RESUMO
• A seção Criação tem por objetivo publicar textos e materiais inéditos de escritores e/ou artistas, fotógrafos, desenhistas, além de documentos inéditos encontrados no Arquivo do IEB-USP. “Hinário para corpos em desalinho/ I - Meninas” reúne quatro poemas de Mar Becker (Marceli Andresa Becker). Mar Becker é poeta, tem formação em Filosofia (Universidade de Passo Fundo - RS) e especialização em Metafísica e Epistemologia (Universidade Federal da Fronteira Sul - RS). Publicou A mulher submersa, seu primeiro livro (poesia), em maio de 2020, pela Editora Urutau - duas edições, uma no Brasil e outra em Portugal (BECKER, 2020BECKER, Mar. A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau, 2020.). Em 2021, A mulher submersa recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista do Prêmio Jabuti.
PALAVRAS-CHAVE
Mar Becker; poesia; literatura brasileira contemporânea
ABSTRACT
The Creation section has the objective of publish unpublished texts and materials by writers and/or artists, photographers, designers, as well as unpublished documents found in the USP IEB Archive. “Hymn-book for disheveled bodies/ I - Girls” gathers four poems written by Mar Becker (Marceli Andresa Becker). Mar Becker (Marceli Andresa Becker) is a poet. She is graduated in Philosophy (Universidade de Passo Fundo - RS) and is specialized in Metaphysics and Epistemology (Universidade Federal da Fronteira Sul - RS). A mulher submersa (Woman Underwater), her first poetry collection, has been published by Urutau in March 2020, both in Brazil and Portugal (BECKER, 2020BECKER, Mar. A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau, 2020.). In 2021, A mulher submersa won the Minuano Award, granted by the State of Rio Grande do Sul, and was also a finalist for the Jabuti Award, the greatest literary prize, both in Brazil.
KEYWORDS
Mar Becker; poetry; contemporary Brazilian literature
durante o banho
eu e minha irmã, digo que nós éramos duas crianças velhas. duas meninas que camuflavam senhoras de idade, e bastava um momento de desaviso (e certa perspectiva, adequada luz de cena), que elas apareciam
durante o banho - tomamos banho juntas até uns cinco ou seis anos -, nos olhávamos, já curvadas pela mornidão. as pontas dos dedinhos enrugadas
meu rosto procurava o rosto dela, e o banheiro como que em suspenso, preso ao real apenas pelos cordames da voz
os nomes se chamando
algumas risadas
de repente se encontravam, nossos olhos leitosos
de pequenas idosas
nesse tempo rezávamos toda noite antes de dormir, como a mãe havia ensinado. eu às vezes busco em mim os restos de algum credo, e o que encontro são sobras
e com sobras não se pode fazer liturgia em sentido típico. seria preciso criar outra, com outros objetos
um terço que tivesse sido feito por mim mesma, em que as contas meus antigos dentes de leite
entre as mãos, eu já velha
ostentaria ainda os escombros da menina
arroz
o fogão aceso
a panela, os carunchos boiando acima, em círculos
víamos o rosto da mãe no meio
da névoa que subia
ralo como água de arroz
o leite das mulheres
para a fome dos homens
lauren
lauren vai a caminho do banheiro, celular na mão, lanterna acesa. quem a observasse de certa distância não desenharia o corpo, não reconheceria nem mesmo o aspecto de mão no final do braço
apenas a extremidade em led, o cotoco avulso
grávido
nas unhas
nem sempre o desalinho se revela de imediato. o diabo mora nos detalhes, e a mulher, para vingar desalinhada, estranha, ela depende de condições muito específicas
instantes em que o jogo de luz e sombra desnuda alguma assimetria
(vê os narizes, mesmo os que parecem adequados -
basta um descuido, e no ângulo revelam uma e outra falha, uma aba maior que a outra, uma ponta de pelinho saindo... quando não ligeiro desvio de septo)
já nas meninas é possível perceber as marcas do desalinho, já na infância se observa se carregam aquele vibrião mais grotesco
do desejo -
repara nas unhas das mãos, geralmente feitas por elas mesmas, em casa. as cutículas mal-acabadas, a carne viva exposta nos cantos
elas avançam animalescas em torno do estojo de esmaltes das mães; vão sempre em horda, mesmo quando estão sozinhas
e com esse sentimento de levante se encorajam a pintar as unhas de vermelho
- isso nem que seja só para ver como fica, algodão e acetona do lado, caso seja preciso remover logo em seguida
o resultado é um vermelho encarnado em mãos magrelinhas, mirradas. não raro também sujas, porque
meninas ainda não têm aquela noção de civilidade que resulta em assepsia
por isso nem percebem que sob o comprimento das unhas
restam partículas de terra
de casca e fibras de laranja
vestígios de gosma de geleca, a típica
textura anfíbia (essa coisa de haver brinquedos que não servem pra nada, só pra causar nojo)
cabe dizer: em alguns casos até merda resta nas unhas, porque também nessa idade as pequenas não prestam atenção na quantidade de papel higiênico que precisam pra se limpar, de modo que às vezes é pouco e rasga com o atrito
sim, elas lavam as mãos depois, conforme o ensinado
mas não adianta
debaixo das unhas seguem como obra da queda
vermelhidão e podrume
nos cantinhos das unhas são sempre meninas que serão mulheres desviadas, desalinhadas
nas unhas se revelam. nas unhas
REFERÊNCIAS
- BECKER, Mar. A mulher submersa Bragança Paulista: Urutau, 2020.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Abr 2022
Histórico
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Recebido
02 Fev 2022 -
Aceito
07 Mar 2022