Acessibilidade / Reportar erro

O viaduto que não caiu: a cidade como perda em Adoniran Barbosa

The overpass that never fell down: city as loss in Adoniran Barbosa

RESUMO

A aparente ausência de sentido existente entre o embelezamento do Viaduto Santa Ifigênia e a tristeza desdobrada na canção de Adoniran Barbosa é o ponto de partida e de chegada deste artigo. O estudo da materialidade poético-musical dessa canção, que tematiza a possibilidade não concretizada de demolição de uma construção histórica, amparado em análises histórico-sociais sobre a formação e o desenvolvimento de São Paulo, norteiam nossa tentativa de interpretação do conjunto da obra do sambista paulista em torno do esforço por tornar visível a perda como núcleo da experiência de quem habita a cidade.

PALAVRAS-CHAVE
Adoniran Barbosa; samba; música popular

ABSTRACT

The apparent lack of meaning between the improvement of Santa Efigênia overpass and the sadness unfolded in Adoniran Barbosa’s song is the starting and ending point of this article. The study of the song, which thematizes the unrealized demolition of a historical building in São Paulo, guides our attempt to interpret Adoniran’s work around the effort to make visible the loss as the core of the experience of those who inhabit the city.

KEYWORDS
Adoniran Barbosa; samba; popular music

A CANÇÃO

Concreto era o material com o qual seria construído o viaduto do Anhangabaú que, segundo os planos da Secretaria Municipal de Obras, tornaria obsoleto o Santa Efigênia3 3 Inaugurado em 26 de julho de 1913, sob a gestão do então prefeito barão Raimundo Duprat, o Viaduto Santa Efigênia foi concebido a partir da estética art nouveau, sendo composto de peças de ferro pré-ajustáveis com o peso total de uma tonelada produzidas e importadas da Bélgica. Para maiores detalhes sobre a obra, consultar Jorge (1999). . Em matéria de capa do dia 6 de fevereiro de 1972, recolhida por Adamowski em sua dissertação de mestrado, a Folha de S. Paulo noticia o plano da seguinte maneira:

A cidade perderá outra relíquia: O Santa Ifigênia. O mais antigo viaduto de São Paulo - o Santa Ifigênia, inaugurado em 1913 - será demolido para dar lugar a um outro, mais amplo e sem pilares no Anhangabaú, que será erguido enquanto o largo São Bento estiver interditado para a construção de uma estação de Metrô. [...] suas linhas antiquadas e sua estrutura de ferro já destoavam demais da paisagem de concreto da Capital paulistana e passaram a fazer dele [o viaduto] um intruso no tradicional cartão de visitas da cidade: a foto do Vale do Anhangabaú. (apud ADAMOVSKI, 2013, p. 38).

Como se sabe, a demolição planejada e anunciada não se consumou, e o episódio poderia ter sido recalcado em algum canto da memória coletiva. Mas virou samba e, nessa forma, cruzou as décadas. A passagem do fato para o samba não é linear, e aquilo que a canção canta não pode ser lido como mero registro das ocorrências. Tal afirmação não é um parti pris. Nas páginas que se seguem, tentaremos demonstrar que o interesse desse samba vai muito além de ser um registro poético-musical de uma possibilidade não consumada.

Venha ver

Venha ver Eugênia

Como ficou bonito

O viaduto Santa Efigênia

Foi aqui,

Que você nasceu

Foi aqui,

Que você cresceu

Foi aqui que você conheceu

O seu primeiro amor

Eu me lembro

Que uma vez você me disse

Que um dia que demolissem o viaduto

Que tristeza, você usava luto

Arrumava sua mudança

E ia embora pro interior

Quero ficar ausente

O que os olhos não vê

O coração não sente

Em “Viaduto Santa Efigênia”4 4 “Viaduto Santa Efigênia” foi composta em 1978 em parceria com o amigo Alocin (pseudônimo de Nicola Caporrino, com quem já havia concebido, em 1952, o “Samba do Arnesto”). A canção foi gravada no LP Adoniran e convidados (BARBOSA, 1980), com a participação de Carlinhos Vergueiro. , Adoniran começa a elaboração poética do fato em questão pelo seu desenlace: a reinauguração do viaduto reformado. Isso lhe permite deslocar a possibilidade da sua perda para o centro da canção. A inversão é notável, e expressiva:

Venha ver

Venha ver Eugênia

Como ficou bonito

O viaduto Santa Efigênia

Venha ver

[...]

Quero ficar ausente

O que os olhos não vê

O coração não sente

A elaboração da experiência ficcional dirige-se, portanto, a esse centro, que se desdobra nas três estrofes que sucedem o chamamento inicial. A primeira estrofe da canção condensa, de maneira sóbria e em poucos versos, a longa e dramática elaboração da nostalgia em “Vila Esperança”5 5 Originalmente batizada como “Primeiro Carnaval”, a marcha-rancho composta em parceria com Marcos César em 1968, foi rebatizada como “Vila Esperança” e foi inscrita como concorrente no IV Festival da Música Popular Brasileira, ocorrido no mesmo ano. :

Vila Esperança, foi lá que eu passei

O meu primeiro carnaval

Vila Esperança, foi lá que eu conheci

Maria Rosa, meu primeiro amor

Como fui feliz, naquele fevereiro

Pois tudo para mim era primeiro

Primeira rosa, primeira esperança

Primeiro carnaval, primeiro amor criança

Numa volta no salão ela me olhou

Eu envolvi seu corpo em serpentina

E tive a alegria que tem todo Pierrô

Ao ver que descobriu sua Colombina

O carnaval passou, levou a minha rosa

Levou minha esperança, levou o amor criança

Levou minha Maria, levou minha alegria

Levou a fantasia, só deixou uma lembrança

Em “Viaduto Santa Efigênia”, toda a perda se resume ao pretérito perfeito “foi”, enunciado por um narrador que já não se confunde com a personagem narrada.

Foi aqui, que você nasceu

Foi aqui, que você cresceu

Foi aqui que você conheceu

O seu primeiro amor

O adjunto adverbial “aqui” contrabalanceia o tempo passado da memória com o aqui e agora do ato de recordar. Por outro lado, ele também se conecta cronologicamente com o tempo enunciado no início da composição: depois do “venha ver” coloca-se o “foi aqui” como sequência temporal objetiva dos acontecimentos, que abre as portas para a dimensão propriamente narrativa da composição (Eugênia foi chamada, chegou, e o narrador inicia seu relato), que emerge do passado. Essa temporalidade pretérita se apresenta, inicialmente, sob o signo da nostalgia contida da infância perdida, narrada em terceira pessoa, e se conecta, na segunda estrofe, com o centro dramático da ação. Este também se desenrola no plano da memória, mas, desta vez, o passado emerge da experiência do próprio narrador. É a partir dessa recordação que a segunda estrofe estabelece a perda como ponto de articulação entre a nostalgia do passado e a ameaça do futuro:

Eu me lembro

Que uma vez você me disse

Que um dia que demolissem o viaduto

Que tristeza, você usava luto

Arrumava sua mudança

E ia embora pro interior

O distanciamento do narrador, que estanca a dramaticidade da dor eminente, desloca todo mecanismo de identificação afetiva para a estrofe final, quando já não se sabe se é Eugênia que toma a palavra, ou se é o próprio narrador que interrompe o relato memorial para lamentar sua possível partida. O decisivo, entretanto, é a anulação da distância diante da possibilidade da perda.

Quero ficar ausente

O que os olhos não vê

O coração não sente

Assim, apesar de o diálogo estar presentificado no aqui e agora do “venha ver”, o centro narrativo se estrutura em torno da recuperação de uma possibilidade que não se concretizou. E, aos poucos, o tempo linear da narrativa vai dando lugar à emergência de um futuro do pretérito no qual a ausência se apresenta como protagonista de uma história ficcional paralela. Nela, a possibilidade de demolição do viaduto tem sua contrapartida na intensificação das temporalidades pretéritas, inicialmente centrada na nostalgia da infância e da juventude (segunda estrofe), e, em seguida, voltada para a recuperação da lembrança que anunciava o futuro a ser desencadeado pela consumação da possibilidade: o luto e a partida (terceira estrofe). Essa intensificação culmina com a mudança de registro do narrador para a primeira pessoa, e a anulação da distância implicada nesse recurso é a condição poética de enunciação da ausência.

Do ponto de vista da estruturação musical, o plano tonal (Figura 1) conecta a primeira, a segunda e a terceira estrofes por progressões semicadenciais, cujo caráter suspensivo retarda o movimento cadencial que cria unidade formal. Este está reservado à quarta estrofe, de caráter lírico: “Quero ficar ausente/ O que os olhos não vê/ O coração não sente”. Para compensar as sucessivas suspensões que conectam e dão linearidade aos eventos narrados, intensificando sua dramaticidade e postergando o repouso, a terceira estrofe reitera a terminação conclusiva que delimita a unidade tonal formada pelos três conjuntos de versos que elaboram poeticamente a figura da perda: a nostalgia do passado (primeira estrofe, terminação semicadencial), articulada com a possibilidade da perda situada no futuro (segunda estrofe, terminação semicadencial), desemboca na quadratura lírica de caráter musicalmente conclusivo.

Figura 1
Esquema analítico do plano tonal de “Viaduto Santa Efigênia”. Elaboração: Gabriel S. S. Lima Rezende

No plano da construção melódica, o refrão contrasta com a primeira estrofe pelo exacerbado lirismo (Figura 2). Ele não apenas contém o ponto culminante e as extremidades melódicas da tessitura, mas vale-se da alternância entre movimentos melódicos de grande amplitude e de pequena amplitude intervalar (amplo + sinuoso/ amplo + sinuoso) para ambientar o chamado a Eugênia.

Figura 2
Lirismo do refrão de “Viaduto Santa Efigênia”. Elaboração: Gabriel S. S. Lima Rezende

Enquanto pontos de apoio da figuração melódica, as notas sol e ré se associam, respectivamente, à expansão (marcações em vermelho) e à retração (marcações em azul) do lirismo, como será visto adiante. A primeira estrofe (Figura 3) contrasta com o refrão por sua maior sobriedade. Nela, figuras melódicas curtas, de caráter predominantemente rítmico, intercaladas por longas pausas são empregadas para afirmar o aqui e agora do ato de recordar (“foi aqui”). Na primeira quadratura, destaca-se a maneira como as notas sol e ré se organizam como pontos de apoio da melodia para delinear um lirismo contido. Na segunda quadratura dessa mesma estrofe, a reiteração da nota ré dá lugar ao movimento de expansão da melodia que se apoiará na nota sol, e que estenderá a tessitura até a nota ré uma oitava acima. Assim, o momento propriamente lírico emerge ao final da estrofe, nos compassos que encaminham o movimento semicadencial (“o seu primeiro amor”).

Figura 3
Contenção e expansão do lirismo na primeira estrofe de “Viaduto Santa Efigênia”. Elaboração: Gabriel S. S. Lima Rezende

Esse lirismo, por sua vez, contrasta com a figura predominantemente rítmica que emerge no lugar correspondente na estrofe seguinte (Figura 4). Vimos que a primeira e a segunda estrofes se conectam tanto no plano narrativo quanto no plano tonal. Melodicamente, a segunda estrofe elabora e adensa o material apresentado na primeira. Mas, justamente na movimentação em direção à dominante, que encaminha a formação da semicadência, o lirismo da primeira estrofe (“o seu primeiro amor”) é substituído por uma intensificação rítmica que potencializará a chegada da terceira estrofe. Essa intensificação rítmica acompanha, no plano dramático, a iminência da partida: “arrumava sua mudança e ia embora pro interior”.

Figura 4
Elaboração melódica e intensificação rítmica na segunda estrofe de “Viaduto Santa Efigênia”. Elaboração: Gabriel S. S. Lima Rezende

Isso conduz a composição, na terceira estrofe (Figura 5), para aquela temporalidade outra, não realizada, de um futuro pretérito em que a perda está consumada. Nesta terceira estrofe - que, no plano tonal, se conecta com as anteriores como fechamento conclusivo - a elaboração melódica também conduz a um ponto conclusivo do discurso melódico, reafirmado pela própria estrutura repetida da seção, que enfatiza por reiteração o material cadencial. Em seus pontos estruturais, a melodia da terceira estrofe condensa a elaboração melódica do próprio refrão ao retomar as notas sol e ré como pontos de apoio das tendências expansiva e retrativa do lirismo que haviam sido embaralhadas nas estrofes anteriores.

Figura 5
O lirismo da perda e o caráter conclusivo da terceira estrofe de “Viaduto Santa Efigênia”. Elaboração: Gabriel S. S. Lima Rezende

Assim, mais do que o convencional emprego do modo menor associado com o lamento, é a própria conexão interna entre os elementos poéticos e musicais que faz emergir a perda como matéria-prima da criação. Pois, em se tratando de Adoniran Barbosa, a elaboração de tal matéria-prima nem sempre se prende à convencional dicotomia, amplamente empregada, entre modo menor - tristeza, modo maior - felicidade: mesmo nos mais radiantes sambas cintilam as tonalidades da perda e da ausência6 6 Em depoimento sobre Adoniran Barbosa, Zuza Homem de Melo estabelece outra vinculação convencional para explicar o predomínio do modo menor em Adoniran ao remetê-lo, evocando a ascendência familiar do compositor, às canções napolitanas. Independentemente da validade explicativa dessa vinculação, nosso argumento enfoca justamente o momento em que a elaboração poético-musical transcende o elemento convencional que pode estar em sua base. Para conferir o depoimento de Zuza, consultar https://www.youtube.com/watch?v=DlsjLWKMvyY. Acesso em: 3 jan. 2022. .

O Arnesto nos convidou

Prum’ samba, ele mora no Brás

Nós fumos, não encontremos ninguém

Nós vortermos com uma baita duma reiva

Da outra vez, nós num vai mais

(“Samba do Arnesto”)

O mestre falou

Que hoje não tem vale não

Ele se esqueceu

Que lá em casa não sou só eu

(“Torresmo à milanesa”)

Marquei com a minha nega

Às cinco

Cheguei às cinco e quarenta

Esperar mais

Que vinte minutos

Quem é que aguenta

(“Tocar na banda”)

Bãosis, a conversa está muito dus animadas,

mas eu vou dar uma de Pirandela. É como diz o deitado:

‘Quando pobre come galinha, ou ele tá doente ou a galinha’.

(“No morro do piolho”)

A retomada da seção inicial (“Venha ver”) no encerramento de “Viaduto Santa Efigênia” reforça a unidade formada pelas estrofes anteriores, e delineia a forma cíclica do tempo na composição. Pois se entre o “venha ver” e o “foi aqui” há linearidade cronológica objetiva, o mesmo acontece entre o “o que os olhos não vê” e o “venha ver”, hiato que condensa a passagem de toda elaboração do futuro do pretérito (e seu movimento de aproximação da perda eminente) para a aparente negação da perda no presente, que reconecta a narrativa à cronologia linear. Nessa forma cíclica, o presente evoca o passado que, por sua vez, desemboca no presente (que voltaria a evocá-lo).

Não são poucos os sambas de Adoniran que começam pelo refrão, que, via de regra, é a fórmula poética mais eficaz em termos de assimilação pelo ouvinte/consumidor. Mas, nesse caso, a construção poético-musical recoloca a importância do refrão para a própria composição. Por um lado, ele delimita e diferencia o momento de elaboração da perda como matéria poético-musical; por outro, ele se vincula a tal elaboração ao subordinar a recordação distanciada em terceira pessoa à disposição ativa própria do narrador, centrada na ação de “ver”. A negação do ver como ausência, no refrão, é subitamente contrastada, na volta da seção inicial, com o chamamento “venha ver Eugênia”. É possível preencher a lacuna de sentido que aí se forma com diferentes interpretações. Mas, em última instância, permanece a questão: se o viaduto não foi demolido, por que a tristeza?

A CIDADE E O OLHAR

Superado o acidente geográfico da Serra do Mar, que dificultava a exploração econômica dos territórios interioranos, o traçado da malha ferroviária que se ramificou a partir da inauguração do eixo Santos-Jundiaí (1867) elegeu a cidade de São Paulo como seu principal centro administrativo. O enriquecimento que se seguiu redimensionou a importância da capital paulistana em todas as esferas socialmente relevantes: da economia à política, passando pela cultura. Foram os espólios do ciclo cafeeiro que garantiram à cidade uma posição privilegiada no processo de modernização que se estruturou paulatinamente a partir dos anos 19307 7 O processo de industrialização e urbanização de cidades brasileiras tivera um primeiro impulso com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que desorganizou a economia das principais nações industriais europeias. A demanda de consumo existente na economia brasileira, potencializada pelo período de expansão econômica propiciada pelos ganhos da cafeicultura, ensejou um ciclo incipiente de produção substitutiva de alguns produtos industrializados, embora a ausência de uma indústria de base limitasse o alcance e a complexidade do processo. . A condição de principal centro econômico da “civilização do café”8 8 O termo “civilização do café” foi utilizado por Alves Motta Sobrinho (1978) para descrever a importância e a centralidade que a cultura cafeeira assumiu para a sociedade brasileira no período compreendido entre as décadas iniciais do século XIX e as primeiras décadas do XX. deixou como herança não apenas o acúmulo de capitais, condição imprescindível para os investimentos necessários para a industrialização incipiente que se esboçava. Esse crescimento acelerado legou também à cidade um rico espaço urbano onde coabitavam grandes contingentes de trabalhadores provenientes de uma miríade de culturas, resultado dos diferentes fluxos migratórios atraídos pelo crescimento de São Paulo. Nesse cenário, diferentes tradições se entrelaçavam em torno da utopia do progresso urbano-industrial, promessa maior da modernização. Sendo assim, é de se pontuar as coincidências no percurso de vida de João Rubinato que, de uma ou outra forma, lhe facultaram o convívio e a assimilação de traços importantes da cultura popular de três diferentes tradições que se mostraram fundamentais no processo de crescimento da metrópole: a cultura italiana, a caipira e a negra.

Entretanto, esse protagonismo como principal centro econômico urbano e industrial que São Paulo assumiu ao longo do século XX apresentava um custo elevado. Se a cidade que se expandia continuamente se apresentava como espaço erigido a partir de uma noção utópica do progresso, ela se materializava também como lugar da perda dos laços sociais e afetivos e da dissolução identitária. Com efeito, a experiência histórica da urbanização acelerada de São Paulo teve como uma de suas características principais uma reconfiguração abrupta e constante de sua infraestrutura, implicando, inclusive, na destruição material de seus marcos arquitetônicos e na contínua transformação de sua organização espacial.

Do ponto de vista da paisagem urbana, essa contínua reconfiguração do espaço teve como uma de suas consequências a demolição de prédios e estruturas que, embora muitas vezes significativos para a memória coletiva da cidade, encontravam-se constantemente expostos à possibilidade de serem considerados obsoletos em um período relativamente curto. Ao afirmar que o viaduto Santa Efigênia, com “suas linhas antiquadas e sua estrutura de ferro”, destoava “da paisagem de concreto da Capital paulistana”, a Folha de S. Paulo estava dando voz a uma perspectiva específica sobre a urbanização da capital do Estado. Nessa perspectiva, o fluxo frenético e incessante de transformações amparado no par demolição-construção é emblema e confirmação de um progresso desejado.

Inaugurado em 1913, o viaduto Santa Efigênia fora planejado para desafogar o trânsito no Vale do Anhangabaú, mas, já em meados da década de 1940, sua estrutura metálica, em processo de corrosão, era insuficiente para sustentar o tráfego ao qual fora destinado, e sua demolição já começava a ser comentada (OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 111)9 9 O viaduto foi reformado em 1950 e, assim, novamente liberado para o tráfego. (OLIVEIRA, 2011, p. 111-112). . Não se trata, evidentemente, de um erro de cálculo em sua construção, mas dos efeitos de um intenso crescimento urbano que transformava as feições da cidade. Se, em 1913, por ocasião de sua inauguração, o viaduto fora saudado como “grande melhoramento”, emblemático da nova cidade impulsionada pelo progresso do comércio e da indústria (OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 107), já na década de 1950 ele passara a ser visto como armação de ferro “de agourenta cor escura, marcada pelo tempo” (OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 112). Confirmando sua condição de estorvo, em 1964 saíram publicações com o título “Perto do fim”, embaladas pelas denúncias do vereador Francisco Batista à Câmara Municipal sobre as condições precárias da construção (OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 112).

O arco temporal delineado pela ascensão e a obsolescência do viaduto enquadram uma cidade que nasceu e se extinguiu em poucas décadas. Antonio Candido a menciona justamente na contracapa do primeiro LP de Adoniran Barbosa: “[...] a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte” (CANDIDO, apud BARBOSA, 1975BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. São Paulo: EMI-Odeon, SMOFB-3877, 1975.)10 10 O texto de Antonio Candido aqui citado foi editado na contracapa do segundo LP gravado por Adoniran Barbosa, intitulado Adoniran Barbosa (BARBOSA, 1975). O texto fora encomendado ao intelectual por iniciativa do produtor musical do disco, Pelão, como uma forma de protesto pela censura de duas canções do primeiro LP de Adoniran Barbosa, gravado e lançado no ano anterior: “Samba do Arnesto” e “Um Samba no Bixiga”. Um dos motivos alegados pelos censores era a inadequação do linguajar utilizado pelo sambista, que desvirtuava o correto uso da língua. .

O entendimento acerca do modelo de desenvolvimento urbano contido na reportagem veiculada pelo jornal Folha de S. Paulo, anteriormente referenciada, ecoa não apenas uma narrativa otimista sobre o progresso. Ela espelha uma visão que tende a valorizar a modernização e seus desdobramentos como processos benéficos por sua própria natureza. Em grande medida, isso nos ajuda a entender a identidade sem mediação estabelecida entre a transformação do espaço urbano e um presumido desenvolvimento prometido pela sociedade urbano-industrial moderna. Como observou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss: “Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas a dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal” (STRAUSS, 2021LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 102-103).

Em sentido similar, o sociólogo brasileiro Renato Ortiz pontuou que, em virtude dos condicionantes históricos endógenos, a modernização foi acolhida pela elite nacional, inclusive entre a intelectualidade, de maneira pouco crítica e de forma imoderadamente otimista:

A necessidade de se superar o subdesenvolvimento estimula uma dualidade da razão que privilegia o polo da industrialização. Não tenho dúvidas que historicamente esta forma de equacionar os problemas desempenhou no passado um papel progressista: a luta pela construção nacional pode se contrapor às forças oligárquicas e conservadores e ao imperialismo internacional. Pagou-se, porém, um preço: o de termos mergulhado numa visão acrítica do mundo moderno. (ORTIZ, 1989ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura Brasileira e Indústria Cultural. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989., p. 36).

Essa aprovação a priori da modernização comportava também interesses das classes hegemônicas mais diretamente relacionados à sociedade de consumo que começava a se esboçar em São Paulo. Nesse sentido, os centros urbanos funcionavam, a um só tempo, como espaços nos quais se estruturava a produção massificada de um número cada vez maior de mercadorias e serviços diretamente ligados aos novos costumes trazidos pela vida nas grandes cidades, gerando mercados consumidores para essa mesma produção. Da mesma forma, eles forneciam os contingentes de mão de obra necessários para viabilizar o sistema produtivo e otimizar o lucro. Em São Paulo, a radicalização e a velocidade vertiginosa desse ciclo ensejaram discursos que se organizaram de forma a estabelecer uma identidade imediata entre o progresso e o trabalho. De forma complementar, o discurso, as instituições e os instrumentos burocráticos do Estado trabalhavam no sentido de adequar o comportamento da classe operária, em todas as suas esferas, aos princípios republicanos do Estado de Direito, funcionando também como uma força disciplinadora desses grandes contingentes.

Ao estabelecer uma ligação direta entre o trabalho e o progresso no imaginário da população, o consumo era apresentado como materialização do saldo positivo dessa relação. A grandiosidade da cidade se apresentava como comprovação da efetividade do processo em curso. Em 1954, o lema oficial do Quarto Centenário da cidade resumia de forma inequívoca o conteúdo ideológico veiculado pelas elites paulistanas: São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo!

Mas, se os discursos oficiais se esforçavam por alardear o progresso como utopia realizável através do esforço, do trabalho e, em última instância, como resultante do mérito individual, as manifestações populares abriam espaço para discursos dissonantes em relação às narrativas hegemônicas. Embora essa representação das perspectivas subalternas ocorresse (no caso das canções populares) pela veiculação dos registros fonográficos e radiofônicos, conformando-se, portanto, como mercadorias destinadas a conquistar a popularidade entre o público anônimo que sustentava economicamente o sistema, muitas vezes essas composições funcionavam, na prática, como espaços nos quais um discurso mais polifônico a respeito da cidade e do imaginário constituído em torno do progresso e do trabalho poderia encontrar espaços de circulação.

Segundo o historiador José Geraldo Vinci de Moraes, do ponto de vista da narratividade, Adoniran Barbosa se insere em uma constelação de práticas discursivas que podem ser interpretadas como “um exercício de continuidade transformada; de uma tradição iniciada nos anos 20/30 que se consolidou na cultura popular paulistana, tornando-se parte indissociável e característica desta” (MORAES, 2000, p. 194). Entre muitos artistas populares, as narrativas versavam acerca do cotidiano, dos valores e dos hábitos da população urbana que ocupava a periferia da sociedade paulistana. Nos relatos das composições de Adoniran Barbosa, a imagem que emerge da cidade é mais rica e complexa, sendo capaz de contemplar experiências dissonantes quando comparadas às representações dos discursos laudatórios alinhados às instâncias hegemônicas. De forma recorrente, a cidade foi retratada como um lugar no qual as perdas contínuas, materiais e imateriais, provenientes do ritmo frenético das mudanças, impactam de forma dolorosa os seus habitantes, principalmente entre as parcelas mais carentes da população. Em virtude disso, do conjunto de sua obra emergem histórias que expressam um posicionamento ambivalente em relação ao progresso.

Essa ambivalência está no cerne de Viaduto Santa Efigênia. Símbolo do primeiro grande impulso do progresso na cidade e de sua inexorável e voraz dinâmica de dissolução das formações urbanas estáveis, o viaduto é ameaçado pela própria força que celebra. Distante de qualquer perspectiva efusiva em relação a essa força, o olhar dirigido à obra viária fala de um afeto desenvolvido na experiência cotidiana que se alimenta de uma reciprocidade desejada, a da inscrição da pessoa na cidade e da cidade na pessoa, uma das pequenas utopias projetadas pelo progresso. Em relação a isso, é interessante notar dois aspectos dessa canção tardia. Adoniran já não carrega na tinta da caracterização da origem social precária da personagem; na economia dos elementos poéticos, o olhar de baixo é caracterizado pelo mínimo necessário (a vinculação afetiva com o espaço, somada à ausência de referenciais materiais de propriedades, e a fuga para o interior, além do “falar errado” do narrador). Com isso, diminui ao mínimo a dramaticidade da narração da vida dura e aumenta ao máximo a da exposição daquilo que esse olhar torna visível; não são as qualidades do olhar que saltam ao primeiro plano, mas o que ele revela. Voltaremos a esse ponto mais adiante. O segundo aspecto, que tampouco se anuncia no primeiro plano narrativo, é a vinculação da personagem ao centro da cidade, e não a algum bairro periférico entendido como consequência da expansão urbana desenfreada e da lógica da especulação imobiliária. Esse aspecto nos convida a considerar a dimensão ficcional das histórias narradas por Adoniran, cujo aparente realismo tem seduzido muitas das tentativas de interpretação de sua obra.

O PONTO DE VISTA FICCIONAL

A identificação e a representatividade que Adoniran Barbosa11 11 As referências sobre o percurso de vida de João Rubinato bem como as criações de Adoniran Barbosa, seu personagem mais célebre, foram consultadas fundamentalmente nas seguintes obras: CAMPOS Júnior, Celso de. Adoniran: uma biografia. São Paulo: Globo, 2004; MOURA, Flávio; NIGRI, André. Adoniran: se o senhor não tá lembrado. São Paulo: Boitempo, 200; MUGNAINI Jr., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013. desenvolveu em relação a São Paulo devem-se, em alguma medida, à eficácia de sua produção simbólica em captar e elaborar algo que vai além dos aspectos materiais das rápidas transformações urbanas da metrópole. A perspicácia intuitiva do sambista lhe permitiu trabalhar aspectos intangíveis do cotidiano da cidade. Vem daí a caracterização de suas composições como crônicas musicadas capazes de recriar, no plano da narrativa cancional, o ambiente da metrópole em pleno processo de crescimento acelerado. Dessa forma, o elemento urbano, expresso tanto como cenário das narrativas quanto espelhado nos costumes e nos hábitos dos personagens das canções, ocupou um lugar de destaque no universo criativo do sambista. Como resultado, Adoniran Barbosa acabou por ser reconhecido como um dos artistas populares mais representativos do que seria uma “paulistanidade” musical, tornando-se um personagem profundamente identificado com a cidade.

Entretanto, como já foi observado por alguns pesquisadores, consolidar uma imagem identificada com uma metrópole que tem como uma de suas principais características uma multiplicidade significativa de identidades e culturas é uma proeza que gera inúmeros questionamentos. No caso de um artista que ambientou suas criações em inúmeros territórios da cidade, como Adoniran Barbosa, essa característica gerou uma relação que, à primeira vista, apresenta uma certa contradição: de fato, o sambista não conviveu cotidianamente em muitos dos espaços periféricos de São Paulo que suas composições ajudaram a celebrizar, como os bairros Ermelino Matarazzo, Vila Esperança, Casa Verde e Jaçanã. Entretanto, em todos esses territórios, e em inúmeros outros espalhados pela imensa metrópole, a figura do sambista é pronta e afetuosamente reconhecida. Os jornalistas e pesquisadores Flavio Moura e André Nigri sustentam que essa relação distanciada com muitas das localidades paulistanas retratadas pelo sambista não implica, necessariamente, em um enraizamento superficial do artista em relação à cidade. Segundo os autores,

Um aspecto da identidade paulistana é justamente a pouca nitidez de seu rosto. Mas não por falta, e sim por excesso de traços. As diferentes tradições culturais que participaram da construção da metrópole, estrangeiras na virada do século XIX para o XX, de vários estados do país à medida que o crescimento se adensa, fizeram da mistura a nota dominante. (MOURA; NIGRI, 2003, p. 105).

Acreditamos, entretanto, que a relação do sambista com a cidade pode ser melhor interpretada se levarmos em consideração uma segunda linha de análise de sua relação com o território urbano. Se a convivência cotidiana de Adoniran Barbosa em todos os bairros e espaços da cidade retratados era até mesmo uma impossibilidade prática, dado a variedade de lugares e a extensão territorial exagerada da cidade12 12 Pesquisadores de diferentes áreas como a Geografia, a História e o Urbanismo se debruçaram sobre a relação desequilibrada entre a densidade demográfica e a extensão territorial da cidade de São Paulo, bem como suas consequências. Sobre o assunto, consultar: Santos (2009); Oliva; Fonseca (2016); Sevcenko (2004); Silva (2010). , tanto o percurso de sua vida pessoal quanto o de sua vida profissional foram profundamente influenciados pela urbanidade do centro, notadamente entre os anos 1940 e 1950, período no qual a região conheceu o ápice de sua potencialidade urbana. Essa convivência diária, que se iniciou na década de 1930 (Adoniran Barbosa transferiu-se definitivamente para São Paulo em 1932, habitando um quarto de pensão na Ladeira Porto Geral), manteve-se até mesmo quando ele e sua companheira - Matilde de Lutiis - foram morar na residência própria do casal, adquirida no bairro de Cidade Ademar, em 1965. Mesmo vivendo a uma distância considerável do centro, o sambista continuou se deslocando religiosamente para essa região. O hábito se manteve após a sua aposentadoria, quando sua saúde já dava os primeiros sinais de fragilidade. De fato, o cotidiano do centro e suas transformações foram experienciados com intimidade e paixão por Adoniran Barbosa, inspirando suas criações não apenas como cenário, mas principalmente como fonte de sociabilidade estabelecida na rotina de seus milhares de habitantes anônimos13 13 Diferentemente da relação mais distante estabelecida com inúmeros bairros periféricos, a boemia do centro da metrópole marcou indelevelmente não apenas a produção artística de Adoniran Barbosa, mas a própria trajetória de vida de João Rubinato. Entretanto, essa marca tem significação diversa em cada caso: em poucas palavras, vida e obra são afetadas de maneira bem diversa pelos dados de realidade. . Dessa forma, o conjunto da obra do sambista pode ser entendido como uma reunião de crônicas que reverberam, no plano ficcional, certos aspectos materiais e imateriais do cotidiano das periferias e da região central da cidade.

As experiências imaginadas da periferia em formação e a vivência concreta do centro em degradação convergem para o mesmo centro gravitacional em torno do qual se estruturam as elaborações ficcionais de Adoniran, enfeixadas por um constante movimento de retorno a uma ausência. Mas esse movimento só se torna apreensível na medida em que se atravessa a miríade de experiências ficcionais particulares, cuja aparência de realidade faz com que as interpretações frequentemente tropecem com pedestres que atravessam na contramão ou trabalhadores que almoçam torresmo à milanesa. A passagem da vida para a arte oculta-se na aparente simplicidade dos artifícios composicionais, e volta sempre a colocar a embaraçosa questão sobre a intimidade do compositor com as figuras e as situações narradas. Desse ponto de vista, o Jaçanã de Adoniran é tão real quanto seu torresmo. Na medida em que a aparência de realidade ofusca a dimensão ficcional de suas elaborações poético-musicais, perde-se de vista aquele centro gravitacional, para o qual convergem as mais diversas narrativas por ele criadas. Aqui, o ponto de vista joga um papel decisivo. Pois o poder de persuasão da dimensão realista está intimamente relacionado com a empatia criada com as personagens que vivenciam a cidade. Essas personagens frequentemente assistem à emergência da perda e da ausência. Assim, na dimensão realista das histórias contadas em seus sambas, essa atitude contemplativa se relaciona com a disposição à resignação14 14 (SILVA, 2012). , traço que acompanha a caracterização das figuras desfavorecidas que sofrem algum tipo de injustiça. Entretanto, na dimensão alegórica dessas histórias, a insistência no ver é uma maneira de tornar visível a própria perda, que instala a ausência. No que se refere à cidade, o ponto de vista privilegiado para trazer à tona essa figura é o das pessoas que se tornam despossuídas. Mas a perda também se faz presente numa dimensão que não é imediatamente visível.

O PALHAÇO TRISTE

Entendida como amálgama entre performance vocal e um linguajar elaborado a partir das variantes da norma culta inspiradas na oralidade, a vocalidade cristalizada por Adoniran não surge do nada. Seu “saber falar errado” comunica-se historicamente com a produção literária de figuras representativas de uma subliteratura periodista alavancada ao longo da década de 1910. Dentre essas figuras, destacam-se dois autores cuja dialetização do português, feita a partir da oralidade manifestada por diferentes grupos sociais que povoavam as ruas da capital paulista, mostrou-se eficiente no sentido de tornar suas produções amplamente conhecidas na São Paulo da Belle Époque: Cornélio Pires, com seu dialeto caipira, e Juó Bananére, principal realizador de um dialeto ítalo-paulista. Ambos prezavam por uma escrita direta, sem rebuscamentos e erudições literárias. Pujante entre as décadas de 1910 e 1930, a produção multifacetada desses escritores encontra sua última morada nos discos, veículo de formatação de uma canção popular urbana na qual se consagrará Adoniran Barbosa. Essa conexão não se dá apenas do ponto de vista do desenvolvimento histórico da cultura de massas na cidade, que consagra a eficácia de determinadas fórmulas comunicativas. Ela se estabelece a partir de uma relação bem-sucedida entre a cidade, a fala e o humor que foi capaz de tematizar a experiência de uma cidade em intenso processo de transformação. “O recurso ao humor verbal macarrônico”, afirma Saliba, espelhava de maneira difusa “a própria imagem errática, irregular e caótica da urbanização paulista na década inicial do século” (SALIBA, 2002SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 179). Articulando imagens pela caricaturização dos tipos sociais, essa produção dialetal compensava, de alguma maneira, “a inexistência de quaisquer traços de identidade ou afinidade social entre negros, egressos da escravidão, índios, caipiras e imigrantes italianos, enfim, entre aquela multidão de desenraizados da Belle Époque paulista” (SALIBA, 2002SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 175).

Alinhavando historicamente a produção paulista, o humor é o elemento que explicita também a singularidade e a eficácia da fala de Adoniran. Nela, o humor não se projeta da caricatura feita de fora, seja no tom depreciativo que recobria a representação do caipira nos diferentes gêneros cênicos em circulação desde finais do século XIX, seja no tom regionalista dos textos de Cornélio Pires15 15 Consultar a tese de doutorado de Virgínia Bessa (2012) sobre o teatro musicado na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX. , seja no rebaixamento da figura do imigrante italiano em Juó Bananére visando a crítica e a sátira políticas16 16 Sobre Juó Bananére, consultar os trabalhos de Sylvia Helena de Almeida Leite (1996) e Elias Saliba (2002). . Na fala do sambista, o humor se associa à condição rebaixada, marcada pela falta, pela perda ou pela ausência, no riso de si mesmo. Neste ponto explicita-se também a importante matriz “exógena” do samba paulista de Adoniran, o samba carioca, especialmente o de Noel Rosa, que propaga o riso irônico nascido da experiência de uma modernização deficitária. Mas, no universo ficcional de Adoniran, a associação entre humor e perda se nutre do viver em São Paulo. Isso será demonstrado a partir do exame de como a dinâmica da relação entre esses dois polos marca historicamente a figura e a obra do sambista paulistano.

Comecemos com a figura. A imagem cristalizada de Adoniran Barbosa é a do palhaço triste17 17 Conferir o depoimento de Elifas Andreato sobre a capa do LP comemorativo dos 70 anos de Adoniran Barbosa, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XtxP6PjG-lU. . Esse personagem foi construído historicamente em dois momentos diferentes. Concomitantemente as suas tentativas de se projetar como compositor e intérprete, João Rubinato transitou em diferentes papéis pelos meios da cultura de massas paulista em formação, sobretudo no ambiente radiofônico. Já em 1935 criara o pseudônimo que o acompanharia para o resto da vida: Adoniran Barbosa. Diante das dificuldades encontradas para inserir-se no ambiente musical que se estruturava em torno da radiofonia e da fonografia a partir do início da década de 193018 18 Em 1932, uma nova legislação federal (D.L. 21.111) autorizou a inclusão de propagandas comerciais ao longo da programação das rádios. Essa mudança transformou a radiodifusão em um negócio atrativo, levando as emissoras a reformular suas programações (e até mesmo sua linguagem) para atrair a audiência e, assim, disputar as verbas publicitárias. , ele ancorou sua carreira trabalhando como rádio ator em produções de forte viés humorístico. Esse percurso está diretamente relacionado à parceria estabelecida com o jornalista, redator e diretor de programas radiofônicos Osvaldo Moles, que reconheceu e explorou o potencial cômico do artista. Entre 1941 e 1951, a frutífera parceria resultou na criação de inúmeros personagens e quadros de humor veiculados na programação da Rádio Record. Ao longo dessa convivência, a oralidade e a comicidade inspiradas no cotidiano urbano de São Paulo tornaram-se marcas características do trabalho criativo da dupla. O hiato que se estabeleceu nesse trabalho entre 1951 e 1955, período em que Osvaldo Moles se transferiu para a Rádio Bandeirantes, levou Adoniran Barbosa a retomar, de forma mais sistemática, sua atividade de compositor de canções, e a tentar uma nova investida (outra vez malsucedida) para se consagrar como intérprete.

Não por acaso, nas canções que foram surgindo a partir da década de 1950, a oralidade, a comicidade e a crônica urbana ganharam espaço. A partir de então, essas novas criações, já marcadas por uma comicidade própria, atingiram um patamar inédito de sucesso. Um fator determinante para esse sucesso foram as interpretações do grupo vocal Demônios da Garoa, principalmente as que foram registradas no compacto de 1955 contendo duas canções que se consagraram no centro de produção e consumo de sambas, o Rio de Janeiro: “Samba do Arnesto” e “Saudosa Maloca”. Contudo, cabe salientar que, se o tom humorístico de “Samba do Arnesto” era algo objetivamente buscado pelo sambista, a interpretação imaginada para “Saudosa Maloca” procurava uma ambientação dramática que contrastava com a versão que fez sucesso na interpretação dos Demônios da Garoa19 19 A gravação original de “Saudosa Maloca” é de 1951. A canção, que foi creditada como “Saudade da Maloca” por um erro na impressão no selo, compunha o lado B do 78 RPM 16468, da gravadora Continental. Em 1974, por ocasião da gravação de seu primeiro LP como intérprete (BARBOSA, 1974), ela foi regravada pelo sambista. Mesmo nesta segunda versão, muitos anos depois do sucesso e da consolidação de sua identidade musical marcadamente humorística, a versão de “Saudosa Maloca” manteve a ambientação mais contida e dramática. Nesse sentido, a escuta comparada das gravações do compositor contraposta à interpretação mais cômica do grupo Demônios da Garoa é um exercício que pode apontar para o caráter pretendido por Adoniran Barbosa para a composição. . Se a exacerbação da comicidade promovida por essa agrupação não condizia com as intenções do compositor, o enorme sucesso acabou por dar início a uma sucessão de gravações que consolidaram esse viés humorístico mais pronunciado nos trabalhos que se seguiram. Essa colaboração foi fundamental para a consolidação progressiva de Adoniran Barbosa para além do mercado paulistano, e, assim, acabou associando sua figura a uma comicidade que nem sempre correspondia às suas intenções.

A dimensão triste se combinou com o elemento cômico a partir de meados dos anos 1960, quando, por um lado, se acentuaram as transformações urbanas da cidade de São Paulo, e, por outro, o mercado de música popular sofreu uma importante reorganização que deslocou as formas de produção e consumo anteriores. As mudanças no circuito da canção comercial, já então em um estágio mais avançado de consolidação de suas estruturas profissionais e empresariais, levaram a uma diminuição dos espaços de veiculação de repertórios com feições tradicionais, como o samba praticado por Adoniran. A classe média urbana, já então demograficamente mais ampla, passou a identificar-se a si mesma no consumo da Bossa Nova, enquanto o rock and roll e sua versão nacional, a Jovem Guarda, colaboravam para o acirramento da disputa pelo espaço na mídia radiofônica, sobretudo entre as classes populares. A partir da segunda metade da década de 1960, o próprio rádio perderia espaço para a televisão, atraindo para si a maior parte dos investimentos.

Ironicamente, foi nesse cenário que, em 1965, novamente por intermédio da gravação dos Demônios da Garoa, o sucesso da canção “Trem das Onze”, composta um ano antes, levaria Adoniran a se estabelecer definitivamente como um compositor de alcance nacional20 20 “Trem das Onze” chegou a ser premiada como campeã do carnaval do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Um feito e tanto, principalmente quando levamos em consideração que se tratava de um samba composto por um paulista de raízes caipiras e italianas, cuja narrativa era ambientada no Jaçanã, então um desconhecido bairro na periferia norte de São Paulo. . Contudo, esse reconhecimento não foi suficiente para reverter o quadro de retração profissional que ele enfrentava. Pois o “resgate” do samba tradicional, impulsionado pela segmentação de mercado e por certa intelligentsia da música popular afeita aos valores representados nessa música, recolocou em evidência compositores e obras, mas num tempo estranho à dinâmica sociocultural que lhes deram origem21 21 (FERNANDES, 2010). . O suicídio do parceiro Osvaldo Moles, em 1967, agravou a situação. Sem o apoio do amigo, o velho sambista amargou um período de ostracismo dentro do próprio grupo midiático em que a parceria se desenvolvera com sucesso ao longo de vários anos, a Rede Record, onde finalmente se aposentou em 18 de dezembro de 1972. Desse período constam também diversos registros audiovisuais do compositor, dentre os quais destacam-se aqueles nos quais ele afirma seu traço triste. No final dessa década, Elis Regina, emblemática parceira desse momento de “redescoberta” de Adoniran, reforçava a camada triste que se sobrepunha às feições cômicas do palhaço. Em entrevista concedida ao programa de televisão Vox Populi da TV Cultura, em 1978, ela afirmou: “Eu acho que há um equívoco em relação à Adoniran, sabe? As pessoas confundem a obra do compositor Adoniran Barbosa com o tipo, com o personagem que ele fez a vida inteira. Adoniran não é uma pessoa para se estar rindo dele, você sorri. É um camarada muito sério pra gente tá fazendo quais, quais, quais a toda hora, sabe?”22 22 A entrevista está disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=RXN4QV4RFTs. Acesso em: 3 jan. 2022. .

Essa polaridade entre humor e tristeza que, ao longo do tempo, configurou Adoniran Barbosa, alude diretamente a Chaplin. Essa alusão reforça e desdobra a profícua e constante atividade de ficcionalização de si mesmo que marca a trajetória de João Rubinato. Tal identificação com o artista britânico não se esgota na articulação daquela polaridade, mas se estende à própria confusão entre criação e criador, Chaplin e Carlitos, Rubinato e Adoniran. Entretanto, se a inspiração dessa conformação tardia da personagem Adoniran é chapliniana, o sentido da produção simbólica a ela vinculada é bem diferente: em Chaplin, a centralidade é da ação, enquanto em Adoniran todo o esforço se concentra em tornar visível a perda que instala a ausência.

A associação entre perda e humor pode, então, ser elaborada do ponto de vista teórico a partir da obra. Os personagens por ele criados também estão sempre às voltas com a falta, a perda e a ausência. Em muitos casos, estas são vividas por eles como luto. Trata-se de um movimento necessário de desinvestimento libidinal num objeto que, em princípio, não tem no humor um de seus momentos constitutivos. Como é possível, então, que a eficácia da obra em questão resida justamente numa articulação bem-sucedida entre humor e perda? Neste ponto se coloca a inevitável questão sobre a natureza dessa associação. Ela nasce de circunstâncias externas, de determinações heterogêneas, que os aproximam ao centro de gravidade de uma cultura de massas em expansão? Ou constitui o núcleo de um processo de configuração criativa da canção? Para respondemos afirmativamente à segunda questão, devemos necessariamente diferenciar o conteúdo narrativo que vincula suas personagens à perda, e as faz vivê-la como luto, da experiência da perda que constitui a verdadeira substância da elaboração poética nas obras de Adoniran.

Assim como o luto, a melancolia também é desencadeada pela perda; é a perda que dispara os processos psíquicos que cada termo sintetiza. Mas as dinâmicas desses processos se diferenciam num ponto decisivo, que explicita a natureza díspar de cada um. No primeiro caso, como já foi dito, trata-se do movimento necessário de desinvestimento libidinal de um objeto. O segundo caso delimita uma patologia própria de uma formação psíquica que se situa no limite entre a neurose e a psicose. A teoria freudiana nos diz que esse estado patológico se instala num eu que não completou seu processo de separação com o mundo; consequentemente, a perda do objeto é transferida para o próprio eu pela identificação narcísica estabelecida entre ele e o objeto perdido. Daí a autodepreciação que caracteriza determinada fase do processo melancólico, pois o eu se confunde com o objeto e, nessa bipartição de si, a recriminação dirigida ao objeto que abandonou o eu se torna recriminação de si mesmo23 23 Segundo Freud, o luto revela os mesmos traços da melancolia (desânimo profundamente doloroso, suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade), “exceto um: falta nele a perturbação do sentimento de autoestima” (FREUD, 2011, p. 47). Tal perturbação é produzida pela identificação narcísica do eu com o objeto perdido: “Houve uma escolha de objeto, uma ligação da libido a uma pessoa determinada; graças à influência de uma ofensa real ou decepção por parte da pessoa amada, essa relação de objeto ficou abalada. [...]. O investimento de objeto provou ser pouco resistente, foi suspenso, mas a libido livre não se deslocou para um outro objeto, e sim se retirou para o ego. Lá, contudo, ela não encontrou um uso qualquer, mas serviu para produzir uma identificação do ego com o objeto abandonado. Desse modo, a sombra do objeto caiu sobre o ego, que então pôde ser julgado por uma determinada instância como um objeto, como o objeto abandonado. Assim, a perda do objeto se transformou em perda do ego e o conflito ente o ego e a pessoa amada em uma bipartição entre a crítica do ego e o ego modificado pela identificação” (FREUD, 2011, p. 61). . Toda essa dinâmica se desenrola fundamentalmente no inconsciente, de modo que a pessoa melancólica, à diferença daquela que vive o luto, nunca alcança plena consciência daquilo que foi perdido. Por esse motivo, à diferença do luto, a ameaça da perda já é suficiente para desencadear o estado melancólico.

Qualquer psicopatologia só se exterioriza em formações socialmente relevantes na medida em que se traduz em configurações simbólicas objetivas. Sendo assim, trata-se de entender como a dinâmica que caracteriza a melancolia, não como psicopatologia individual, mas como configuração estética objetiva, pode estar relacionada com a eficácia das representações simbólicas criadas por Adoniran24 24 Não propomos aqui fazer uma transposição direta da vida à obra a partir de uma psicologização simplificadora. Nesse sentido, chamamos atenção para a sobreposição de representações que se acumulam na construção dessa figura: Adoniran Barbosa, que já é uma elaboração ficcional de João Rubinato, se via a si mesmo como um palhaço triste de inspiração chapliniana. Ao mesmo tempo, ressaltamos também que não há nenhuma vinculação necessária ou evidente entre as peculiaridades da vida psíquica de uma pessoa e o caráter de sua obra. . Isso significa pensar que essas representações foram capazes de tematizar e simbolizar um estado de indiferenciação entre o interno e o externo, entre o eu e uma cidade que, ao transformar-se de maneira tão intensa e incessante, apenas pode ser vivida como perda de si por alguém que com ela se identifica e se confunde. Nessa condição, o amor dispensado a uma cidade que só oferece a perda como contrapartida retorna como riso rebaixador de si. Daí também a falta de um Outro consistente que aglutine a queixa pela perda, falta recorrente na obra de Adoniran que, do ponto de vista narrativo, como já foi dito, se traduz frequentemente em resignação. É somente sob o ponto de vista da natureza e da dinâmica do processo melancólico que esse riso de si deixa de ser uma característica externa da obra, uma roupagem performática herdada no trânsito pelos meios da cultura de massas paulista, para manifestar-se como sintoma daquilo que constitui a matéria não aparente da obra do sambista. Essa matéria ganha expressão em sua própria qualidade inaparente em “Viaduto Santa Efigênia”, pois é a ameaça da perda, nunca consumada, que dispara o estado lamentoso. Isso se reflete na própria ausência de sentido de uma tristeza que nasce de um luto que não se consome, ausência que se traduz, poeticamente, no hiato existente entre “o que os olhos não vê” e o “venha ver”: manifesta-se aí, como um “ato falho” que insere um descompasso na linearidade causal da narrativa, a perda cuja qualidade distintiva é a falta da dimensão consciente do objeto perdido; em outras palavras, uma perda sem objeto. Minimizado o riso de si como sintoma, essa perda essencial assume o primeiro plano da elaboração cancional, reunindo em si todas as perdas concretas e pontuais vividas pelos diversos personagens que povoam a obra de Adoniran. Não por acaso, a rima constitutiva da canção se estabelece na identificação indiferenciadora entre o eu de Eugênia e o nome do viaduto, Efigênia25 25 Vale lembrar que a lendária Santa Efigênia teve sua casa ameaçada de destruição por Hitarco. Na narrativa bíblica, a ameaça não se consumou graças à intervenção de Deus, que redirecionou as chamas para o palácio do tirano. : a ausência deste implica a da própria figura que o personifica. Pois é a partida que, nessa canção, substitui a elaboração da perda necessária ao esquecimento na vivência do luto, tal como fazem os despejados de Saudosa Maloca ao cantar a nostalgia. Os personagens de Adoniran estão de luto, mas a substância poeticamente elaborada em sua obra é a dimensão melancólica constitutiva da experiência do viver em São Paulo. Quanto mais próximo se está dela, maior é o risco. Pois, para qualquer experiência verdadeira, o concreto que a reveste é mera abstração. Para essa experiência, a matéria que de fato a constitui é o esquecimento. A cidade exige uma distância segura.

O ESQUECIMENTO

O processo reflexivo que sustenta a elaboração poético-musical nas composições de Adoniran se ampara em seu momento convencional. A forma canção, praticada como samba, é assumida na configuração “tradicional” de matriz carioca. Os recursos expressivos nela cristalizados também são amplamente explorados. Assim se explica, por exemplo, o desencontro entre a melodia e a harmonização empregada pelos instrumentistas que acompanharam Adoniran na gravação de “Viaduto Santa Efigênia” (Figura 6). Na reiteração cadencial que fecha o conjunto das três estrofes que compõe o corpo da canção, o si bemol da melodia é harmonizado com o acorde de G7, cuja ausência, implicada na melodia, é correspondida na letra.

Figura 6
Transcrição da quadratura conclusiva que antecede o refrão em “Viaduto Santa Efigênia”. Elaboração: Gabriel S. S. Lima Rezende.

A rima que se estabelece entre o adjetivo “ausente” e o verbo “sente” é tratada, na melodia, de maneira convencional, com retardos suspensivo (lá bemol - sol, 6-5) e conclusivo (ré - dó, 2-1), respectivamente. Entretanto, enquanto o lirismo associado a tal procedimento é correspondido, no início dessa seção cadencial, pela figuração melódica - e reforçado pelo salto de quinta dó-sol (“não vê”) -, o movimento resolutivo V7 - Im é acompanhado pelo esvaziamento de todo lirismo melódico produzido pela repetição da nota ré, de modo que o convencional retardo final perde expressividade: “o coração não sente”. Se nos primeiros quatro compassos dessa quadratura conclusiva a ausência da dominante dá lugar ao lirismo, este é negado justamente quando o acorde correspondente àquela função (G7) aparece. Também neste ponto a convencionalidade do material seduz a interpretação, que, sintomaticamente, procura ocupar as lacunas deixadas no material: a ausência da dominante nos primeiros quatro compassos é preenchida pelos instrumentistas, e a ausência de lirismo nos compassos conclusivos é compensada pela “segunda voz” de Carlinhos Vergueiro26 26 Ao analisar a mesma canção da qual nos ocupamos neste ensaio, Adamowski (2013) vê a ausência sendo elaborada na instrumentação. Em sua interpretação, que segue um caminho bem diferente do nosso, “a falta do acompanhamento do violão gera uma lacuna no preenchimento do ‘tecido musical’, isto é, na textura resultante da combinação dos instrumentos utilizados na gravação desta canção. O violão aparece na gravação prestando-se ao papel de realizar o baixo como um violão de 7 cordas faz no choro. [...] tem-se a impressão de incompletude no ‘pano de fundo’ sonoro da canção em função da ausência do violão na sustentação harmônica” (ADAMOWSKI, 2013, p. 77). Mais adiante, completa a ideia afirmando que “o surdo fúnebre, o cavaquinho ‘antigo’, a flauta que está sempre deslocada para um plano paralelo, o violão quase ausente, a voz rouca, tudo dá à [sic] Viaduto Santa Efigênia, o caráter saudoso, de um tempo perdido, que quase prenuncia a morte de Adoniran Barbosa quatro anos apenas depois de sua composição, e que marca, pela integração de cada elemento, o caráter de beleza evidente desta canção”. (ADAMOWSKI, 2013, p. 79). .

É também uma ausência que liga essa quadratura conclusiva com o retorno da seção inicial, caracterizada, na medida em que é repetida, como refrão. Pois a ausência elaborada no corpo da canção em torno da ameaça de demolição do viaduto não se conecta com o desfecho, e a negação do ver é repentinamente contrastada com o enfático chamado a ver. Contrariando a esperada alegria pela conservação e embelezamento do viaduto, o refrão é o momento de maior lirismo, abrangendo, em saltos sucessivos alternados com pequenos movimentos por graus conjuntos, a extensão de uma décima terceira (sol - mi bemol). Se o viaduto não foi demolido, por que a tristeza? É justamente no procedimento poético-musical que a ausência ganha forma, transformando a lacuna de sentido entre as seções no lugar de exposição de sua figura enquanto matéria pura, que se desprende das experiências particulares e se torna alegoria do viver em São Paulo: é a ausência, a perda, que se desprende do concreto da cidade para se transformar no núcleo sólido da experiência de quem nela habita.

Em “Viaduto Santa Efigênia”, a memória individual e o destino da cidade estão profundamente imbricados. A recusa do narrador em ver, seja a demolição ou a partida da pessoa querida, é também uma recusa do esquecer. Do ponto de vista antropológico, a produção simbólica humana nasce da luta contra o esquecimento. No pináculo de seu desenvolvimento técnico, científico e cultural, a humanidade continua vivendo sob as suas sombras, mas, desta vez, projetadas pelas forças que ela mesma criou. A obra de Adoniran Barbosa é um denso testemunho dessa luta. Como disse Antonio Candido na já citada contracapa, graças ao sambista essa cidade que desaparece “ficará misturada vivamente com a nova, mas como o quarto do poeta, também ‘intacta, boiando no ar’” (CANDIDO, apud BARBOSA, 1975BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. São Paulo: EMI-Odeon, SMOFB-3877, 1975.).

Epílogo

Se o viaduto não foi demolido, por que a tristeza? A pungente sensação de perda, matéria-prima das elaborações cancionais de Adoniran Barbosa, encontra em “Viaduto Santa Efigênia” sua expressão mais acabada. Não por acaso ela pertence à produção tardia do sambista. Porém, o tempo que determina o caráter dessa expressão não é o da cronologia biográfica abstrata convencional. Trata-se, antes, da condensação do traço que define a significação histórica dessa obra como tradução poético-musical exemplar do núcleo da experiência de viver em São Paulo; e isso nada tem a ver com o tempo do relógio. Antes, a condensação daquele traço dependeu do acúmulo das elaborações poéticas da miríade de experiências que se conformam em torno desse núcleo. Somente a constante e profunda elaboração da concretude dessas experiências possibilitou que elas pudessem ser transformadas em alegoria de um viver que a obra de Adoniran imortalizou.

João Rubinato nasceu no mesmo ano em que o viaduto Santa Efigênia começou a ser construído. Acendiam-se os motores do progresso. A esperança que ele exalava com os primeiros movimentos de sua marcha inexorável, como a fumaça da locomotiva em sua primeira viagem, encobria os rastros de sua passagem pela cidade. Entre estes estão “os vários registros policiais relativos a suicídio” ocorridos no recém-inaugurado viaduto, que motivaram a “representação endereçada à Câmara pela sociedade Espírita Santo Agostinho” propondo “a colocação de grossa rede de arame em toda a extensão e dos dois lados do viaduto” (OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 109). Muita gente, naquele momento, vestiu o luto.

Figura 7
“Demolição de casas, à esquerda, para construção do viaduto Santa Efigênia”. Fonte: Oliveira (2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 97).

  • 3
    Inaugurado em 26 de julho de 1913, sob a gestão do então prefeito barão Raimundo Duprat, o Viaduto Santa Efigênia foi concebido a partir da estética art nouveau, sendo composto de peças de ferro pré-ajustáveis com o peso total de uma tonelada produzidas e importadas da Bélgica. Para maiores detalhes sobre a obra, consultar Jorge (1999)JORGE, Athayde Clovis de. Santa Ifigênia. História dos bairros de São Paulo, 23. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1999..
  • 4
    “Viaduto Santa Efigênia” foi composta em 1978 em parceria com o amigo Alocin (pseudônimo de Nicola Caporrino, com quem já havia concebido, em 1952, o “Samba do Arnesto”). A canção foi gravada no LP Adoniran e convidados (BARBOSA, 1980BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa e Adoniran Barbosa e Convidados. São Paulo: EMI-Odeon, 31C064422868D, 1980.), com a participação de Carlinhos Vergueiro.
  • 5
    Originalmente batizada como “Primeiro Carnaval”, a marcha-rancho composta em parceria com Marcos César em 1968, foi rebatizada como “Vila Esperança” e foi inscrita como concorrente no IV Festival da Música Popular Brasileira, ocorrido no mesmo ano.
  • 6
    Em depoimento sobre Adoniran Barbosa, Zuza Homem de Melo estabelece outra vinculação convencional para explicar o predomínio do modo menor em Adoniran ao remetê-lo, evocando a ascendência familiar do compositor, às canções napolitanas. Independentemente da validade explicativa dessa vinculação, nosso argumento enfoca justamente o momento em que a elaboração poético-musical transcende o elemento convencional que pode estar em sua base. Para conferir o depoimento de Zuza, consultar https://www.youtube.com/watch?v=DlsjLWKMvyY. Acesso em: 3 jan. 2022.
  • 7
    O processo de industrialização e urbanização de cidades brasileiras tivera um primeiro impulso com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que desorganizou a economia das principais nações industriais europeias. A demanda de consumo existente na economia brasileira, potencializada pelo período de expansão econômica propiciada pelos ganhos da cafeicultura, ensejou um ciclo incipiente de produção substitutiva de alguns produtos industrializados, embora a ausência de uma indústria de base limitasse o alcance e a complexidade do processo.
  • 8
    O termo “civilização do café” foi utilizado por Alves Motta Sobrinho (1978)MOTTA SOBRINHO, Alves. A civilização do café (1820-1920). São Paulo: Brasiliense, 1978. para descrever a importância e a centralidade que a cultura cafeeira assumiu para a sociedade brasileira no período compreendido entre as décadas iniciais do século XIX e as primeiras décadas do XX.
  • 9
    O viaduto foi reformado em 1950 e, assim, novamente liberado para o tráfego. (OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    , p. 111-112).
  • 10
    O texto de Antonio Candido aqui citado foi editado na contracapa do segundo LP gravado por Adoniran Barbosa, intitulado Adoniran Barbosa (BARBOSA, 1975BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. São Paulo: EMI-Odeon, SMOFB-3877, 1975.). O texto fora encomendado ao intelectual por iniciativa do produtor musical do disco, Pelão, como uma forma de protesto pela censura de duas canções do primeiro LP de Adoniran Barbosa, gravado e lançado no ano anterior: “Samba do Arnesto” e “Um Samba no Bixiga”. Um dos motivos alegados pelos censores era a inadequação do linguajar utilizado pelo sambista, que desvirtuava o correto uso da língua.
  • 11
    As referências sobre o percurso de vida de João Rubinato bem como as criações de Adoniran Barbosa, seu personagem mais célebre, foram consultadas fundamentalmente nas seguintes obras: CAMPOS Júnior, Celso de. Adoniran: uma biografia. São Paulo: Globo, 2004CAMPOS Júnior, Celso de. Adoniran: uma biografia. São Paulo: Globo, 2004.; MOURA, Flávio; NIGRI, André. Adoniran: se o senhor não tá lembrado. São Paulo: Boitempo, 200; MUGNAINI Jr., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013MUGNAINI Jr., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013..
  • 12
    Pesquisadores de diferentes áreas como a Geografia, a História e o Urbanismo se debruçaram sobre a relação desequilibrada entre a densidade demográfica e a extensão territorial da cidade de São Paulo, bem como suas consequências. Sobre o assunto, consultar: Santos (2009)SANTOS, Milton. Metrópole Corporativa Fragmentada. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2009.; Oliva; Fonseca (2016)OLIVA, Jaime Tadeu; FONSECA, Fernanda Padovesi. O “modelo São Paulo”: uma descompactação antiurbanidade na gênese da metrópole. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 65, p. 20-56, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i65p20-56. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
    ; Sevcenko (2004)SEVCENKO, Nicolau. A cidade matástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. Revista USP, n. 63, p. 16-35, set./nov. 2004. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i63p16-35. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
    ; Silva (2010)SILVA, Marcos Virgílio da. São Paulo 1946-1957: Representações da cidade na música popular. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2010..
  • 13
    Diferentemente da relação mais distante estabelecida com inúmeros bairros periféricos, a boemia do centro da metrópole marcou indelevelmente não apenas a produção artística de Adoniran Barbosa, mas a própria trajetória de vida de João Rubinato. Entretanto, essa marca tem significação diversa em cada caso: em poucas palavras, vida e obra são afetadas de maneira bem diversa pelos dados de realidade.
  • 14
    (SILVA, 2012SILVA, Marcus Vinícius da. Adoniran Barbosa: nem trabalho, nem malandragem. 216 f. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2012.).
  • 15
    Consultar a tese de doutorado de Virgínia Bessa (2012)BESSA, Virginia de Almeida. A cena musical paulistana: teatro musicado e canção popular na cidade de São Paulo (1914-1934). 358 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07122012-104254/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
    sobre o teatro musicado na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX.
  • 16
    Sobre Juó Bananére, consultar os trabalhos de Sylvia Helena de Almeida Leite (1996)ALMEIDA LEITE, Sylvia Helena Telarolli de. Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas: a caricatura na literatura paulista, 1900-1920. São Paulo: Editora Unesp, 1996. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/up000008.pdf. Acesso em: 3 jan. 2022.
    http://www.dominiopublico.gov.br/downloa...
    e Elias Saliba (2002)SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002..
  • 17
    Conferir o depoimento de Elifas Andreato sobre a capa do LP comemorativo dos 70 anos de Adoniran Barbosa, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XtxP6PjG-lU.
  • 18
    Em 1932, uma nova legislação federal (D.L. 21.111) autorizou a inclusão de propagandas comerciais ao longo da programação das rádios. Essa mudança transformou a radiodifusão em um negócio atrativo, levando as emissoras a reformular suas programações (e até mesmo sua linguagem) para atrair a audiência e, assim, disputar as verbas publicitárias.
  • 19
    A gravação original de “Saudosa Maloca” é de 1951. A canção, que foi creditada como “Saudade da Maloca” por um erro na impressão no selo, compunha o lado B do 78 RPM 16468, da gravadora Continental. Em 1974, por ocasião da gravação de seu primeiro LP como intérprete (BARBOSA, 1974BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa. São Paulo: EMI-ODEON, SMOFB 3839, 1974.), ela foi regravada pelo sambista. Mesmo nesta segunda versão, muitos anos depois do sucesso e da consolidação de sua identidade musical marcadamente humorística, a versão de “Saudosa Maloca” manteve a ambientação mais contida e dramática. Nesse sentido, a escuta comparada das gravações do compositor contraposta à interpretação mais cômica do grupo Demônios da Garoa é um exercício que pode apontar para o caráter pretendido por Adoniran Barbosa para a composição.
  • 20
    “Trem das Onze” chegou a ser premiada como campeã do carnaval do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Um feito e tanto, principalmente quando levamos em consideração que se tratava de um samba composto por um paulista de raízes caipiras e italianas, cuja narrativa era ambientada no Jaçanã, então um desconhecido bairro na periferia norte de São Paulo.
  • 21
    (FERNANDES, 2010FERNANDES, Dmitri Cerboncini. A Inteligência da Música Popular: a ‘autenticidade’ no samba e no choro. 414 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-15092010-171819/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    ).
  • 22
    A entrevista está disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=RXN4QV4RFTs. Acesso em: 3 jan. 2022.
  • 23
    Segundo Freud, o luto revela os mesmos traços da melancolia (desânimo profundamente doloroso, suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade), “exceto um: falta nele a perturbação do sentimento de autoestima” (FREUD, 2011FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011., p. 47). Tal perturbação é produzida pela identificação narcísica do eu com o objeto perdido: “Houve uma escolha de objeto, uma ligação da libido a uma pessoa determinada; graças à influência de uma ofensa real ou decepção por parte da pessoa amada, essa relação de objeto ficou abalada. [...]. O investimento de objeto provou ser pouco resistente, foi suspenso, mas a libido livre não se deslocou para um outro objeto, e sim se retirou para o ego. Lá, contudo, ela não encontrou um uso qualquer, mas serviu para produzir uma identificação do ego com o objeto abandonado. Desse modo, a sombra do objeto caiu sobre o ego, que então pôde ser julgado por uma determinada instância como um objeto, como o objeto abandonado. Assim, a perda do objeto se transformou em perda do ego e o conflito ente o ego e a pessoa amada em uma bipartição entre a crítica do ego e o ego modificado pela identificação” (FREUD, 2011FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011., p. 61).
  • 24
    Não propomos aqui fazer uma transposição direta da vida à obra a partir de uma psicologização simplificadora. Nesse sentido, chamamos atenção para a sobreposição de representações que se acumulam na construção dessa figura: Adoniran Barbosa, que já é uma elaboração ficcional de João Rubinato, se via a si mesmo como um palhaço triste de inspiração chapliniana. Ao mesmo tempo, ressaltamos também que não há nenhuma vinculação necessária ou evidente entre as peculiaridades da vida psíquica de uma pessoa e o caráter de sua obra.
  • 25
    Vale lembrar que a lendária Santa Efigênia teve sua casa ameaçada de destruição por Hitarco. Na narrativa bíblica, a ameaça não se consumou graças à intervenção de Deus, que redirecionou as chamas para o palácio do tirano.
  • 26
    Ao analisar a mesma canção da qual nos ocupamos neste ensaio, Adamowski (2013)ADAMOWSKI, Fernanda. Adoniran Barbosa entre malocas edifícios: uma proposta de análise de Viaduto Santa Efigênia (1978). 119 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, 2013. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/58742. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://acervodigital.ufpr.br/handle/188...
    vê a ausência sendo elaborada na instrumentação. Em sua interpretação, que segue um caminho bem diferente do nosso, “a falta do acompanhamento do violão gera uma lacuna no preenchimento do ‘tecido musical’, isto é, na textura resultante da combinação dos instrumentos utilizados na gravação desta canção. O violão aparece na gravação prestando-se ao papel de realizar o baixo como um violão de 7 cordas faz no choro. [...] tem-se a impressão de incompletude no ‘pano de fundo’ sonoro da canção em função da ausência do violão na sustentação harmônica” (ADAMOWSKI, 2013ADAMOWSKI, Fernanda. Adoniran Barbosa entre malocas edifícios: uma proposta de análise de Viaduto Santa Efigênia (1978). 119 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, 2013. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/58742. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://acervodigital.ufpr.br/handle/188...
    , p. 77). Mais adiante, completa a ideia afirmando que “o surdo fúnebre, o cavaquinho ‘antigo’, a flauta que está sempre deslocada para um plano paralelo, o violão quase ausente, a voz rouca, tudo dá à [sic] Viaduto Santa Efigênia, o caráter saudoso, de um tempo perdido, que quase prenuncia a morte de Adoniran Barbosa quatro anos apenas depois de sua composição, e que marca, pela integração de cada elemento, o caráter de beleza evidente desta canção”. (ADAMOWSKI, 2013ADAMOWSKI, Fernanda. Adoniran Barbosa entre malocas edifícios: uma proposta de análise de Viaduto Santa Efigênia (1978). 119 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, 2013. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/58742. Acesso em: 3 jan. 2022.
    https://acervodigital.ufpr.br/handle/188...
    , p. 79).

REFERÊNCIAS

  • ADAMOWSKI, Fernanda. Adoniran Barbosa entre malocas edifícios: uma proposta de análise de Viaduto Santa Efigênia (1978). 119 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, 2013. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/58742. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/58742
  • ALMEIDA LEITE, Sylvia Helena Telarolli de. Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas: a caricatura na literatura paulista, 1900-1920. São Paulo: Editora Unesp, 1996. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/up000008.pdf. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/up000008.pdf
  • BESSA, Virginia de Almeida. A cena musical paulistana: teatro musicado e canção popular na cidade de São Paulo (1914-1934). 358 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07122012-104254/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07122012-104254/pt-br.php
  • CAMPOS Júnior, Celso de. Adoniran: uma biografia São Paulo: Globo, 2004.
  • FERNANDES, Dmitri Cerboncini. A Inteligência da Música Popular: a ‘autenticidade’ no samba e no choro. 414 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-15092010-171819/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-15092010-171819/pt-br.php
  • FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • JORGE, Athayde Clovis de. Santa Ifigênia. História dos bairros de São Paulo, 23. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1999.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • MOTTA SOBRINHO, Alves. A civilização do café (1820-1920) São Paulo: Brasiliense, 1978.
  • MOURA, Flávio; NIGRI, André. Adoniran: se o senhor não tá lembrado São Paulo: Boitempo, 2002.
  • MUGNAINI Jr., Ayrton. Adoniran: dá licença de contar. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
  • OLIVA, Jaime Tadeu; FONSECA, Fernanda Padovesi. O “modelo São Paulo”: uma descompactação antiurbanidade na gênese da metrópole. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 65, p. 20-56, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i65p20-56. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i65p20-56
  • OLIVEIRA, Rodrigo Bartholomeu Romano da Silva. Os três viadutos do Vale do Anhangabaú: aspectos históricos, construtivos e estruturais. 207 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia). Escola Politécnica, Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3144/tde-09082011-152807/pt-br.php
  • ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira Cultura Brasileira e Indústria Cultural. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
  • SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • SANTOS, Milton. Metrópole Corporativa Fragmentada 2. ed. São Paulo: Edusp, 2009.
  • SEVCENKO, Nicolau. A cidade matástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. Revista USP, n. 63, p. 16-35, set./nov. 2004. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i63p16-35. Acesso em: 3 jan. 2022.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i63p16-35
  • SILVA, Marcos Virgílio da. São Paulo 1946-1957: Representações da cidade na música popular. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2010.
  • SILVA, Marcus Vinícius da. Adoniran Barbosa: nem trabalho, nem malandragem. 216 f. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2012.

Discografia

  • BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa São Paulo: EMI-ODEON, SMOFB 3839, 1974.
  • BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa São Paulo: EMI-Odeon, SMOFB-3877, 1975.
  • BARBOSA, Adoniran; CARTOLA. A arte do encontro São Paulo: RGE, 334.6600-B, 1991.
  • BARBOSA, Adoniran. Adoniran Barbosa e Adoniran Barbosa e Convidados São Paulo: EMI-Odeon, 31C064422868D, 1980.
  • DEMÔNIOS da Garoa. Trem das Onze São Paulo: Chantecler internacional, CMG-2294-B, 1964.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2021
  • Aceito
    08 Mar 2022
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br