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Os carbonários, 40 anos, de Alfredo Sirkis (1950-2020): testemunho e sobrevivência

Os carbonários, 40 years, of Alfredo Sirkis (1950-2020): testimony and survival

RESUMO

Estudo da narrativa de Os carbonários, de Alfredo Sirkis (1950-2020), partindo da análise do paratexto das várias edições do livro, apontando eventuais contradições, explicitando e detalhando a construção do personagem-narrador, o próprio Sirkis, que ostenta bem delineadas características de testemunha e de sobrevivente. Para tanto, arregimenta os conceitos de sobrevivente (Agamben, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.) e de testemunho (Agamben, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul. O testemunho. In: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 170-175.; Sarlo, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.).

PALAVRAS-CHAVE
Alfredo Sirkis; Ditadura brasileira; Testemunho

ABSTRACT

Study of the narrative of Os carbonários, by Alfredo Sirkis (1950-2020), starting from the analysis of the paratext on numerous editions of the book, incorporating contradictions, explaining and detailing the construction of the character-narrator, Sirkis himself, who has well-defined characteristics of witness and survivor. Therefore, it brings together the concepts of survivor (Agamben, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.) and testimony (Agamben, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul. O testemunho. In: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 170-175.; Sarlo, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.).

KEYWORDS
• Alfredo Sirkis; Brasilian dictatorship; testimony

O LIVRO E SUAS EDIÇÕES

As edições de Os carbonários (OC) se sucederam desde a primeira publicação em 1980. Aproximam-se de 20; pelo menos uma em livro de bolso e uma em e-book. Foram ao menos seis editoras: respectivamente, Global, Círculo do Livro, Record, Bestbolso, TIX e Ubook.

A edição da Record (1998) é marco. Nela, Alfredo Sirkis (1950-2020), seu autor, imprimiu importantes modificações, replicadas, em sua maioria, nas edições subsequentes.

A edição mais recente, de 2020 (última em vida do autor), pela editora Ubook, usada nesse artigo, segue as modificações propostas naquela de 1998. Destaque para as “alterações de forma”: gírias dos anos 1970 foram expurgadas e parágrafos foram condensados (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 15). Mas as principais alterações dizem respeito ao chamado paratexto: acréscimo de fotos, de notas de final de texto, de novo prefácio e uma surpreendente substituição da dedicatória original.

Com efeito, o livro, desde 1998, traz uma iconografia significativamente mais ampla do que a de 1980, com acréscimo de fotos pessoais, dentre outros. Traz também 85 notas (algumas longas e detalhadas) que se referem, sobretudo, a nomes citados na narrativa2 2 Em 1998, na edição da Record, eram 82. . Fica, contudo, a desejar quando omite o fac-símile da carta destinada ao autor, manuscrita pelo então ex-capitão do exército Carlos Lamarca (1937-1971), famoso líder guerrilheiro morto pela ditadura, companheiro do autor. O fac-símile consta na primeira edição e em algumas subsequentes, inclusive a de 1998. A carta é importante elemento da parte final da narrativa e seria útil que o fac-símile constasse nas edições mais recentes, que aliás dão maior visibilidade a Lamarca.

Nessa linha, note-se ponto importante dentre as modificações: há uma troca de dedicatória. Na de 1980 aparece um simples “À geração dos anos 80”. Na de 2020, consta “Para Yavelberg, Herbert Daniel e Carlos Lamarca”. Notável mudança3 3 Na verdade, a troca de dedicatória acompanha o livro desde a edição de 1998, da Record. .

Sobre Lamarca, falou-se acima. O nome Yavelberg se refere a Iara Iavelberg (1944-1971), personagem de OC, guerrilheira morta pela ditadura, companheira de Carlos Lamarca. Herbert Daniel (1946-1992) é também personagem de OC. Guerrilheiro, companheiro de organização e amigo muito próximo do autor, Daniel morre posteriormente em decorrência de complicações causadas pela AIDS. Sua história a partir dos anos 1980 se volta para a militância LGBT e ecológica.

Essa troca de dedicatória merece atenção. Por que afinal se retiraria do cabeçalho de um texto uma dedicatória, que ali compareceu durante quase duas décadas e durante várias edições, para substituí-la por outra completamente diferente?

“À geração dos anos 80”. Essa primeira dedicatória parece ter sido voto de confiança no futuro imediato que, na visão de muitos, inclusive o autor, seria pós-ditatorial - como de fato foi. Tal futuro figurava então um pouco confundido com esta “geração dos anos 80”, cujos políticos e ativistas, jovens em sua maioria, seriam os missionários de um novo Brasil, agora reconstruído em chave democrática. Sem dizê-lo, é possível até que o autor se incluísse nesse grupo geracional - depositando em suas ações futuras o mesmo otimismo que deposita naquela geração.

Décadas depois, mal ou bem realizadas as potencialidades da geração 80, esta parece ter caído em desmerecimento e perdido seus créditos. Ao menos é o que dá a entender a atitude do autor, que então revoga-lhe a dedicatória do livro. E talvez não seja por menos, pode-se especular: pessoas de destaque dessa geração estiveram envolvidas, nas últimas décadas, em gigantescos escândalos de corrupção estatal - para dizer o mínimo.

Porém, indo em frente, há mais questões quanto à troca de dedicatória. De fato, não bastasse aquele gesto de revogação, supõe-se que os merecedores da dedicatória devem ser outros: os três, acima referidos, companheiros de guerrilha do autor.

Parece que algo não se equilibra. A esta nova dedicatória, que é acertado reconhecimento daqueles companheiros mortos, cola-se imediatamente o estigma de errata e de homenagem tardia - que o autor não teve ânimo, competência ou coragem para fazer no momento certo. A isso, some-se o silêncio do autor quanto à revogação da dedicatória inicial, cujo sumiço não é mencionado nem uma vez sequer nas edições subsequentes, em seus vários prefácios sempre atualizados. O gesto, com seu cunho revisionista, fica no vazio, ante a sua importância4 4 Deixa-se para outro momento, quem sabe, uma reflexão sobre esse silêncio e sobre a eventual faceta revisionista do gesto. . E a abrupta prestidigitação salta aos olhos.

Em todo caso, ressalte-se a intensa reorientação que se promove com a referida troca. Em 1980, na primeira edição do livro, dedicando seu texto à “geração dos anos 80”, o autor estava às voltas com o futuro. Particularmente, mirava um conjunto de pessoas, jovens em sua maioria, que começavam a fazer política naquele período de final da ditadura. No prefácio da primeira edição, faz-se referência a isso: é o movimento ecológico, o feminista, o antirracista, dentre outros (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 22). Apesar dessa especificação, ressalte-se o caráter impessoal desta primeira dedicatória: o contemplado nela é um ser genérico e abstrato, a “geração dos anos 80”. Trata-se de um agregado amplo, porém específico, que, por isso, exclui, por exemplo, a geração anterior, a daqueles nascidos nos anos 30, 40 e 50 - que abrange Daniel, Lamarca e Iavelberg.

O contraste com a nova dedicatória, assim, é significativo. Em 1980, viu-se, o autor estava de olho no futuro. Agora, em 2014, dedicando seu texto a guerrilheiros já mortos (dois deles pela ditadura), está às voltas com o passado, por certo. Além disso, contrariamente, agora os contemplados são pessoas concretas, não uma generalidade e não uma geração. E isso implica mais consequências.

Ao dedicar seu livro à geração dos anos 80, o autor tinha em vista seus potenciais leitores de então, naquele momento de publicação do livro - milhares de pessoas, diga-se de passagem. Ele mistura ou confunde (tanto faz) aqueles a quem dedica o livro com aqueles para quem o destina. De fato, no prefácio da primeira edição ele explicita o destinatário a quem gostaria de se dirigir: “Creio que é importante recuperar estas memórias e transmiti-las sobretudo para essa nova geração que desponta com os anos 1980” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 22, itálico nosso).

Ao contrário, a partir de 1998, dedicando o livro a Iavelberg, Daniel e Lamarca, o autor não está mirando destinatários, não espera ser lido por estes a quem dedica seu livro. Agora, tem em mente três defuntos que, por óbvio, não leem mais; dois dos quais (como se disse) mortos pela ditadura; os três, personagens do livro. Pergunte-se de passagem como soa aos mortos da nova dedicatória essa solicitação de conivência e de autenticação, que uma dedicatória pressupõe; como soa a eles essa tardia mensagem de afeto, que é um dos sentidos evidentes de toda dedicatória. Onde quer que estejam, concordam os mortos com as premissas e as conclusões do livro? Autenticam-no? Aceitam a inscrição de afeto de sua dedicatória?

Por último, mais uma importante modificação. Um novo prefácio é agregado. O prefácio original convive com um novo - reescrito e com cortes, a partir da edição de 1998, da editora Record.

O novo prefácio é, obviamente, outro. Mas é notável que, nele, predomine certo abandono dos fundamentos do primeiro, o de 1980. Este, com apenas três páginas, contrasta com a extensão do mais recente, com sete5 5 Como dito, o prefácio da edição de 2020 é uma adaptação de um prefácio da edição de 1998, por sua vez publicado na edição de bolso de 2014 (Cf. Referências). Com extensão maior, aquele prefácio de 1998 trazia 20 páginas. Nele constava detalhadas reflexões sobre Fernando Gabeira, Herbert Daniel, dentre outras - que, na edição de 2020, estão omitidas. Seria preciso uma enquete mais detalhada para evidenciar as muitas alterações que sofreram esse prefácio ao longo das muitas edições - o que não é o propósito desse texto. . No primeiro, fala o jovem autor, com dicção de garotão de praia, despojado, semissubmerso na ditadura, falando desta como algo que ainda não passou; entretanto, já convicto de sua próxima superação. No prefácio novo, fala o ex-deputado, ex-secretário municipal de meio ambiente, militante ambientalista, com a forte percepção de que a ditadura e os anos 1980 são passado: “Os anos de chumbo[...] são como cenas de um filme antigo, histórias desbotadas [...], sinto-me muitos anos-luz do guerrilheiro Felipe com seus dezenove anos [...]” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 13). No primeiro prefácio, predomina a mistura de tempos - não parece haver ali uma distância temporal entre o tempo narrado e o tempo da narração - ainda que, no texto do livro essa distinção esteja bastante clara. No novo, há o cotejo cuidadoso dos tempos, com suas gradações: o tempo do narrado, o tempo da publicação do livro, o tempo presente em que o prefácio é escrito: “Quarenta anos após a publicação de Os carbonários e 52 anos do rebelde ano de 1968, releio minhas memórias [...] para poder prefaciar esta nova edição” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 13). Dentre as muitas diferenças, de extensão, de tom, de enunciador e de tempos envolvidos, sobressai uma: a que marca a forte relação entre o narrador sobrevivente e os companheiros de guerrilha já mortos - aspecto ausente no prefácio de 1980. Diz o texto: “Nos anos de chumbo tive a tríplice felicidade de sobreviver, não ter sido capturado e seviciado e não ter matado ninguém” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 13-14).

O trecho, como se pode ver, dialoga com a dedicatória mais recente. Assinalando sua “tríplice felicidade”, o autor enfatiza sua condição fundamental de sobrevivente - crucial, como se verá, para a compreensão de sua narrativa como testemunho. Ele sobrevive à violência da ditadura - e sobrevive enquanto vários companheiros, dentre eles Iavelberg e Lamarca, são assassinados.

Eis então a nova indumentária do narrador-protagonista. Trata-se do sobrevivente que não se esquece de seus mortos. Mas será que esses mortos, estando na nova dedicatória, estão na narrativa? Em que medida podemos ler aquele texto de 1980 como testemunho de um sobrevivente?

TESTEMUNHA E SOBREVIVENTE (O TRABALHO DO TESTEMUNHO)

No mencionado prefácio de 2020, o autor escreve: Todos esses anos, em várias ocasiões,

muitos leitores de Os carbonários me perguntaram se tudo é mesmo verdade. Se não haveria nada de ficção. Em que pesem certas peças que a memória pode nos pregar, é sim, tudo verdade. (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 15-16, itálico nosso).

Quarenta anos depois da primeira edição do livro, eis o autor reafirmando a verdade integral de seu texto. Não seria a primeira vez, tampouco a única. O trecho permite entrever que isso foi feito em “várias ocasiões” ao longo desse tempo, como de fato atestam cada uma das republicações, nas diferentes edições do livro, daquele prefácio. Um outro registro, reforça a noção. Diz o autor em entrevista: “Os Carbonários não é um romance. E... tudo o que aconteceu lá é verdade” (SILVA, 2006SILVA, Mario Augusto Medeiros da. Prelúdios & noturnos: ficções, revisões e trajetórias de um projeto político. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006., p. 82-83). É como se o texto, uma vez publicado, precisasse ser recorrentemente certificado quanto ao seu teor de verdade.

Extenso e reiterado trabalho, pois, este que é o de se manter a postos para reafirmar a verdade sobre aquilo que certa vez foi dito. O que haveria em OC que o faz permanentemente exposto a dúvida? Desde já, diga-se isso não é exclusivo desse livro.

Philippe Lejeune (2008)LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. fornece elementos para se pensar OC como esse texto que se equilibra com dificuldade sobre uma verdade cujo cume é preciso, incansavelmente, alcançar de tempos em tempos. De fato, a ameaça de desabamento a que está submetido OC, como testemunho, não advém de sua escritura, de uma presumivelmente tênue verossimilhança que ela, por acaso, ostentaria. Parece que é inerente à condição do chamado texto referencial, âmbito no qual se insere o testemunho, que este seja periodicamente exposto a dúvidas. São exemplos de gêneros referenciais a reportagem, os tratados historiográficos, as autobiografias, as biografias - e os testemunhos. E é o caso da narrativa de OC, que se inscreve dentre aquelas que se afirmam como se referindo a uma verdade factual. Pretende se situar, assim, diametralmente oposta às ditas narrativas ficcionais (como contos, novelas e romances) que afirmam sua ficcionalidade inerente, isto é, sua essência não factual. Nas narrativas ficcionais, a verossimilhança seria o fundamento em que se assenta a percepção de verdade proposta ao leitor pelo escritor. Eis, assim, onde Lejeune situa o chamado pacto ficcional: no verossímil e no necessário. Trata-se, grosso modo, do encadeamento lógico entre os fatos. Estes surgem, pois, como causadores uns dos outros. A “verdade” de um texto ficcional é, pois, interna ao texto, não depende de um eventual cotejo com a realidade factual. Contrariamente, nos gêneros referenciais, o ponto de partida é a realidade factual. A verdade do relato está constantemente sujeita a dúvidas. Diz Lejeune: “[...] Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. Não o ‘efeito de real’, mas a imagem do real. Todos esses textos referenciais comportam então o que chamarei de pacto referencial. […]” (LEJEUNE, 2008LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008., p. 36). O pacto referencial implica então um contrato do autor com seu leitor. Por óbvio, OC não prescinde da verossimilhança, ao contrário, ela ali é constituinte. Mas, antes dela, uma espécie de juramento ou, como se quiser, uma promessa, está em jogo. Tal promessa é aspecto inerente à sua condição de testemunho.

Aqui a definição de testemunho de Paul Ricoeur pode também ajudar a pensar o ambiente de dúvida permanente em que está mergulhado o texto de OC. Para o filósofo, o testemunho é narrativa de cena vivida a qual, sem a presença do narrador, estaria limitada a mera informação. Há então a presença necessária de alguém que “esteve lá” e que, estando vivo no presente, narra determinado fato que se passou precisamente “lá”. Mas não só. Esse fato deve ser também atestado como verdadeiro. E isso se faz diante de um interlocutor. Estabelece-se, então, uma “situação dialogal” em que a testemunha solicita que lhe deem crédito. “Ela não se limita a dizer: ‘Eu estava lá’, ela acrescenta: ‘acreditem em mim’” (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. O testemunho. In: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 170-175., p. 173). Ao que decorre um pressuposto de dúvida, antes de qualquer concessão de crença. Nessa linha, Ricoeur fala da dimensão de promessa inerente ao testemunho. “A testemunha confiável é aquela que pode manter seu testemunho no tempo” (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. O testemunho. In: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 170-175., p. 174), a despeito de todo contradito.

O testemunho, assim, implica um fardo que se leva por toda a vida. Espécie de volume agregado à identidade. E, como dito, algo cuja validade deve ser recorrentemente afirmada, por espécie de dever pessoal, mas também porque, sobre ele, se pode a qualquer momento exigir ratificação. Fica o autor atado a esse despojo do passado, obrigado a situá-lo sobre um referencial de verdade cujo cume parece estreito e movediço.

O texto de OC é constituído por estas características. Destaque-se aqui o “eu estive lá” das situações que o autor relata - e que abordaremos adiante. Mas, destaque-se, sobretudo, a recorrente dúvida (sempre de outrem) acerca da veracidade de seu relato, e a correspondente reafirmação, ao longo do tempo, dessa veracidade. Alguém pergunta sobre a verdade de seu texto há muito escrito - e eis que, num descuido, a pedra rolou de novo montanha abaixo. Assim, escreve-se um prefácio 40 anos após a primeira publicação do texto, dentre outros, para justamente atualizar a condição de verdade, presumivelmente perene, do texto - sua promessa. Note-se que esse prefácio é, ele mesmo, só mais um dos muitos momentos em que o autor se vê diante deste verdadeiro trabalho de Sísifo. Como sugerido, o de estar em prontidão permanente para repetir sempre que seja solicitado: “É sim, tudo verdade”. E levar seu fardo mais uma vez ao cume de uma pretensa verdade factual.

Mas há outro trabalho que pode ser entrevisto, no ato de prestar testemunho, que está no texto de OC. Aqui, recorre-se a Giorgio Agamben (2008)AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. que concebe o testemunho sendo composto por certas facetas que podem ser encontradas no livro. Seu conceito de testemunho vale-se da realidade dos campos nazistas de concentração. Sobreviventes daqueles campos prestaram testemunhos em várias frentes, ao longo dos anos que se seguiram à sua libertação e à derrota daquele regime. E o fizeram em livros, periódicos, filmes, tribunais, etc. Agamben toma exemplarmente os testemunhos publicados em livro por Primo Levi (1919-1987), escritor, sobrevivente de Auschwitz, e extrai deles importantes conclusões.

Para o filósofo, há forte solidariedade entre a fala da testemunha sobrevivente e o silêncio dos mortos e dos sem fala, tornados desumanos pela lógica daqueles campos. Tal conceito se pergunta sobre a legitimidade do sobrevivente para falar por outrem, e sobre o conteúdo de verdade daquilo que essa testemunha diz. O conceito refuta a pergunta afirmando que a verdade do testemunho não está no conteúdo do que é dito, mas no silêncio das vítimas. “O sobrevivente dá testemunho não sobre a câmara de gás ou sobre Auschwitz, [...] ele fala apenas sobre uma impossibilidade de falar” (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 163). Aqui, essa impossibilidade de falar é a do morto ou daquele que perdeu sua humanidade. Por estes, falaria o sobrevivente, via testemunho.

Proposto para pensar a situação quase singular dos campos de concentração nazistas, esse conceito pode ser instrumentalizado para pensar certos textos brasileiros, cujo âmbito inclui OC, quanto à sua condição de narrativa de testemunho justamente nesse ponto, isto é, na maior ou menor vinculação do texto com uma impossibilidade de falar e, de modo correlato, com sua capacidade de dar voz ou de falar com certas vozes silenciadas.

O texto de OC se situaria aí? Em certa medida, sim. Aqui, claro, é preciso resguardar as profundas diferenças quanto às situações históricas recíprocas. Destaque-se, desde já, que Agamben, tratando de Auschwitz, fala de um radical silenciamento. Nos campos, mesmo aqueles que não morreram, perderam sua humanidade - e isso é como se tivessem perdido suas vidas (biologicamente tratadas). São milhões de vozes silenciadas, ficando assinalada também a radical excepcionalidade da testemunha que presenciou seu padecimento: ela é exceção diante de milhões de silenciados, entre mortos e desumanizados. No Brasil, sabe-se, os números são muito menores. Os crimes aqui cometidos pela ditadura são de outra dimensão. Dito isso, contudo, reitere-se: os conceitos se mostram úteis à descrição da testemunha que seria o narrador de OC - como se verá.

Para Agamben, uma característica importante da testemunha é que ela é um sobrevivente. O termo “supertes”, “testemunha” em latim, define a testemunha como aquele que viveu algo do começo ao fim; aquele que atravessou até o fim um ou mais eventos, e pode assim dar testemunho daquele momento (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 27, itálico no original). Não há testemunha sem uma inerente sobrevivência, espécie de condição para que aquela se constitua. Por seu turno, para que se torne testemunha não basta ao sobrevivente a mera sobrevivência física, ele precisa ser capaz de recordar. Aspecto a destacar: o termo “mastis”, “testemunha” em grego, deriva de um verbo que significa “recordar”. Assim, pensado como testemunha, “o sobrevivente tem a vocação da memória, não pode deixar de recordar” (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 35ss). Outro aspecto importante, para Agamben: o sobrevivente inscreve-se em seu relato como alguém que decide sobreviver, eventualmente para relatar o que viveu (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 25ss) - ou seja, para se tornar uma testemunha. Nessa linha, ele expressa sua disposição para narrar não só seu destino, mas também o daqueles que, com ele, compartilharam certos eventos, inclusive as pessoas já mortas. Há um afeto que prepondera: a culpa. A testemunha carrega consigo o sentimento de ser, como sobrevivente, um privilegiado em relação àqueles que “tocaram o fundo”, os que morreram ou foram silenciados (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 42). E, enfim, expressa fortemente a condição daquele que quer falar por outrem ou dar voz a este (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 42-43).

Da extensa caracterização que Agamben faz da testemunha-sobrevivente, os aspectos mencionados são suficientes aqui para se prosseguir. O protagonista de OC é figurado na narrativa como sobrevivente - muitas vezes, incorporando aspectos descritos acima.

Aqui, vira-se a chave. O trabalho demandado não é mais externo ao texto - feito pelo autor, o responsável legal pelo texto. De fato, viu-se acima, na definição de testemunho tomada a Ricoeur, que o autor precisa estar de prontidão para, eventualmente, tomar seu testemunho e alçá-lo pacientemente ao nível da verdade - sempre que necessário. Agora, não: parece que o trabalho é todo ele interno ao texto - trabalho do escritor, do configurador, daquele que tem a tarefa de transmutar a si e ao mundo em palavra. Se é verdade que o sobrevivente se constrói em face de seus mortos, então é preciso que, como testemunha, o narrador-protagonista de OC se emaranhe em seu texto, figurando-se como aquele que esteve, e está, par a par com seus próprios mortos.

São muitos os procedimentos para lográ-lo. Destaque-se inicialmente a “vocação” e o “preparo” do narrador de OC para tornar-se testemunha - aspecto entrevisto em Agamben. Destaque para sua memória. De fato, a memória do narrador de OC surpreende. A extraordinária (alguém dirá: improvável) memória desse narrador parece a daquele destinado a se tornar testemunha. E a afirmação não escapa à ironia: eis o sobrevivente certo, então, este que ostenta em seu texto esta notável memória - o narrador.

Que memória é essa? Para um cotejo esclarecedor, talvez seja útil buscar a narrativa de O que é isso, Companheiro? (OQIC), as memórias de Fernando Gabeira, sob seus anos de guerrilheiro, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Em OQIC, se referindo à memória que lhe restaria do dia do sequestro do embaixador americano, do qual participou, Gabeira escreve:

Não me lembro se o verde era mais intenso, se havia algum cheiro especial no ar. Não me lembro de nada, exceto de que era um dia nublado, desses milhares de dias que entram na gaveta da memória e de lá não saem jamais. É uma vergonha [...]. (GABEIRA, 1979GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Codecri, 1979., p. 107).

“Não me lembro de nada [...] É uma vergonha”, diz Gabeira, quase se justificando, sobre os lapsos de sua memória quanto ao referido dia. Essa justificativa que se refere a um dia somente, vale, entretanto, para todo o período registrado no livro. As omissões e lacunas da narrativa, já famosas por si, definem OQIC, cujo narrador é menos aquele que lembra e mais aquele que reinterpreta, reordena e comenta o pouco do passado que apresenta (CURY; PEREIRA, 2019CURY, Maria Zilda Ferreira; PEREIRA, Rogério Silva. O que é isso, companheiro? 40 anos: entre a autobiografia, o testemunho, a entrevista e a confissão. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), n. 73, 2019, p. 210-227.). Não há nele a ambição de ser a fonte do fato ocorrido. Não há a veleidade de narrar o fato pleno em todo seu detalhamento e precisão. Gabeira não se representa como sujeito da memória na narrativa de OQIC.

O narrador de OC é quase o oposto disso. Em momento nenhum ele se desculpa por não lembrar. A profusão de detalhes o certifica como “o” rememorador. Mais que sujeito da narrativa (o que, com efeito, tenta ser), ele tenta se mostrar como sujeito da rememoração. Veja-se um rápido exemplo. No capítulo “Pichando muros”, um dos primeiros de OC, as águas “sujas e oleosas” da lagoa Rodrigo de Freitas são descritas “marolando docemente, sob a brisa cálida do meio-dia”; o fusca é “verde”, a rua é uma “viela arborizada”, os engradados usados como suporte para escalar o muro são de “coca-cola”, a primavera carioca é “quente e abafada” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 45). Muitos dos objetos que, em algum momento do passado, se deram aos sentidos do narrador se mostram ao leitor, no presente, com seus adjetivos precisos. Quase nada é genérico: os engradados não são de mero refrigerante, são de coca-cola; o fusca não é mero carro, mero fusca, ele é verde; as águas da lagoa são oleosas e sujas, a brisa é cálida, etc. Nada disso são detalhes que cooperam para o sentido geral da intriga: ninguém confunde o carro verde com outro de cor diferente; ninguém cai na lagoa, etc. Os detalhes estão ali quase que gratuitos. Notável, pois, esta capacidade para o detalhe que, diga-se, domina o livro. Para cotejo, veja-se o detalhamento de um sonho, fortemente alegórico, do próprio protagonista, em que “sob um céu azul”, um “campo verde respira verão” e a “brisa sopra doce e cheirosa” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 389)- isso num sonho (!).

Antes de prosseguir, também para um cotejo esclarecedor, tome-se Batismo de sangue (BS), de Frei Betto. Neste, sabe-se, as descrições da tortura são apresentadas de modo extensivo e detalhado. São, por vezes, 20 páginas de relato de tortura, extensão que parece visar uma correspondência com as extensas sessões da tortura real (PEREIRA, 2010PEREIRA, Rogério Silva. Fronteiras da literatura brasileira contemporânea: mistura de gêneros em Batismo de Sangue de Frei Betto. Remate de Males, v. 30, n. 2, jul./dez. 2010, p. 335-350.). Em seu esforço de representá-la, Frei Betto parece querer dizer tudo, com destaque para a duração da própria tortura. Um de seus intentos, parece, é o de se contrapor a um dos aspectos essenciais da tortura moderna, e que define o tipo de tortura que a ditadura brasileira emprega, a saber, a de se torturar na clandestinidade e no segredo. Eis o contraponto: para ser contra a ditadura, é preciso se opor à clandestinidade e ao segredo, explicitando-se o que fora feito às escondidas.

Ao lado disso, ao se contrapor à ditadura desse modo, isto é, recorrendo à profusão de detalhes, o texto parece obedecer a certa ambição ingênua, comum a muitos testemunhos. Parece “preso à ilusão de que o concreto da experiência passada [poderia ficar] capturado no discurso” (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 50). Uma utopia, pode-se dizer.

A seu modo, OC também se define assim. A abundância de adjetivação, seu detalhismo e precisão, parecem objetivar uma captura, via discurso, da experiência passada, e com pouca mediação crítica. Nessa linha, ambos, BS e OC, também se definem por outro aspecto: o detalhe e a precisão em seus textos se prestam a reforçar sua condição de relatos verdadeiros. Com efeito, no testemunho, “o primado do detalhe é um modo [...] de fortalecimento da credibilidade do narrador e da veracidade de sua narração” (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 51). Se é verdade que todo texto testemunhal quer ser reconhecido como verdadeiro (Cf. RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. O testemunho. In: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 170-175., p. 173), como se viu; que o ponto de partida daquele que se põe a testemunhar é que seu relato é expressão da verdade - então parece que o primado do detalhe em OC se presta a reiterar a presumível verdade que ali é dita.

Isso se reforça por um outro ponto que singulariza o relato de OC. Por mais extensa e intensa que seja a memória inscrita ali, seu alcance ainda é relativamente restrito. Como o próprio autor diz, ele não foi capturado e não foi seviciado. Esteve, como se sabe, nas passeatas e dentro dos aparelhos da esquerda clandestina, mas não esteve nas prisões nem nos porões da tortura. Sabe-se que o testemunho olha o passado pelo ângulo estreito da primeira pessoa. Implica a obrigatória parcialidade do olhar, por definição pouco abrangente, de uma única pessoa. Ou melhor dizendo: ele é a voz singular que veicula a perspectiva de um olhar também ele singular. Nesse sentido, OC é mais restrito ainda por não poder dar em primeira mão testemunho sobre a prisão e sobre a tortura. Não há na narrativa (como se vê em OQIC) o cotidiano das várias unidades prisionais, o cotidiano com soldados e carcereiros, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Não há (como extensivamente há em BS) o detalhe e a extensão da tortura, o cotidiano da prisão, o cara a cara com o torturador e com os interrogadores. Se é verdade que as narrações testemunhais são “as fontes principais do saber sobre os crimes das ditaduras” (SARLO, 2007SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 48), então, muito da brutalidade ditatorial que OC deveria denunciar fica aquém de seu olhar em primeira pessoa. Os crimes da ditadura aconteceram em sua maioria nos cárceres lotados e fétidos, nos interrogatórios e na tortura - onde, entretanto, o autor não esteve.

Assim, é possível conjecturar que, ocupando-se de uma extensão relativamente menor, tal memória acaba ambicionando ser percebida como uma memória da intensidade. Eis, então, mais um motivo para que o autor mobilize o dito detalhismo entrevisto acima. É estreito o âmbito em que transita - falta-lhe a legitimidade que a presença em certos espaços lhe dariam para credenciar-se como testemunha. Nesse estreito âmbito, pois, introduz-se essa memória cuja intensidade quer compensar outras presumíveis deficiências.

Mas, avance-se. É preciso discutir outro aspecto do referido trabalho de construção do sobrevivente (ainda segundo a conceituação de Agamben): a decisão deliberada do protagonista de sobreviver. A narrativa de OC também elabora isso. Ali, tal decisão vem como síntese de uma extensa reflexão do protagonista sobre as consequências acerca de abandonar a guerrilha. Entenda-se: o caminho mais curto para a sobrevivência naquele momento era o abandono da guerrilha. De fato, num contexto em que prisões, mortes e desaparecimentos de guerrilheiros se sucediam quase diariamente, o melhor a fazer era a fuga pura e simples - dado que, nem sequer a rendição ao regime, de exceção e brutal em todos os sentidos, garantiria sobrevivência.

A decisão de sobreviver se dá, pois, como abandono da guerrilha. E sobrevém como uma espécie de alumbramento:

Fiquei imóvel na calçada, petrificado. As pessoas até olhavam para mim, com fugaz curiosidade […] eu tinha tomado uma decisão. […] Logo mais me atormentaria de culpa e vergonha, mas naquele momento eu só sentia alívio. Queria viver, tinha decidido e não havia mais dúvidas. (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 337, itálico nosso).

“Queria viver, tinha decidido” é ponto de virada na trama do livro. O protagonista decide se tornar um sobrevivente. Como o potencial suicida que vacila à frente do abismo, ele dá um passo atrás. O ambiente é, como sugerido, o do impasse entre a vida e a morte: em meio à derrocada da guerrilha, diante da perspectiva de captura, tortura e morte violenta.

Se a decisão aparece na narrativa a poucos capítulos do fim, figurada na afirmação do protagonista, ela, contudo, já vinha sendo construída bem antes. Desde os primeiros momentos de germinação da ideia, passando por esse alumbramento que se impõe a ele no meio da rua, indo até a sobrevivência real - de um até o outro momento, o percurso será longo e acidentado.

Como isso se dá no texto? Qual figurino de sobrevivente está disponível para o protagonista? Com efeito, havia muitos, mas nem todos eram acessíveis, nem todos eram de fácil aquisição. Por exemplo, havia aquele, como o de Gabeira, de árdua incorporação: baleado, quase morto, vísceras avariadas, tortura, longa convalescença na prisão (GABEIRA, 1979GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Codecri, 1979.). Trata-se de uma espécie de sobrevivência que acontece quase que por sorte - é aliás por um triz que, depois de preso e torturado, Gabeira não morre. De qualquer maneira, sublinhe-se, tal sobrevivência é constituída longe da companhia dos antigos companheiros, eventualmente silenciados - tanto os mortos como os demais remanescentes da guerrilha (CURY; PEREIRA, 2019CURY, Maria Zilda Ferreira; PEREIRA, Rogério Silva. O que é isso, companheiro? 40 anos: entre a autobiografia, o testemunho, a entrevista e a confissão. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), n. 73, 2019, p. 210-227.). Com alguma diferença, havia a sobrevivência como a de Frei Betto e Frei Tito, sem ferimentos a bala ou outros, mas também submetidos a tortura e longa passagem pela prisão - Tito com sérias sequelas emocionais (BETTO, 1982BETTO, Frei. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.). Como a de Frei Betto, também há um certo tipo de sobrevivência que pode ser imputada a Renato Tapajós (1977)TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo: Alfa-Omega, 1977., também preso, torturado, mas sem a experiência de ser baleado, como Gabeira - dentre tantas.

Aliás, é também Tapajós que nos permite acesso a uma útil categoria de sobrevivente. Ele fala dela em seu romance Em câmara lenta (1977). Com efeito, trata-se de se tornar um “desbundado”. O termo aqui não é usado nos sentidos que lhe dão os dicionários. O desbundado figurava então como aquele que, tendo participado de alguma organização clandestina, havia se desligado dela - significando isso se desligar da luta guerrilheira. Em certas circunstâncias, tornar-se um desbundado implicou risco de morte e execração. No seu livro A fuga, Reinaldo Guarany, outro ex-guerrilheiro memorialista, anota:

[…] centenas de militantes começaram a abandonar o país, a ‘desbundar’, como dizíamos na época (aliás, nossa visão era bem moralista, considerávamos como desertores os militantes que saíam do país; portanto, não era de se estranhar que anos depois alguns companheiros - como o Toledinho de São Paulo - tenham sido justiçados por quererem sair). (GUARANY, 1984GUARANY, Reinaldo. A fuga. Cantadas Literárias, n. 18. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 13).

O capítulo 7 da última parte (VIII) de OC adota o termo. Consta ali: “Eu discutia com o companheiro Alex o meu ‘desbundamento’. Pela primeira vez eu assumia essa condição”. (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 339). Como visto acima, não era fácil desbundar. No caso do autor, a começar pela gritante incoerência. Ele se mostra, na narrativa, plenamente consciente de que procede assim. Com efeito, justo ele que, com o companheiro Alex, tratava os companheiros desbundados com um “complacente desprezo” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 339) - justo ele estava abandonando a luta.

Eu que tinha escrito um documento, em fins de 1969 […], dizendo: ‘nem todos têm condições para ser a vanguarda da Revolução no seu período mais difícil’. Agora era eu quem estava repetindo para o Alex que não tinha mais condições pessoais para aguentar. (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 339).

A questão, na conjuntura da luta guerrilheira, tinha graves implicações éticas. A decisão de deixar uma daquelas organizações significava certo reconhecimento de covardia. E aqui voltamos a Tapajós. Apesar de o termo em si não ser usado por ele, a figura do desbundado é definida em seu referido romance sem meias palavras. O narrador trata o desbundado como o portador de completa abjeção. Tornar-se um desbundado era “sobreviver como um verme, como uma lesma, como um parasita esgotado. Conheço aqueles que tiveram medo e caíram fora, todos têm o olhar culpado, o mesmo gesto esquivo.” (TAPAJÓS, 1977TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo: Alfa-Omega, 1977., p. 101, itálico nosso).

“Sobreviver” - o desbundado é um sobrevivente. Mas o é não sem isenções ou estigmas. A ele, adere-se uma dupla condição de abjeção: uma, situando-o no grupo dos invertebrados e parasitas; e outra, situando-o em um grupo próximo aos amedrontados e acovardados (como certos desertores) e aos míticos traidores arrependidos (como emblematicamente Judas Iscariotes).

Não há meios tons na imagem proposta por Tapajós. Mas é de se duvidar que “todos” aqueles que se evadiram dos grupos de guerrilha ostentaram ou mereceram essa caracterização; é também de se duvidar dessa culpa quase inerente à condição desse militante que abandona a luta armada. Note-se bem: o desbundado não é um traidor da guerrilha que se bandeia para o lado do inimigo, a ditadura. O traidor acabava como delator e, não raro, agente duplo. Diferentemente disso, o desbundado é o ex-militante que decide simplesmente não continuar participando. Vive numa espécie de purgatório - lócus de “criminosos” que, não sendo punidos com a danação eterna, também ficam longe da redenção. Como referido mais acima no trecho de A fuga, os traidores (e até “potenciais traidores”) terão merecido a execução sumária - o que também é relatado em OC (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 328). Os desbundados parecem merecer tão só a culpa autoimposta, o escárnio e o desprezo.

Como sair da luta de guerrilha contra a ditadura e, ao mesmo tempo, evadir-se daquela condição de abjeção? Não, obviamente, pagando o preço de Gabeira, ou de Frei Betto - a prisão e a tortura. Nesses termos, a parte final de OC é longa negociação feita pelo protagonista com os companheiros e com sua consciência. O leitor é o juiz dessa negociação.

À essa altura, é preciso contextualizar num resumo a situação em que o protagonista se encontrava. A guerrilha estava se desagregando rapidamente e caminhava para o fim - os sinais eram perceptíveis. E a questão era de vida ou morte. Mas naquele momento, na virada de 1970-71, com os membros das organizações vivendo em completo isolamento, distantes da vida cotidiana concreta da maioria da população, etc. - havia séria controversa. Dentro das organizações de guerrilha, nem todos percebiam o fim próximo ou, se percebiam, não queriam acreditar.

O narrador trata de construir em detalhes a derrocada da luta guerrilheira, pretexto maior para sua saída. Em pouco mais de 1 ano, partindo-se de uma realidade eufórica em que várias ações de luta armada haviam resultado em sucesso, o quadro se deteriorara rapidamente. Agora, “estávamos ali, dizimados, reduzidos a menos de um quarto do que fora a organização […] os dados estavam ali. O cerco se fechava, inexoravelmente […] naquele ritmo de quedas eu certamente não resistiria mais um ano.” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 300). Leia-se: em mais um ano o protagonista talvez estivesse preso ou morto. Nessa linha, as formas de lutas da guerrilha são figuradas como esgotadas. O sequestro é uma delas. “Tinha funcionado num momento particular, numa conjuntura especial de circunstâncias” mas “foi se desgastando rapidamente e foram-se esvaindo suas possibilidades” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 308).

Surgem, na esteira disso, os mortos, assassinados pela ditadura; primeiro como meros números: “Desde que tinha começado a operação, tínhamos perdido mais de 10 companheiros no Rio Grande do Sul e um no Rio […] agora, mais dois em São Paulo” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 308). Em seguida, com nomes: “Marighela, Bacuri, Zé Roberto, Juarez, Devanir, Lucas, Severino, Zanirato, tantos outros” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 333). Ao mesmo tempo, acompanhando a lembrança desses mortos, vem a violência da ditadura: “Os que não tiveram a sorte de morrerem de bala foram triturados” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 327) na tortura.

E havia clima insuportável dentro das esquerdas em geral. Tudo culminando em lutas intestinas violentas, seguidas dos ditos “justiçamentos”. E a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), o grupo a que pertencia o autor, de modo mais brando é verdade, sem justiçamentos, não está isenta destes conflitos internos (Cf. SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 329).

O SOBREVIVENTE E SEUS MORTOS (QUASE ELEGIA)

Ao mesmo tempo em que o cerco se aperta, a consciência do protagonista, cindida entre sair ou ficar, tenta reinventar seus compromissos. A permanência na luta não se dá mais com vistas a se realizar o sonho da sociedade livre e igualitária; ou precipitar o fim da ditadura. Dentro de uma consciência cindida por frustrações e culpas, surge então nova finalidade para a luta. Afinal, havia os companheiros mortos - essas perdas teriam sido em vão? (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 333). A mortandade alta de companheiros, muitos deles jovens (19, 20 anos), impunha-se com sinal ambíguo. Não era aviso de cautela, não servia à debandada ou ao aceno com a bandeira branca; e sim a uma reiterada permanência sob fogo. Quase suicídio. Fugir desse morte garantida, dessa ausência completa de bom senso: eis o antídoto óbvio para sobreviver.

Nesses dilemas e dialéticas estava também a semente de certa forma de sobrevivência. Ali fermentava certo sentimento de culpa em relação aos mortos, outra característica do sobrevivente (segundo Agamben). Assim, como sobrevivente, o autor tem de se haver com a mencionada felicidade à qual faz referência no prefácio de 2020. Não se trata, diga-se, de uma felicidade neutra. Ela existe em forte tensão com a infelicidade dos companheiros (próximos ou distantes) que, tendo participado da guerrilha, foram afetados pela violência da ditadura. Essa felicidade se inscreve no registro da exceção; é, por assim dizer, anômala. E o próprio discurso, a própria narrativa, é o sintoma desta anomalia. Poder contar o que aconteceu é, em si, uma decorrência desta felicidade: a de ter sobrevivido num contexto em que a maioria passou por prisão e por tortura; em que muitos foram mortos ou ainda estão desaparecidos. Nesse quadro, aparece, pois, uma estreita vinculação entre o feliz e os infelizes; entre o sobrevivente e, sobretudo, os mortos.

Dentre os muitos mortos, um deles sobressai na narrativa; é Carlos Lamarca. O autor irá se constituir como sobrevivente majoritariamente em face deste. Explicite-se, desde já que, ao longo da narrativa, Lamarca não está morto. Os fatos narrados em OC vão até maio de 1971. Lamarca é assassinado pela ditadura meses depois, em setembro daquele ano.

Diga-se, na esteira disso, que os outros dois personagens da guerrilha que figuram na nova dedicatória, Iavelberg e Daniel, aparecem bem menos. Daniel aparece aqui e ali em rápidos incidentes. A Iavelberg são dadas algumas páginas de diálogo com o protagonista, já no final do livro, mas ela comparece mais como a bela companheira de Lamarca (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 356), e para que o diálogo, por óbvio, se dê em torno de Lamarca como tema (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 356).

O capitão Lamarca é personagem importante na narrativa. Ali é descrito com um zelo que o situa próximo do personagem hagiográfico e do herói épico. Não escapa de figurar como exemplo: daquilo que muitos gostariam de ser, daquilo que todos os mortos, enfim, se tornaram, isto é, vítimas brutais da ditadura. Sua presença, ao menos inicialmente, serve à lamentação da força humana que se perdeu naquele momento.

Quanto aos fatos, a narrativa vale-se do intenso convívio entre seu autor e Lamarca, sobretudo durante as ações da guerrilha, mas vale-se também do que o autor ouviu falar dele, inclusive através dos companheiros. São páginas e páginas compondo o exemplar guerreiro. Alguns exemplos. Ao contrário do que se espera dos guerrilheiros militares mais velhos (quando se conhecem Lamarca tem 32 anos, Sirkis tem 19 anos), que são “durões”, “ásperos” e com “pouca sensibilidade humana”, Lamarca surge na narrativa como um “sujeito afável, com a humanidade à flor da pele”; como aquele que “nunca desrespeitava ou sacaneava outro colega”; “que tem uma visão do povo real [...] e do Brasil que nenhum outro companheiro tinha.” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 309). Que, como revolucionário, era um idealista, autoconsciente, entretanto, de suas “limitações teóricas e culturais” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 386); colocando-se de corpo e alma a serviço da revolução (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 350). Entre pessoas comuns do povo, logo se mistura, demonstrando uma “capacidade notável de se relacionar com pessoas do povão, contar casos, dar dicas” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 299). Como capitão do exército, “respeitava seus comandados, e se impunha com uma autoridade inata, uma voz de comando que irradiava aquela segurança” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 285) que todos os seus subordinados, inclusive o autor, sentiam.

Já, “como combatente, era adestradíssimo […] tinha sentido tático e uma intuição extraordinária, imaginação e reflexos trabalhados por anos de formação […] um feixe de nervos que, na hora do perigo, funcionava com a precisão de um cronômetro, calma olímpica, frieza absoluta” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 285). Aspectos que faziam dele um excelente atirador, com “pontaria legendária” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 285). Mas que se penalizava por ter que matar suas vítimas. Duas falas de Lamarca sobre isso: “Sacanagem. Não queria matar o cara. Mas não deu” e “É uma merda ter que matar” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 284). Isso dito em uma passagem em que o narrador dá ao próprio personagem Lamarca a voz para que narre situações de ação em que alveja oponentes (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 284).

O ponto alto de caracterização de Lamarca se dá na parte VII, a penúltima, em que se conta o longo período de cativeiro do embaixador suíço, Giovanni Butcher. Como se sabe, o grupo guerrilheiro VPR havia sequestrado o embaixador em finais de 1970 e exigia em troca, como era praxe naquelas circunstâncias, a libertação de guerrilheiros presos. Era já o quarto sequestro feito pela esquerda, e a ditadura, tarimbada em negociar com sequestradores, recalcitrava, estendendo os prazos para além do aceitável, vetando nomes nas listas de presos a serem libertados, etc.

Os gestos da ditadura soam ambíguos, sobretudo a demora em responder às reivindicações dos sequestradores. Para estes, essa demora é entendida como jogada para ganhar tempo, com o fito de encontrar o cativeiro e desbaratá-lo. Ao mesmo tempo, o cerco parece realmente se fechar para toda a guerrilha: abundam relatos sobre guerrilheiros assassinados e presos, como se disse acima (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 333), quadro que intensifica os conflitos entre os sequestradores.

A direção da VPR então decide pela execução exemplar do refém - o que representaria espécie de mensagem de firmeza à ditadura. Avalia-se que a guerrilha havia perdido o respeito: “Já vacilamos tanto que a ditadura não nos leva mais a sério” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 291). Alguns poucos militantes se posicionam contrários à execução, dentre eles o protagonista.

A trama, então, leva a crer que a morte do refém se consumaria. Eleva-se a voltagem. As idas e vindas em torno da provável execução são contadas com lances de suspense. Contudo, depois de uma conversa entre o protagonista e Lamarca, o dirigente opta, numa reviravolta de thriller, por se impor ao grupo e poupar o refém (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 294). E, algum tempo depois, feitas as concessões de parte a parte, o sequestro tem final feliz, com a ditadura soltando os presos políticos e com o refém libertado.

Construído como espécie de santo e herói, firme e equilibrado nas decisões mais importantes, Lamarca se sobressai como voz fundamental na narrativa. O narrador-protagonista se constrói, por sua vez, em consonância com essa voz. Afinal, a decisão pela vida do refém é, por assim dizer, de ambos. Mas não é só isso.

Mais à frente, já tendo encaminhado uma carta comunicando seu desligamento à VPR, já tendo conversado com os amigos e demais membros da organização, o autor recebe uma carta de Lamarca em que este se mostra solidário e compreensivo quanto à sua saída da organização. “Sentado no banco da praia, comecei a ler a carta temeroso. Engano. A carta era das mais amigas. Começava dizendo que [Lamarca] tinha por mim o maior respeito como companheiro. Que entendia e aceitava minha decisão.” (SIRKIS, 2020SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020., p. 349) - decisão de se desligar da guerrilha. Também na carta, Lamarca comunica sua decisão de romper com a VPR - sem, no entanto, deixar a luta armada. Mais uma consonância de intenções entre o autor e o capitão.

Estava consumada a feição do sobrevivente. Sirkis demoraria pouco mais de 1 mês para sair definitivamente da VPR e do Brasil, autoexilado. Nesse tempo, não abandona a organização. Se dispõe a ajudar no provisionamento financeiro do grupo (via assaltos). Se dispõe também a encontrar novo esconderijo para Lamarca, e a convencê-lo a sair do país (o que não consegue). Lamarca morreria meses depois, fuzilado no interior da Bahia após perseguição implacável. E aquela carta era o salvo-conduto para o autor: a garantia de um desbunde que não vinha envolto em abjeção. O capitão dava-lhe a sanção necessária para que se transferisse para outra vida, outro país e outra condição.

E aqui surge outra feição de Lamarca na narrativa. Se acima aparecia como a figura exemplar cuja vida se celebra post-mortem, agora surge como espécie de avalista do narrador. Eis, então, o sobrevivente dando voz ao morto. Pelo texto de OC, fala Carlos Lamarca. O capitão está ali, vividamente representado em suas ações, em diálogos cheios de conflitos, em suas cartas ao protagonista. Mas, aos poucos se vê, é Lamarca quem dá voz a Sirkis, o qual, no capitão guerrilheiro, busca e encontra legitimação para poder narrar no presente, o final dos anos 1970, aqueles eventos, o que inclui a cuidadosa construção de seu desbundamento - isto é, sua sobrevivência.

OBSERVAÇÕES FINAIS

O narrador de OC surge ali como o singular sobrevivente que se descortina sob os olhos do leitor: sem ferimentos, sem ser preso ou torturado; pretenso sujeito da memória; decidido a sobreviver; configurando sua felicidade em tensão com a infelicidade dos que morreram; falando do passado sem descuidar de seus mortos, oferecendo a estes certa oportunidade de falar.

No livro, os mortos, sobretudo Lamarca, são arregimentados decisivamente para a configuração desse narrador. Têm funções bem definidas. Em primeiro lugar, compõem o grande coro de vozes dos testemunhos a respeito da brutalidade das ditaduras latino-americanas da segunda metade do século 20; em especial, dos testemunhos brasileiros sobre a brutalidade da ditadura local.

Ao lado disso, comparecem ali dando ao narrador a parcela requerida de legitimidade de que necessita. Carimbando-lhe, por assim dizer, o passaporte para a sua sobrevivência.

Na dedicatória nova, comparecem para uma tarefa talvez insuspeita. A de tamponar tenuemente a ausência daquela primeira dedicatória que, como se viu, desaparece sem qualquer justificativa. São nomes cuja solene dignidade é inquestionável. Posicionados ali, figuram como cortina de fumaça que, se não ofuscam o referido desaparecimento, não deixam dúvidas sobre sua própria presença no paratexto do livro - que, de modo nenhum, é gratuita.

Ao contrário. Como se viu, os mortos que comparecem na nova dedicatória estão intensivamente na narrativa. Vá lá, a dedicatória é ato tardio - mas não incongruente. E de certa forma, sendo reparo e reconhecimento, é também ato de explicitação do que já estava na narrativa em potência. A nova dedicatória é fórmula compacta de uma gratidão que já está lá na história contada.

E, sublinhe-se, é verdade que os nomes impressos ali guardam em si a concretude intransferível das personas históricas a que se referem: Daniel, Iavelberg e Lamarca. São, de fato, nomes que representam singularidades. Mas também não deixam de ser emblemas, metonímias de todos aqueles mortos, índices do valor humano incontável que se perdeu - das mulheres e dos homens que morreram sob a violência da ditadura.

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    Em 1998, na edição da Record, eram 82.
  • 3
    Na verdade, a troca de dedicatória acompanha o livro desde a edição de 1998, da Record.
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    Deixa-se para outro momento, quem sabe, uma reflexão sobre esse silêncio e sobre a eventual faceta revisionista do gesto.
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    Como dito, o prefácio da edição de 2020 é uma adaptação de um prefácio da edição de 1998, por sua vez publicado na edição de bolso de 2014 (Cf. Referências). Com extensão maior, aquele prefácio de 1998 trazia 20 páginas. Nele constava detalhadas reflexões sobre Fernando Gabeira, Herbert Daniel, dentre outras - que, na edição de 2020, estão omitidas. Seria preciso uma enquete mais detalhada para evidenciar as muitas alterações que sofreram esse prefácio ao longo das muitas edições - o que não é o propósito desse texto.

REFERÊNCIAS

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  • BETTO, Frei. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
  • CURY, Maria Zilda Ferreira; PEREIRA, Rogério Silva. O que é isso, companheiro? 40 anos: entre a autobiografia, o testemunho, a entrevista e a confissão. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), n. 73, 2019, p. 210-227.
  • GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
  • GUARANY, Reinaldo. A fuga. Cantadas Literárias, n. 18. São Paulo: Brasiliense, 1984.
  • LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
  • PEREIRA, Rogério Silva. Fronteiras da literatura brasileira contemporânea: mistura de gêneros em Batismo de Sangue de Frei Betto. Remate de Males, v. 30, n. 2, jul./dez. 2010, p. 335-350.
  • RICOEUR, Paul. O testemunho. In: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 170-175.
  • SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
  • SILVA, Mario Augusto Medeiros da. Prelúdios & noturnos: ficções, revisões e trajetórias de um projeto político. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
  • SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. 1. ed. e-book. Rio de Janeiro: TIX, 2014.
  • SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Record, 1998.
  • SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. Rio de Janeiro: Ubook Editora, 2020.
  • SIRKIS, Alfredo. Os carbonários Rio de Janeiro: Bestbolso, 2014.
  • SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários: memórias da guerrilha perdida. 5. ed. São Paulo: Global Editora, 1981.
  • TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta São Paulo: Alfa-Omega, 1977.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
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