narrativa com momentos de resolução de dúvidas” (SANTOS, 2014, p. 83).
  • 9
    Segundo Furtado (2001, p. 15 “A. Sérgio induziu sua ‘hipótese’ da análise de um trecho do cronista Zurara”.
  • 10
    Em outros textos (1971, 1980) António Sérgio defenderia sua tese de críticos como David Lopes e mesmo Jaime Cortesão, nos quais reforçaria os dois últimos pontos de sua hipótese. Em seu ensaio “Sobre a revolução de 1383-1385”, por sua vez, acentua ainda mais a proximidade da burguesia com a nova casa reinante, pois considera que “cabe o nome de burguesa a uma revolução qualquer quando é o burguês como burguês quem dirige a luta, quem dela se aproveita; quando o burguês é, não soldado, mas meneur e político” (SÉRGIO, 1971, p. 135). Para uma discussão sobre essa interpretação. Ver: Silva, 2011, p. 114-118.
  • 11
    Segundo Thoen e Vanhaute (2011), Henri Pirenne, influenciado pela Escola Histórica Alemã, incorporou conceitos oriundos da economia, da sociologia e da psicologia em sua obra. Além disso, ele seria o grande responsável por espalhar a concepção de uma história econômica fora dos países germanófilos da Europa.
  • 12
    O papel de Pirenne como um dos pioneiros da história econômica é assinalado por outros autores, tais como François Dosse (2003) e Pierre Racine (1997).
  • 13
    Para uma síntese das teses de Pirenne, ver: Verhulst, 1989.
  • 14
    Embora a análise centrada nas classes sociais portuguesas seja fundamental para Celso Furtado, ele não explicita qual conceito de classe está utilizando. No entanto, nos parece ser possível aplicar para o caso a mesma observação que Thoen e Vanhaute (2011, p. 344 - tradução nossa) fizeram sobre o historiador belga: “Para Pirenne e muitos outros historiadores e economistas que eram seus contemporâneos, este [o termo classe] era um termo geral para designar um grupo social”.
  • 15
    Para o historiador mineiro, “Celso Furtado organizou sua obra, o fundamental de seu trabalho como economista, historiador e homem público, a partir de um problema, que está posto desde sua tese de doutorado e que ali aparece como a permanência dos ‘atavismos coloniais’ do Brasil” (PAULA, 2015, p. 157).
  • 16
    Essa análise da longa duração, na qual Celso Furtado percebe as consequências, no presente, de processos sociais e econômicos surgidos no início da colonização, é apontada por Mauro Boianovsky (2015, p. 14-18) como um ponto em comum entre nosso autor e a Escola dos Annales.
  • 17
    Para uma análise da obra de Celso Furtado centrada na transtemporalidade, argumentando que sua interpretação da economia brasileira exigiu a inter-relação entre presente, passado e futuro, ver: Silva, 2015. Sobre o conceito de transtemporalidade, ver: Arruda, 2014.
  • 18
    Para um balanço da influência da tese de Pirenne, ver: Thoen e Vanhaute (2011, p. 335-345).
  • 19
    Importante destacar que, nesse momento, Celso Furtado retoma seu ensaio de 1946, escrito ainda no Brasil, intitulado “Trajetória da democracia na América” (FURTADO, 2014, p. 219-241). O argumento geral desse trabalho é que a crescente penetração de técnicas de administração e de gerenciamento do Estado feito a partir de critérios técnicos e militares pode colocar em risco a existência da democracia nos Estados Unidos. Esse processo viria em contraposição à formação da cultura democrática cuja raiz está na participação comunitária nas decisões políticas, cuja célula política seria o município em seu modelo surgido nas colônias do Nordeste norte-americano. Ver, sobre isso: Silva, 2011, p. 77-82.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2020
  • Aceito
    21 Dez 2020
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