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Reflexão crítica, prática da interdisciplinaridade, pesquisa em acervos

Em tempos de constantes ataques à ciência, ao serviço público e ao patrimônio público, os textos que compõem este número reafirmam a missão de “promover uma reflexão crítica sobre o Brasil, a partir da prática da interdisciplinaridade e da pesquisa em acervos”, do Instituto de Estudos Brasileiros (2018, p. 2). Trata-se de um conjunto variado, característica que decorre da avaliação de artigos em fluxo contínuo, no qual se inscrevem algumas das linhas de força do pensamento contemporâneo na área de Humanidades.

“As caravanas: racismo e novo racismo”, de Adélia Bezerra de Meneses (USP), articula diversos instrumentos da crítica literária a fim de examinar, em profundidade e com viés ensaístico, os sentidos históricos que se encapsulam nos versos de uma canção de Chico Buarque lançada em 2017. Um deles, a permanência e o recalque do passado escravocrata no presente da zona sul do Rio de Janeiro, mas valendo metonimicamente por um retrato atual do Brasil. A seguir, “Braços nas argolas e sorrisos nos rostos: narrativas museais sobre a escravidão”, de Vinícius Oliveira Pereira (UERJ) e Alexandra Lima da Silva (UERJ), analisa imagens de acervos de museus brasileiros disponíveis na internet, assim como postagens em redes sociais, e discute, dentre outros temas, “a insistência por parte das instituições museais em valorizar a dimensão da violência cometida contra escravizados” e “a desvinculação entre trauma e racismo”, seguindo uma pista teórica apontada por Grada Kilomba.

Novamente em perspectiva ensaística, “Modos de conexão popular no cinema brasileiro pré-64: Considerações sobre Vidas secas, Os fuzis e o inacabado Cabra marcado para morrer”, de Paulo Toledo Bio (UFRJ), investiga três exemplos da tentativa de estabelecer laços “com as frações populares e marginais do país” naquele período. Com diferentes resultados, essa intenção dos artistas se refletiu “no nível temático, estético, político e também produtivo das obras”, e seu apagamento nas realizações mais recentes e nos debates, segundo o autor, nos daria prova das fraturas que passaram a enformar a sociedade brasileira desde o golpe de 1964. Ainda na esfera do cinema, mas em junção com os campos literário e historiográfico, “Do dois ao três, ou A reprodução da burrice paulista”, de Victor Santos Vigneron (USP), empreende uma criteriosa revisão bibliográfica e se ampara em pesquisa no precioso acervo da Cinemateca Brasileira para analisar a adaptação cinematográfica de Amar, verbo intransitivo - romance de Mário de Andrade, publicado em 1927 - por Paulo Emílio Salles Gomes, ao final dos anos 1960.

Parte da obra epistolar de Mário de Andrade e de sua fortuna crítica é analisada em “Cartas para Murilo Miranda, o amigo com quem envelheço”, artigo de Monica Gomes da Silva (UFRB) e Matildes Demétrio dos Santos (UFF). O trabalho enfatiza de que modo impasses como o embate entre o funcionalismo público e a atividade artística se refletiram em uma escrita que “transgride os limites convencionais do gênero [...], pelo seu valor literário e histórico”. Já “Literatura e Filosofia em Raul Pompeia”, de Marconi Severo (UFSM), se alia à crítica da recepção daquele escritor por seus contemporâneos e, analisando as técnicas composicionais empregadas em Canções sem metro, à revisão da estética de Pompeia que se desenvolve nos últimos decênios.

Radicado no estudo da arquitetura brasileira, mas em chave interdisciplinar, “O Iberismo como primitivismo: a abordagem de José Marianno Filho”, de Ana Paula Koury (USJT), pesquisa artigos publicados na década de 1920, n’O Jornal, com a hipótese de que neles Marianno Filho incluiu a “herança ibérica como parte de um programa nacionalista, em sintonia com o quadro político do Brasil republicano”, acabando por fornecer elementos fundamentais para a “narrativa nacionalista do modernismo”. Recuando no tempo, “Teatralidade e carnavalização. Zé Pereira no final do séc. XIX”, de Marcelo Fecunde de Faria (UFG) e Robson Corrêa de Camargo (UFG), examina “crônicas de Vieira Fazenda (1847-1917) e de Luís Edmundo de Melo Pereira da Costa (1878-1961)” e busca compreender “a criação do personagem Zé Pereira” em meio a um período de “mudanças radicais” no Brasil e, sobretudo, no Rio de Janeiro, período do qual fez parte “o processo de higienização das festas de ruas”. Encerrando a seção, “Entre Ciência e História: Brasil, um Jardim para a França”, de Ana Beatriz Demarchi Barel (UEG), estuda relações entre romances de José de Alencar e relatos de viagem de Ferdinand Denis e de Auguste de Saint-Hilaire.

Na seção seguinte, Criação, são publicados três Contos baldios de Márcio Marciano. Dramaturgo e encenador, Marciano foi um dos fundadores da Companhia do Latão em São Paulo, em 1997, e do Coletivo de Teatro Alfenim em João Pessoa, em 2007. Seu trabalho artístico, para o crítico José Antonio Pasta (2017, p. 22), “tem o vezo de procurar resolver os problemas, não ao aliviá-los, obviando o que neles é obstáculo, mas, ao contrário, incrementando a sua dificuldade, extremando-a, até que ela passe no seu outro”.

Na seção Documentação, o artigo “Quando ‘restos mortais’ tornam-se rastros: algumas reflexões sobre a organização do Fundo Alice Piffer Canabrava do Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)”, de Otávio Erbereli Júnior (USP), reúne a narrativa “da operação arquivística” a uma série de reflexões que resultam de “um convívio quase diário, por dois anos, com a documentação”. Por fim, a resenha “Primeira República e Era Vargas. Reflexões para a compreensão da atualidade”, de Fábio Alexandre dos Santos (Unifesp), analisa e interpreta História Econômica do Brasil. Primeira República e Era Vargas, obra organizada por Guilherme Grandi e Rogério Naques Faleiros, segundo volume da Coleção Novos Estudos em História Econômica do Brasil.

As imagens desta RIEB remarcam que chegamos à edição de número 80. Na antessala do aniversário de 60 anos do instituto, a mirada histórica se perfaz também nas demais imagens, que registram as três edificações que se sucederam enquanto sede do IEB. A dimensão histórica está também na representação de trabalhadoras e trabalhadores, que empregaram a sua “corporalidade” (QUIJANO, 20104. QUIJANO Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.) no cotidiano do instituto. A dimensão estética da sede atual deseja esperançar, no sentido freireano (FREIRE, 19961. FREIRE Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 20 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), um presente-futuro, em que espaço e corpo se encontram, nas atividades coletivas que seguem desenhando a instituição e sua missão.

Há quase 40 anos, em 1982, Roberto Schwarz (19875. SCHWARZ Roberto. Política e cultura. In: SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 83-85., p. 85) observava que “a riqueza da vida cultural nasce do confronto de posições, que no Brasil anda frouxo”. Se é certo dizer que hoje esse confronto se fortaleceu ao se rebaixar, então, esperamos que este número colabore para a vida cultural fundada na reflexão crítica e na pesquisa científica. Boa leitura!

Referências

  • 1
    FREIRE Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 20 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • 2
    INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS. Projeto acadêmico. Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 2018. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/wp-content/uploads/sites/127/2019/09/Projeto-acad%C3%AAmico-Aprovado-CD_29.11.2018.pdf Acesso em: 12 nov. 2021.
    » http://www.ieb.usp.br/wp-content/uploads/sites/127/2019/09/Projeto-acad%C3%AAmico-Aprovado-CD_29.11.2018.pdf
  • 3
    PASTA José Antonio. Dialética do Alfenim - nota crítica e teórica. In: CABRAL, Adriano; MARCIANO, Márcio; COELHO, Paula. Memórias de um cão: caderno de Apontamentos. João Pessoa: Coletivo de Teatro Alfenim, 2017, p. 21-29.
  • 4
    QUIJANO Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
  • 5
    SCHWARZ Roberto. Política e cultura. In: SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 83-85.
  • INÊS GOUVEIA

    é docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). inescgouveia@usp.br, https://orcid.org/0000-0003-4783-9033.
  • LUCIANA SUAREZ GALVÃO

    é docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). lsgalvao@usp.br, https://orcid.org/0000-0003-1369-688X.
  • WALTER GARCIA

    é docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). waltergarcia@usp.br, https://orcid.org/0000-0002-0455-4831.
  • GOUVEIA, Inês; GALVÃO, Luciana Suarez; GARCIA, Walter.

    Reflexão crítica, prática da interdisciplinaridade, pesquisa em acervos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 80, p. 13-16, dez. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2021
  • Aceito
    19 Nov 2021
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