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Histórias e representações do Brasil: responsabilidades, cotejos, confrontos

As obras de Denilson Baniwa reproduzidas nesta RIEB dialogam com o esforço crítico do Instituto de Estudos Brasileiros em meio às comemorações dos 200 anos da independência política do Brasil e dos 100 anos da Semana de Arte Moderna. Já na capa, a imagem de Mário de Andrade decapitado é “uma espécie de vingança que, mais do que nos aniquilar, nos responsabiliza” (DINIZ, 2020DINIZ, Clarissa. Street fight, vingança e guerra: artistas indígenas para além do “produzir ou morrer”. Espaço Ameríndio. Porto Alegre, v. 14, n. 1, jan./jul. 2020, p. 68-88. Disponível em: <https://doi.org/10.22456/1982-6524.102736>. Acesso em: 3 ago. 2022.
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, p. 82), chamando à reflexão sobre a “aristocracia de espírito” (ANDRADE, 1974ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: ANDRADE, M. de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, p. 231-255., p. 236) do movimento modernista e de seus desdobramentos. Longe de imobilizar, a responsabilidade estimula a reflexão, o que se percebe em todas as seções deste número.

O dossiê “Paralelos 22” foi organizado coletivamente por docentes do IEB – Ana Paula Cavalcanti Simioni, Flávia Toni, Jaime Tadeu Oliva, Luciana Suarez Galvão, Marcos Antonio de Moraes, Monica Duarte Dantas, Stelio Marras. Em “O reverso da outra independência: participação indígena no contexto político da década de 1820 (Cimbres, Pernambuco)”, a historiadora Mariana Albuquerque Dantas (UFRPE) busca “compreender as motivações dos indígenas em se posicionar nos conflitos iniciados pelas elites” por meio de uma análise que rompe com “interpretações sobre a transição política do Brasil para um Estado alinhado ao liberalismo do início do século XIX, cujo efeito é lançar essas populações em um lugar arcaico diante de uma modernidade incontornável”.

Também radicado na historiografia, mas em perspectiva interdisciplinar que se volta para o campo do direito, o artigo “Suspensão de garantias no pós-Independência do Brasil: indefinições legais, vigilância parlamentar e vulnerabilidade de direitos”, de Vivian Chieregati Costa (USP), analisa “os debates parlamentares”, “os fundamentos legais” e as “implicações políticas” em torno “das medidas repressivas empreendidas pelo governo no interregno que separou a outorga da Carta de 1824 da abertura dos trabalhos parlamentares” em 1826, bem como em torno da dispensa das “garantias dos cidadãos do Império”, no período entre 1824 e 1842, “em diferentes localidades afetadas por agitações políticas e movimentos populares de contestação à ordem”. Já “Fiscalidade e subdesenvolvimento: breves considerações sobre o Brasil independente”, de Camila Scacchetti (USP), analisa em que medida a estrutura administrativa arrecadatória do Império, ao manter “escolhas fiscais” dos tempos coloniais, vinculadas a uma “dinâmica voltada para o exterior”, acabou por contribuir “para os níveis de desigualdade e subdesenvolvimento presentes no território nacional”, no oitocentos.

Os debates, no primeiro modernismo, sobre nacionalismo versus regionalismo, “herança europeia” versus “tradição brasileira” – ou, de modo mais específico, sobre “valorização do trabalho”, característica da “civilização europeia”, versus valor do ócio, “como um elemento propício à criação artística” no Brasil – são abordados de um ângulo original por Viviane Soares Aguiar (USP), em “Mário de Andrade e a construção da cozinha brasileira”. A seguir, Raul Antelo (UFSC), no artigo “A máquina de Polímnia”, examina a obra inacabada O Banquete, de Mário de Andrade, à luz do “conflito entre a ideia de um nacionalismo musical e sua ruptura” por meio do dodecafonismo, “teoria compositiva europeia de vanguarda”.

“O modernismo na perspectiva de Gilda de Mello e Souza”, de Annateresa Fabris (USP), discute contribuições da filósofa e crítica de arte aprofundando-se na análise de textos por ela produzidos e revendo “algumas de suas formulações a partir de pesquisas atuais”. Por sua vez, “Gilda & Mário: notas temáticas e estilo musical”, de Carlos Henrique Fernandes (UFSCar), adota uma forma ensaística para discutir o ensaísmo de Gilda de Mello e Souza e, na trilha aberta por Bento Prado Jr., suas relações com “o conceito marioandradiano de inacabado”.

Encerrando o dossiê, “Como estaremos em 2022”, de Sírio Possenti (UNICAMP), também utiliza uma forma ensaística para retomar “alguns indícios históricos que, vistos a posteriori”, revelam “uma profunda fissura social”, um “desejo dos mais ricos (em geral brancos) de ficarem afastados dos pobres (ou dos que parecem sê-lo)” e determinadas estratégias “assustadoras” de exclusão, próprias “das políticas mais conservadoras e regressivas”. E “Bolsonarismo sem Bolsonaro? Públicos antiestruturais na nova fronteira cibernética”, de Letícia Cesarino (UFSC), analisa, em “perspectiva antropológica de inspiração neo-batesoniana”, modos de atuação de agentes e “públicos bolsonaristas”, nas novas mídias, cujo fim é corroer “as bases da legitimidade e confiança social nos públicos dominantes que sustentam a democracia liberal e o tipo de esfera pública a ela associada”.

Dois artigos ainda são publicados. Em “Sexualidade improdutiva e resistência na canção ‘Geni e o zepelim’, de Chico Buarque”, Nara Lya Cabral Scabin (UAM) apresenta uma leitura de corte interdisciplinar na qual se destaca um traço da personagem Geni que ainda não fora observado pela crítica: a resistência feminina “à opressão capitalista-colonial” por meio de “práticas sexuais não apenas moralmente transgressoras, mas sobretudo economicamente improdutivas”. Por fim, “A infância na universidade pelo Departamento de Estudos da Infância”, de Lisandra Ogg Gomes (UERJ), Aristeo Gonçalves Leite Filho (UERJ) e Rita Marisa Ribes Pereira (UERJ), problematiza “os lugares da infância” na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e delineia um processo que diz respeito não só àquela instituição, mas a toda “cultura acadêmica”.

Na seção Criação, “Vaivém histórico” traz reproduções de obras do indígena e artista Denilson Baniwa (Denilson Monteiro Baniwa). Obras que “são por força intervenções em uma dinâmica histórica (a história da colonização dos territórios indígenas que hoje conhecemos como Brasil)” e que buscam rescrevê-la. Na seção Documentação, “A Ópera Café de Mário de Andrade: diário do encenador”, de Sérgio de Carvalho (USP), reúne anotações feitas no calor da hora: o texto registra “dificuldades e belezas” do processo de produção do espetáculo que levou ao Theatro Municipal de São Paulo, em maio de 2022, a música do compositor erudito Felipe Senna, a Orquestra Sinfônica Municipal sob regência do maestro Luís Gustavo Petri, o Coral Paulistano sob regência da maestra Maíra Ferreira, o Balé da Cidade de São Paulo, integrantes do Coletivo Nacional de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e uma “coalizão” de artistas negras e negros – o ator Carlos Francisco, os palhaços Erickson Almeida e Heraldo Firmino, a cantora Juçara Marçal, o cantor e compositor Negro Leo (Leonardo Campelo Gonçalves).

Três resenhas completam o número. “Modernismos alternativos, preto no branco”, de João Brancato (UNICAMP), analisa o livro Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso. “Devorando o Manifesto Antropófago”, de Vinicius Pontes Spricigo (UNIFESP) e Mayara Santos Carvalho Soares (UNIFESP), “coloca em perspectiva crítica as representações do negro e do indígena presentes na metáfora antropofágica”. E Adelia Bezerra de Meneses (USP/UNICAMP) aborda Tom vermelho do verde, romance de Frei Betto que denuncia, de forma contundente, o extermínio dos Waimiri-Atroari, desde os anos da Ditadura Civil-Militar.As imagens selecionadas pela equipe editorial, juntamente com as especialistas do Arquivo, Biblioteca e Coleção de Artes Visuais do IEB, são registros da criação de Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Antônio Paim Vieira, a partir da reprodução de originais que estão sob a guarda do IEB.

Retomando o que afirmamos inicialmente, este número integra uma série de iniciativas promovidas pelo IEB nos últimos três anos. Dentre elas, vale aqui ressaltar: a publicação de onze livros da Coleção Estudos Brasileiros – Paralelos 22, coordenada por Monica Duarte Dantas e Marcos Antonio de Moraes1 1 Informações sobre a Coleção Estudos Brasileiros – Paralelos 22 e o acesso gratuito às versões digitais dos livros podem ser obtidos no endereço <https://www.ieb.usp.br/colecao-estudos-brasileiros/>. ; a exposição Era Uma Vez o Moderno [1910-1944], com curadoria de Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner, evento com entrada gratuita, no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo, que ainda gerou o lançamento de um livro (AYER, 2022AYER, Maurício. O modernismo a contrapelo – em exposição e livro. Outras palavras, 22/5/2022. Disponível em: <https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-modernismo-a-contrapelo-em-exposicao-e-li-vro/>. Acesso em: 3 ago. 2022.
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); a Plataforma de Estudos do Primeiro Modernismo Literário Brasileiro, coordenada por Marcos Antonio de Moraes e Frederico Camargo, projeto que reúne “numa base de dados as informações biográficas, a produção escrita e a fortuna crítica de 24 autores ligados ao Modernismo literário brasileiro”2 2 A frase entre aspas faz parte da apresentação da Plataforma, a qual pode ser acessada no endereço <https://www.usp.br/bibliografia/modernismo/>. ; e a publicação do livro Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira, de Ana Paula Cavalcanti Simioni (2022)SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. São Paulo: Edusp, 2022.. Esse conjunto reflete as inquietações que perpassam as pessoas que têm atuado no e pelo IEB, contemporaneamente e em seus 60 anos, recém-completados.

Junto dessas iniciativas, esperamos que a RIEB 82 possa combater, tomando com liberdade uma formulação de José Antonio Pasta (2011, p. 30)PASTA, José Antonio. A teoria do romance. In: PASTA, J. A. Formação supressiva: constantes estruturais do romance brasileiro. 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011, p. 24-31., o “desprezo fácil” que faz “jogar fora tesouros de percepção que os próprios desprezadores estarão muito longe de atingir”, supondo já terem superado o que nem sequer compreenderam. Desprezo que é uma das feições, ainda que amesquinhada, do horror que ganhou espaço na vida pública brasileira.

Inês Gouveia3, Luciana Suarez Galvão4, Walter Garcia5

Editores

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: ANDRADE, M. de. Aspectos da literatura brasileira São Paulo: Martins, 1974, p. 231-255.
  • AYER, Maurício. O modernismo a contrapelo – em exposição e livro. Outras palavras, 22/5/2022. Disponível em: <https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-modernismo-a-contrapelo-em-exposicao-e-li-vro/>. Acesso em: 3 ago. 2022.
    » https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-modernismo-a-contrapelo-em-exposicao-e-li-vro/
  • DINIZ, Clarissa. Street fight, vingança e guerra: artistas indígenas para além do “produzir ou morrer”. Espaço Ameríndio Porto Alegre, v. 14, n. 1, jan./jul. 2020, p. 68-88. Disponível em: <https://doi.org/10.22456/1982-6524.102736>. Acesso em: 3 ago. 2022.
    » https://doi.org/10.22456/1982-6524.102736
  • PASTA, José Antonio. A teoria do romance. In: PASTA, J. A. Formação supressiva: constantes estruturais do romance brasileiro 282 f. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011, p. 24-31.
  • SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira São Paulo: Edusp, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2022
  • Aceito
    20 Ago 2022
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