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A máquina de Polímnia

Polymnia machine

RESUMO

Inacabado e ambicioso, O Banquete, o derradeiro ensaio musicológico de Mário de Andrade, ilustra o conflito entre a ideia de um nacionalismo musical e sua ruptura por meio de uma teoria compositiva europeia de vanguarda. O ensaio é uma sorte de diálogo com o dodecafonismo que foi introduzido, na Argentina, em 1934, por Juan Carlos Paz e, no Brasil, em 1937, por Hans Joachim Koellreutter.

PALAVRAS-CHAVE
Transnacionalismo; hibridismo artístico; transgressão de limites

ABSTRACT

Unfinished and ambitious, The Banquet [O Banquete], last of Mário de Andrade’s musicological writings, illustrates the conflict between the idea of a musical nationalism and its rupture by means of a European theory of avant-garde composition. The essay is a sort of dialogue with Dodecafonism which was introduced in Argentina in 1934 by Juan Carlos Paz and in Brazil in 1937 by Hans Joachim Koellreutter.

KEYWORDS
Transnationalism; artistic hybridisation; crossing boundaries

Estava eu como quem, no pensamento De passada visão vestígio tendo Salvá-los quer em vão do esquecimento, Quando a sublime oferta recebendo, De gratidão me entrei, que não se apaga Do livro, em que o passado está vivendo. Se quantos c’as irmãs Polínia afaga, Com dulcíssimo leite os alentando, Por eloqüência me ajudassem maga, Na milésima parte eu, me afanando, Cantar não conseguira o santo riso, Que raiava no aspeito venerando.

Dante – Divina Comédia. (Trad. José Pedro Xavier Pinheiro). Paradiso, XXIII, 49-60.

O Banquete de Mário de Andrade (1943-5) foi publicado, às quintas-feiras, como parte de sua coluna “Mundo Musical”, na Folha da Manhã de São Paulo (COLI, 1998ANDRADE, Mário de. COLI, Jorge. Música final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Campinas: Unicamp, 1998.). Apontemos, de início, uma diferença capital com o paradigmático diálogo evocado no título. O Banquete de Platão é um texto dos primórdios do filósofo, preparatório da República, ao passo que o de Mário de Andrade é um texto tardio e terminal, suscitado, em parte, pela dissolução da república. Mesmo assim, haveria entre os dois banquetes um sentimento compartilhado, a dialética da rivalidade. A μ ou amphisbetesis consiste em reclamar uma herança, ser o primeiro a reivindicá-la. A rivalidade refere-se, portanto, a pretendentes. Como se manifesta? No simpósio platônico, Sócrates defende a hipótese de que o amor não passa de um meio para atingir a visão do princípio eterno das formas, o belo em si, auto ho esti kalon (210d–212a). A posição de Mário é antagônica. Já em 1926 e na Klaxon: “Platão! por te seguir como eu quisera / Da alegria e da dor me libertando / Ser puro, igual aos deuses que a Quimera /Andou além da vida arquitetando!” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Mário de. “Platão” (in Losango Cáqui). Poesias Completas. In MANFIO, Diléa Zanotto. (Ed.). São Paulo, Editora da USP, 1987, p. 146-7., p. 146-147). Para enfatizar essa renúncia à “alva manhã de primavera”, o poeta Mário de Andrade privilegia “Mil vezes a nudeza em que resplendo / À clâmide da ciência, austera e calma!”, acomodado que está à “divina impureza de minha alma”. Contra a vida disciplinada, ergue-se a vida no abandono, “a nudeza em que resplendo”, valor que remete à dimensão teológica do manto, protegendo, mas ao mesmo tempo, reprimindo esse esplendor luciferino. Na mesma época em que Mário estampa seu diálogo na Folha da Manhã, 1944, mas em Berkeley, Harold F. Cherniss, antigo aluno de Werner Jaegger e de Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff, publicava seu Aristotle’s Criticism of Plato and the Academy. Outro contemporâneo, Heidegger, também se colocara, em diversas oportunidades, a questão da facticidade, na medida em que a incipiente metafísica de Platão começa a se preguntar, a partir do logos, pelo desvendamento do ente, por sua presença e preservação no pensamento e na enunciação, fazendo com que a dimensão da temporalidade e da historicidade do ser permaneça em profunda e duradoura nebulosa. Fica claro então que o Bem, tal como o ser, não é portanto mais uma ideia entre tantas outras, mas uma arché. Surgem, porém, diversas linhas de raciocínio. O Bem é o Uno que, junto com a dualidade, permanece como arché na determinação das ideias? Ou ele ocupa um lugar prévio a esta dualidade do Um e da multiplicidade indefinida? (GADAMER, 2002GADAMER, Hans-Georg. Los caminos de Heidegger. Trad. Ángela Ackermann Pilári. Barcelona: Herder, 2002, p. 83-94., p. 83-94). A questão da arché é, em suma, a questão da nudez.

Precisamente, Andrade reivindica, em sua dissidência, a nudez que, como muito bem mostrou Agamben, aponta, em poucas palavras, à tensão entre a natureza íntegra e a natureza lapsa, ou seja, a disputa que a própria natureza humana mantém em sua relação com a graça, com a realidade consagrada, i.e., com o amor. Agonicamente compreende-o uma das personagens conceituais do banquete brasileiro, o compositor Janjão, naquele domingo em que várias figuras das classes dominantes o acolhem para abrigá-lo: essas pessoas “protegiam as artes por causa da miséria dele, e não ele por causa das artes” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133)2 2 Janjão pertence à estirpe do próprio Sócrates de Platão, o Dioniso de Nietzsche, o Idiota de Cusa: personagens conceituais. . Por isso diríamos que, contra a essência do Bem platônico, o quid est, Andrade opta por uma aisthesis da existência, o quod est. “Arte não quer dizer bem feito mas fazer melhor” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 63). Nosso autor revela-se, portanto, um autêntico músico.

Em um pequeno texto inédito e datado de 1916, Benjamin também condenava a figura de Sócrates tachando-o de bárbaro (unmusisch) por apresentar-se numa terrível mistura de fauno e castrato (BENJAMIN, 1996BENJAMIN, Walter. Socrates. In: BULLOCK, Marcus; JENNINGS, Michael W. (Eds.). Walter Benjmin - Selected Writings. Cambridge: Harvard University Press, 1996, vol. I (1913-1926), p. 52-54., p. 52-54). A música, sem dúvida, define cultura e política. Com efeito, dentre todas as disciplinas do homem, a música está constitutivamente ligada à experiência dos limites da linguagem e, vice-versa, as experiências com a linguagem, nelas incluída a política, estão musicalmente condicionadas (AGAMBEN, 2016AGAMBEN, Giorgio. La musica suprema. Musica e politica. Che cos’è la filosofia? Macerata: Quodlibet, 2016, p. 133-146., p. 133-146). Mantinham, em tempos antigos, uma conexão com o arcaico e o próprio, uma μ ou inspiração divina, daí que, no simpósio original, para legitimar, musicalmente, a unidade do Um, Erixímaco lance mão do discurso de Heráclito, para quem, «discordando em si mesmo, consigo mesmo concorda, como numa harmonia de arco e lira», a famosa alegoria usada por Octavio Paz em 1956 para uma leitura autonomista da literatura. Outra não é a tessitura do diálogo platônico: uma síntese entre Urânia e Polímnia.

Ora, é grande absurdo dizer que uma harmonia está discordando ou resulta do que ainda está discordando. Mas talvez o que ele queria dizer era o seguinte, que do agudo e do grave, antes discordantes e posteriormente combinados, ela resultou, graças à arte musical. Pois não é sem dúvida do agudo e do grave ainda em discordância que pode resultar a harmonia; a harmonia é consonância, consonância é uma certa combinação — e combinação de discordantes, enquanto discordam, é impossível, e inversamente o que discorda e não combina é impossível harmonizar — assim como também o ritmo, que resulta do rápido e do lento, antes dissociados e depois combinados. A combinação em todos esses casos, assim como lá foi a medicina, aqui é a música que estabelece, suscitando amor e concórdia entre uns e outros; e assim, também a música, no tocante à harmonia e ao ritmo, é ciência dos fenômenos amorosos. Aliás, na própria constituição de uma harmonia e de um ritmo não é nada difícil reconhecer os sinais do amor, nem de algum modo há então o duplo amor; quando porém for preciso utilizar para o homem uma harmonia ou um ritmo, ou fazendo-os, o que chamam composição, ou usando corretamente da melodia e dos metros já constituídos, o que se chamou educação, então é que é difícil e que se requer um bom profissional. Pois de novo revém a mesma ideia, que aos homens moderados, e para que mais moderados se tornem os que ainda não sejam, deve-se aquiescer e conservar o seu amor, que é o belo, o celestial, o Amor da musa Urânia; o outro, o de Polímnia, é o popular, que com precaução se deve trazer àqueles a quem se traz, a fim de que se colha o seu prazer sem que nenhuma intemperança ele suscite, tal como em nossa arte é uma importante tarefa o servir-se convenientemente dos apetites da arte culinária, de modo a que sem doença se colha o seu prazer. Tanto na música então, como na medicina e em todas as outras artes, humanas e divinas, na medida do possível, deve-se conservar um e outro amor; ambos com efeito nelas se encontram. De fato, até a constituição das estações do ano está repleta desses dois amores, e quando se tomam de um moderado amor um pelo outro os contrários de que há pouco eu falava, o quente e o frio, o seco e o úmido, e adquirem uma harmonia e uma mistura razoável, chegam trazendo bonança e saúde aos homens, aos outros animais e às plantas, e nenhuma ofensa fazem; quando porém é o Amor casado com a violência que se torna mais forte nas estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas. Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como também muitas e várias doenças nos animais como nas plantas; geadas, granizos e alforras resultam, com efeito, do excesso e da intemperança mútua de tais manifestações do amor, cujo conhecimento nas translações dos astros e nas estações do ano chama-se astronomia. E ainda mais, não só todos os sacrifícios, como também os casos a que preside a arte divinatória — e estes são os que constituem o comércio recíproco dos deuses e dos homens — sobre nada mais versam senão sobre a conservação e a cura do Amor. Toda impiedade, com efeito, costuma advir, se ao Amor moderado não se aquiesce nem se lhe tributa honra e respeito em toda ação, e sim ao outro, tanto no tocante aos pais, vivos e mortos, quanto aos deuses; e foi nisso que se assinou à arte divinatória o exame dos amores e sua cura, e assim é que por sua vez é a arte divinatória produtora de amizade entre deuses e homens, graças ao conhecimento de todas as manifestações de amor que, entre os homens, se orientam para a justiça divina e a piedade (PLATÃO, 1991PLATÃO. O Banquete. Ou Do amor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 52-54., p. 52-54).

Distante de Erixímaco, Andrade não sintoniza com a harmonia do arco e a lira porque, se Platão lança mão, em seus diálogos, do mimetismo que parafraseia o discurso que visa modificar, Andrade abertamente parodia a harmonia platônica com vistas a uma renovada aisthesis existencial. “O artista não precisa nem deve ter uma ‘estética’, enquanto essa palavra implica uma filosofia do Belo inteirinho, uma organização metódica completa (...) Uma estética delimita e atrofia, uma estesia orienta, define e combate. A arte é uma doença, é uma insatisfação humana: e o artista combate a doença fazendo mais arte, outra arte” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 60)3 3 Em 1969, em “Platão e o simulacro”, um dos capítulos da Lógica do sentido, Deleuze explicita que a estética sofre uma duplicidade dilacerante. Ela nomeia, de um lado, a teoria da sensibilidade, como forma da experiência possível; e de outra, a teoria da arte como reflexão da experiência real. Para que ambos os sentidos se reúnam, é preciso que as condições gerais da experiência se tornem, elas mesmas, condições da experiência concreta. E a obra de arte surja então, definitivamente, como experimentação. Aparece então não só a ideia do simulacro mas a própria experiência do moderno como potencialização do simulacro. .

É sabido que Platão nos mostra, no diálogo, que erôs, sendo philo-sophia, amor ao conhecimento, nos coloca o desafio de extrair a verdade até mesmo da boca do escravo, já que qualquer um possui as formas eternas. A esse respeito, Lacan observa, neste ponto, que a rememoração analítica não é a reminiscência platônica e que, se a experiência atual pressupõe sempre a reminiscência, e se a reminiscência provém da experiência de vidas anteriores, é preciso que essas experiências todas tenham sido também conduzidas por uma reminiscência. Não há motivo para que ela chegue a um fim, e isto demonstra que estamos lidando com formas eternas. Sua emergência no sujeito, porém, significa fundamentalmente a passagem da ignorância ao conhecimento. Nada pode, enfim, ser conhecido porque tudo já é conhecido (LACAN, 1985LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 2. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 3. ed. Ed. Jacques-Alain Miller. Trad. M. C. Lassulk Penot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 25., p. 25).

Mas podemos mesmo assim pensar que há aí uma verdade que é a verdade do Dois, ou da diferença como tal. Ela não deriva do mero encontro contingente, mas da fidelidade a esse acontecimento, ou seja, ela sustenta-se na duração, tal como outro procedimento de verdade, a política, que não conduz apenas ao Dois, mas ao comum, ao coletivo. “Só existe uma virtude, com que a Fé se confunde, é Charitas vermelha, incendiada de amor!” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 59) Com efeito, a política não nos leva necessariamente ao Amigo mas ao Inimigo. A luta contra o inimigo é inerente à ação, uma vez que o inimigo constitui a essência da política. Por isso na perspectiva do comum, do «comunismo», existe uma ideia de que o coletivo consegue acolher e abrigar todas as diferenças extrapolíticas possíveis. O cristianismo também captou esse elemento universal do comum, mas colocou-o numa esfera completamente transcendente, daí que seu vínculo, sublime, seja sempre passivo e adorador, enquanto o do comunismo seja ativo e agonista, um Eloge de l’amour, como em Godard ou Badiou. Charitas, porém, vermelha.

Guerra e Paz

O banquete brasileiro reúne três personagens, “donos da vida”, com singulares vínculos estrangeiros, a milionária Sara Light, organizadora do banquete destinado ao artista-saltimbanco (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 63)4 4 O artista-boneco, “entregue às mãos das formas novas e futuras da vida, formas de que tenho a certeza, sem ter a convicção. Tudo está em ser boneco consciente de sua bonequice, o que também é uma paixão, é amor e desse amor se morre”. Cfr. STAROBINSKI, Jean - Portrait de l’artiste em saltinbanque. Genève, Albert Skira, 1970. , a cantora virtuose Siomara Ponga e Félix de Cima, o político de direita, conservador e burro, mais dois outros, artistas brasileiros, que se opõem a eles: a personagem heteronímica Janjão e o jovem e radical Pastor Fido (na ópera homônima de Haendel, Diana, aborrecida na Arcádia, admite que só se sossegará quando um pastor fiel crie nova linhagem5 5 Não esqueçamos, além do mais, que um dos pseudônimos de Astrojildo Pereira, fundador do PCB, era Gildo Pastor. ). Janjão, que nos interessa particularmente, persegue uma arte-ação, “um nacional de vontade e procura. Nacional que digere o folclore, mas que o transubstancia, porque se trata de música erudita. É um nacional que digere as tendências e pesquisas universais, por essa mesma razão do Brasil ser atual, e não uma entidade fixada no tempo” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 132-133). Por isso tem consciência da incapacidade da própria liberação e, assim, da impossibilidade de uma arte “que interessasse diretamente as massas e as movesse” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 65), daí procurar uma arte malsã, com “germes destruidores e intoxicadores, que malestarizem a vida ambiente e ajudem a botar por terra as formas gastas da sociedade. Obras que entusiasmem os mais novos, ainda capazes de se colectivizar, e os decidam a uma ação direta” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 65). Finalmente, quando perguntado por Pastor Fido se podia fazer uma arte de combate que atingisse o povo, Janjão hesita. “Pelo menos enquanto o povo for folclórico por definição, isto é, analfabeto e conservador, só existirá uma arte para o povo, a do folclore. E os artistas, os escritores principalmente, que imaginam estar fazendo arte pro povo, não passam de uns teóricos curtos, incapazes de ultrapassar a própria teoria” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 61).

Nesse campo de batalha (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 110) e apoiados no princípio de utilidade, os artistas do banquete de Mentira são conscientes entretanto de que “nossa tradição é europeia, nossa vida de arte erudita é a da civilização contemporânea, que já nem se pode dizer mais europeia, nem mesmo cristã, pois avassala universalmente o mundo” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 131). Reivindicam, portanto, uma arte nacional, porém, não nacionalista, como antídoto às pretensões de Félix de Cima, o político neofascista, que quer “nacionalizar Mentira, como estão fazendo no Brasil e na Argentina” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 104). E, nesse sentido, mais do que tentar mostrar qual é o modelo verídico que a arrivista Sarah Light ou a virtuosa Siomara Ponga satirizam no diálogo, gostaria pelo contrário de ver, na história, como se materializaram, de fato, e a futuro, as posições ficcionais de Janjão e Pastor Fido para derrotarem os “donos da vida” de Mentira. Nada pode ser conhecido porque tudo já é conhecido. “São apenas razões exteriores à criação artística propriamente dita, que causam o esquecimento injusto em que vivemos” (ANDRADE, 2015ANDRADE, Mario de. Programa do Theatro Municipal. (13 ago. 1938). In: CALIL, Carlos Augusto; PENTEADO, Flávio Rodrigo. (Eds.). Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 2015, p. 161., p. 161)6 6 “Programa do Theatro Municipal” (13 ago. 1938). Nesse programa de música de câmara sul-americana, Carlos Gomes é definido como o ser rapsódico macunaímico, o “Campineiro genial que foi buscar no Guarani dum Cearense que descrevia o vale do Paraíba, a pedra fundamental da música do Brasil”. . Com essa queixa, que é ao mesmo tempo, uma vindicação, a mesma aliás que externara Borges em El tamaño de mi esperanza (1926) e reiterará Sérgio Buarque de Hollanda no incipit de Raízes do Brasil (1936), poderíamos aventar a hipótese de que os ficcionais Janjão e Pastor Fido são o Jano bifacial que plagia por antecipação a trajetória de um músico e teórico como Juan Carlos Paz.

É sabido que Mário de Andrade manteve, na Klaxon, posição muito crítica em relação a Gastón Talamón (1883-1956), cronista musical, entre 1915 e 1924, de Nosotros, a revista de Buenos Aires (WOLKOWICZ, 2018WOLKOWICZ, Vera. En busca de la identidad perdida: los escritos de Gastón Talamón sobre música académica de y en Argentina en la revista Nosotros (1915-1934). In: RODRIGUEZ, Victoria Eli; CLEMENTE, Elena Torres. (Eds.). Música y construcción de identidades: poéticas, diálogos y utopías en Latinoamérica y España. Madrid: Sociedad Española de Musicología, 2018, p. 33-44., p. 33-44), porém, é bem menos notado o paralelismo entre os escritos de Mário e os de um discípulo de d´Indy, Juan Carlos Paz (1897-1972), quem criou, em 1929, e na capital argentina, o grupo Renovación, com os irmãos Juan José e José María Castro, Gilardo Gilardi e Jacobo Ficher, associando-se, informalmente, ao grupo Sur. Em carta ao musicólogo alemão Curt Lange, radicado em Montevidéu, datada de maio de 1934, Paz admite que “nosotros negamos la música oficialista argentina, formada por todos los incapaces, musicalmente hablando, que tiene el país; y la música folklórica de aquí, que aparte de ser la más pobre de América (toda ella puede reducirse a los compases 3/4 y 6/8,) tiene el inconveniente de expresar lo que muere irremisiblemente, por no tener contacto alguno con nuestro actual modo de sentir y de pensar”. Em 1936, quando Mário de Andrade estava começando sua tarefa à frente do Departamento de Cultura, Juan Carlos Paz deixou o grupo Renovación e a seguir fundou os Conciertos de la Nueva Música. Sob todos os aspectos, sua posição é absolutamente singular no cenário musical latino-americano, em primeiro lugar, por adotar, em solidão, um combate à linguagem descritiva do nacionalismo musical e, em segundo lugar, pelo ineditismo, mesmo considerando coordenadas internacionais, em aderir ao atonalismo. A criação dos concertos da nova música, cujas primeiras sessões datam de 1937, e aconteceram na associação Amigos del Arte, à rua Florida, coincide com a chegada, na Argentina, da pianista austríaca Sofía Knoll, em 1936, com quem Paz manteve relação amorosa, o que agrava a ruptura com o grupo Renovación (Paz era casado com uma irmã dos Castro). Na resenha do primeiro concerto de Sofia Knoll, Paz aproveita a ocasião para louvar a genialidade abstrata de Bach, tema aliás que Mário de Andrade já abordara em A escrava que não é Isaura, e afirma então:

Una audición consagrada a Juan Sebastián, músico de eternidad, lleva a pensar fatalmente en los muchos problemas en que se debate la conciencia musical de hoy: Strawinsky, Schönberg, Hindemith; porque Bach, por el rigor clásico que determina la trayectoria de su obra, es un problema de hoy. El primero y más importante acuerdo entre Bach y la música actual que ya ha trazado rumbos que parecen definitivos, es su concepción pura del arte; el segundo, que ambos consideran el motivo en sí como medio y no como finalidad, al modo que lo entendiera el 1800; el tercero, el reducir los materiales artísticos a su más estricta necesidad; el cuarto, el sentido arquitectural; el quinto, el dinamismo, que emparenta la obra de Bach, si bien en su aspecto externo, puramente motriz, con la expresión actual del maquinismo (Hindemith) y con el ritmo cinematográfico. … … …

Si el problema de la música de hoy consiste en la búsqueda de un estilo, se explica fácilmente que la vuelta a Bach haya sido una feliz solución. Ello consistió en el retorno a las formas puras, (la fuga, el coral, la variación, la tocata, la suite, la passacaglia), a la escritura lineal o polifónica, a la rítmica constante, a la concreción en lo instrumental y al claroscuro tonal, enriquecido por el politonalismo, descubierto asimismo por Bach. Así, pues, resultando Bach el máximo inspirador de nuestra época musical, de Strawinsky a Schönberg, y ello por evolución natural de los tiempos y no por imposición voluntariosa, no debe extrañar que las muchedumbres acudan y llenen las salas para oírle.

Juan Sebastián Bach es a la sensibilidad de hoy lo que el Greco fue a la de principios de siglo7 7 Cabe relembrar que Eisenstein inspira-se no Greco para a filmagem de Que viva México!. . El redescubrimiento de Bach por Strawinsky, paralelo al retorno a Ingres de Picasso, en vez de revelar el histrionismo de que se tildó a esos dos grandes artistas contemporáneos, demostró que estos creadores habían pulsado la época y anticipándose a lo que es hoy del dominio de todos. Bach, desprovisto de sensiblería, anécdota, truculencia, voluptuosidad colorista, redundancia, y por el contrario, dotado de concisión, abundante vocabulario, rudeza de verbo y de instrumental, desligado de la realidad inmediata, antisentimental, abstracto, está más de acuerdo con nuestro actual modo de sentir y de pensar que todas las voluptuosidades e hipertrofias sonoras producidas de cuarenta años a esta parte.

Por intermedio de Strawinsky o de Hindemith, Bach acude a la defensa de Occidente: descromatiza, desentimentaliza la música, volviendo a hacer de ella una potencia autónoma en el sentir, en contraposición al vehículo de expresión literaria, pictórica o metafísica que amenazaba perder todo control y toda medida, que acaparaba en beneficio propio toda exégesis sentimental, más o menos antojadiza, y que nos fuera impuesta a priori como la música en sí, la música por excelencia. En una palabra, que el retorno a Bach ha hecho tomar decididamente el camino real a los compositores máximos de hoy, extraviados los más en diversos atajos. El 1800 fue un siglo de Expresión, cuyas corrientes emocionales echaron mano del arte, y muy especialmente de la música, como medio para desarrollar sus sueños de infinitud. Muy lejos estamos de suponer que estuviera equivocado: obedecía a su clima espiritual producto de mil circunstancias y atavismos contra los que la voluntad humana no puede hacer gran cosa. Señalamos únicamente la característica para mostrar lo lejana que resulta para la sensibilidad de hoy. Época de síntesis la nuestra, cuyo máximo exponente artístico parece definirse en la arquitectura y en el cine, tiende asimismo en lo musical a lo concreto, de perfil clasicista. (PAZ, 1938PAZ, Juan Carlos. Crónica de la música. Conducta, n. 3, out 1938, p. 21-22., p. 21-22)8 8 Trata-se das sonatas em do menor de J. S. Bach (BWV 1017), em do maior, Nº 17, de W. A. Mozart (K 296) e em ré menor de J. Brahms (op. 108). .

Em 1938 Paz escreve três cartas, sem qualquer resposta, a Arnold Schönberg, nas quais se apresenta como alguém “complètement isolé comme compositeur et comme partisan de la nouvelle musique, car tandis que la compréhension des meilleurs compositeurs argentins ne va pas au-delà de Ravel et du premier Strawinsky”, mas estabelece fecunda correspondência com o compositor austríaco Paul Pisk, o esloveno Slavko Ostec, o tcheco Erns Krének e o polonês Józef Koffler, morto em campo de concentração. No segundo ano, os concertos da nova música transferem-se para o Teatro del Pueblo (PELLETIERI, 2006PELLETIERI, Osvaldo. Teatro del Pueblo: Una utopía concretada. Buenos Aires: Galerna, 2006.), onde foram apresentadas a Sonata, op. 10, para piano, do tcheco Karel Reiner, a Sonatina (clarinete e piano) e as Cinco coplas y una rumba, do músico ítalo-argentino Antonio De Raco; a Suite, op. 26-2, para piano de E. Krének; a Sonata (flauta e piano) de Paul Hindemith; a Música para trio, de clarinete, trompeta e saxofone do próprio Paz; Três rag-caprichos, de Darius Milhaud, para piano; a Sonatina, op. 13, de Karel Hába, para flauta e piano; duas canções da Ópera dos três vinténs9 9 “Las dos canciones de La ópera de los cuatro centavos, de Kurt Weill, muestran otro aspecto de la aclimatación del jazz en Europa; pero partiendo de lo arcaico y logrando un feliz equilibrio entre ambos elementos. Se ha dicho que esta ópera es un jazz en último estado de descomposición; pero el hecho es que ella representa una voluntad constructiva frente a los productos del post-impresionismo. Es, en suma, algo efectivo en un período de titubeos, claudicaciones, experimentaciones y negaciones de todo género” (PAZ, 1939a). , de Kurt Weill; a Toccata, op. 38, de Alois Hába (piano), com novas execuções da Sonata, op. 11-2, de Hindemith e das 10 piezas sobre una serie en 12 tonos, do próprio Paz.

Em abril de 1937, em carta ao músico tcheco Vaclav Smetacek, Juan Carlos Paz esclarece o motivo de ter abandonado o grupo Renovación: “ellos se inclinan a las derechas y yo a las tendencias más radicales de la música contemporánea”.

Em que consistiria uma posição de esquerda, musicalmente falando? Para Paz:

“Politonalismo: modulación en simultaneidad. Atonalismo: negación de la tonalidad clásica y sus consecuencias formales. Música atemática: la construcción basada en el ritmo y sin secuencias melódicas. Supercromatismo: música en cuartos de tono. Sistema de los 12 tonos: sustitutivo de la tonalidad clásica, que renueva todos los conceptos tradicionales sobre melodía, armonía, ritmo, timbre y construcción formal. Neo-clasicismo; secuencias del “jazz”; secuencias folklóricas; dentro de estas definiciones, que afectan casi todas a la técnica de cada escuela, cabe todo lo que puede definirse como NUEVA MÚSICA. Únicamente críticas muy malévolas o muy tontas, pueden sugerir que todo eso ya no es nuevo por el hecho de que bastantes creaciones de la música actual se remontan a la iniciación del período de post-guerra. Esto de confundir lo nuevo con lo reciente podría refutarse fácilmente recordando que hoy resulta Bach mucho más nuevo que Debussy. Otra costumbre muy poco feliz también, consiste en creer que lo nuevo sea lo novedoso. Entendemos lo nuevo como substancia, no como curiosidad o atracción periférica, como sucede en la música de Casella, Respighi, Camargo Guarnieri o Juan José Castro.[…] En definitiva: la música que partiendo de un orden intelectual como es la tonalidad, crea gracias a ella su propia expresión, inicia una nueva etapa en la historia de ese arte, etapa comparable a la adopción del “temperamento equivalente”, por Juan Sebastián Bach, o a la asimilación, por la Iglesia de Occidente, de los antiguos modos griegos. El hombre de hoy, que aspira a un nuevo estado espiritual y estético, debe comprender que la NUEVA MÚSICA responde a ese ideal. No se trata de ‘la muerte del ensueño’, sino de un equilibrio de la sensibilidad y la inteligencia. Por eso los geniales pero desordenados improvisadores, tipo Ricardo Strauss o Villa Lobos, son tan extraños a la sensibilidad actual, a pesar de sus magníficas algarabías, como lo eran Haydn o Mozart al Romanticismo del siglo XIX, por razones opuestas”. (PAZ, 1939bPAZ, Juan Carlos. Crónica de la música. Conducta, n. 6, abr. 1939b, p. 75-76., p. 75-76).

De fato, nos anos 40, Paz aparece nos antípodas de Ginastera, que representava a estética de cunho acadêmico e nacionalista, como atestam Panambi ou Estância. Publicará até várias diatribes contra ele no periódico Argentina Libre (PAZ, 1942aPAZ, Juan Carlos. El Caso Ginastera. Argentina libre, n. 113, 21 maio. 1942a., bPAZ, Juan Carlos. Más sobre el caso Ginastera: Sin la gloria de los burócratas del arte. Argentina Libre, 1942b., cPAZ, Juan Carlos. Más sobre Ginastera. Argentina libre, n. 116, 11 jun. 1942c.)10 10 Ver Buch, 2007, p. 11-33. , onde um jovem crítico de arte, Jorge Romero Brest, mais tarde orientador do Instituto di Tella, sede das transgressões dos anos 60, resgatava paralelamente escritos de Mário de Andrade para fundamentar a nova estética. Em Argentina Libre, com efeito, Romero Brest, apresenta “Mário de Andrade, prestigioso crítico brasileño” (a.2, nº 57, 10 abr. 1941, p.7), cujas hipóteses acerca de Lasar Segall, em “Do desenho”, antecipam as ideias radicais do Banquete, no sentido de que “são as artes do inacabado, mais próprias para o intencionismo de combate” porque “o acabado é dogmático e impositivo. O inacabado é convidativo e insinuante. É dinâmico enfim. Arma o nosso braço” (ANDRADE, 1977ANDRADE, Mário de. O banquete. Texto estabelecido e prefácio por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades. 1977. p. 57, 59-65, 104, 110, 132-133., p. 62). Na mesma revista leríamos também uma matéria não assinada (ARGENTINA LIBRE, 1942, p. 11), à qual não repugnaria o juízo de Paz no sentido de que as óperas de Kurt Weill vaporizam de vitriolo tudo quanto restava do idealismo anterior à guerra. Crítica de combate.

Inconformado com certa institucionalização do modernismo, Paz chegou a cogitar, nos anos 40, um novo grupo de vanguarda, com Pettorutti, María Rosa Oliver, os pintores Ramón Gómez Cornet e Carlos Giambiagi, o escultor Antonio Sibellino e a pianista Sofía Knoll, mas a emergência da guerra paralisa e mistura as correntes (HESS, 2013HESS, Carol A. Copland in Argentina: Pan Americanist Politics, Folklore, and the Crisis in Modern Music. Journal of the American Musicological Society, University of California Press, v. 66, n. 1, 2013, p. 191-250. p. 191-250).

Referindo-se ao grupo dos Seis, por exemplo, Paz observa que:

“hoy día, los antiguos componentes del ‘grupo’ glorioso – algunos de ellos – continúan siendo la vanguardia de la música francesa y de las primeras figuras de la música mundial: hemos nombrado a Milhaud y a Honegger, a los que sigue en importancia Francis Poulenc. Y esta será la hora en que Francia agradecerá a estos ‘nuevos jóvenes’ la obra que han venido realizando, amplia y robusta a la vez que graciosa, que ellos emprendieron cuando pasados los años de juvenil alboroto, pudieron dar un adiós burlón a la larga serie de irreverencias injustas pero necesarias, y a los no menos numerosos escándalos, tanto o más necesarios también, por cuanto obligan a afiliarse, a ponerse en el pro o en el contra y a indignarse o a aplaudir furiosamente; puntos de partida eficaces para obligar al público a cambiar de postura expectante, y a forzarle a ver el reverso de las cosas; es decir, lo que pocas veces se le invita o se le obliga a que vea, olvidando, prudentemente, aquello de que a las verdades hay que contemplarlas bailando en la cuerda floja, al decir de Nietzsche”. (PAZ, 1940aPAZ, Juan Carlos. Crónica de la música. Conducta, n. 10, abr. 1940a.).

Em carta ao músico Luis Gianneo, sem data, admite que “hay mucho de impaciencia y de desorden en el artista americano: quiere llegar pronto. En Europa el artista comienza su carrera cuando, por lo general, se acerca a la cuarta década. Aquí creemos que a esa edad debemos haber realizado una obra a base de ideas propias; error profundo” (GARCÍA MUÑOZ, 1989GARCÍA MUÑOZ, Carmen. Cartas de Juan Carlos Paz. Revista del Instituto Carlos Vega de Investigación Musicológica, n. 10, 1989, p. 313-320., p. 313-320).

Juan Carlos Paz teve muitos discípulos, dentre eles, Michael Gielen, Carlos Roqué Alsina, Mario Davidovsky, Edgardo Cantón, Mauricio Kagel ou Francisco Kröpfl, que fará a transição entre Paz e Pierre Boulez; além do mais, escreveu três livros de teoria, Arnold Schoenberg o el fin de la era tonal (1954), Introducción a la música de nuestro tiempo (1955), do qual há tradução brasileira (Introdução à música de nosso tempo. Trad. Diva Ribeiro de Toledo Piza; São Paulo, Duas Cidades; 1976), e La música en los Estados Unidos, um breviário do Fundo de Cultura Econômica do México (PAZ, 1994PAZ, Juan Carlos. Alturas, tensiones, ataques, intensidades (Memorias III). Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1994.). Os dois primeiros, a rigor, foram sendo elaborados, antes da guerra, a partir da criação do grupo de nova música. Em um desses capítulos, em 1940, Paz esboça um estado da arte:

Pocos períodos de la Historia de la Música aparecen tan interesantes, ricos y movidos como el actual, indistintamente en lo que a teorías y prácticas se refiere. A la serie considerable de espíritus creadores, que recuerda los días del clasicismo por su diversidad y abundancia, únese una cohorte de investigadores, y lo que es más importante, de teóricos de la música, que en las postrimerías de un estilo – de una cultura quizás – agudizan su visión en procura de nuevos medios que impulsen hacia una música futura. Proposiciones como las de Busoni, visionario genial que ya a principios del siglo se anticipa a la pantonalidad de Schönberg y a los cuartos y sextos de tono de Alois Hába, deben ser consideradas como el evangelio de las nuevas tendencias musicales. Las realizaciones posteriores a Busoni, ya sea en el terreno de la armonía, como en Schönberg y su escuela, o en la subdivisión del semitono, como en Alois Hába y el grupo de compositores checos y yugoeslavos que lo sigue, significan el máximo impulso vivificador inyectado en la música de Occidente desde la creación de la armonía y la orquestación romántica Wagner, Liszt, – en el siglo XIX. Naturalmente que nada de eso ha podido realizarse sin lucha. Muy al contrario, ella ha sido tan intensa cuanto más demoledoras y creacionales han sido las innovaciones propuestas y realizadas por aquellos espíritus visionarios.

En efecto, los valores tradicionales, que antes de la primera guerra mundial prolongaban su existencia con recursos del viejo arsenal romántico, – hiperestesia, megalomanía, – y que ya entonces reñían ruda lucha con las nuevas ideas triunfantes, el impresionismo de Debussy, Scriabin y Schreker, aún estorban la marcha de cosas que llegaron mucho después y cuya principal misión, que nunca le será bastante agradecida, fué limpiar la atmósfera de densidades irrespirables, a cuyo imperio había contribuído, en no escasa medida, el materialismo cínico de Ricardo Strauss, el decadentismo de los ballets rusos y el narcisismo de los derivados del debussysmo.[…] A raíz del más profundo y despiadado análisis que se haya verificado en nuestros días con cuanto era tabú en el terreno de los sonidos organizados, es ésta la hora en que parece no haber quedado elemento musical alguno que no haya sido sometido a la prueba decisiva. ¿Qué es lo que ha quedado de las verdades inmutables de tonalidad y forma y de los eternos cánones de la belleza, de que nos hablaran imponentes y barbudos profesores que jamás habían escrito media página musical?: bastaron los esfuerzos de un Busoni, de un Schönberg o un Hába, para demostrar que el inexpugnable castillo de los eternos valores musicales estaba construido con naipes.

Y es que hay que convenir que jamás se había realizado un ataque tan a fondo de los viejos preceptos, al punto de que en realidad se ignoraban su fortaleza o su debilidad. A raíz de ese ataque, ningún terreno, ningún aspecto técnico quedó sin explorar y sin analizar por lo básico; pero, es bueno tenerlo en cuenta, ello no fue hecho por el mero placer de llevar la contra al pasado, sino en función de impulso hacia nuevas concepciones. De esta aparente disolución surgió todo un mundo de insospechadas posibilidades. (PAZ, 1940bPAZ, Juan Carlos. Crónica de la música. Conducta, n. 14, nov/dez. 1940b.).

Contemporaneamente ao Banquete de Mário de Andrade, Paz colabora na revista de Macedonio Fernández, defendendo a técnica metatextual do contraponto (explorada literariamente por Andrade em Macunaíma e pelo próprio Macedonio em Adriana Buenos Aires) argumentando que:

En cuanto al contrapunto como medio de expresión de los elementos espirituales, es ésta la hora en que aún no ha retomado el sitio que ocupara en el Barroco, y del que fuera desplazado por la armonía del período clásico. Sin embargo, intentos aislados presagian su retorno a un primer plano. Así parecen al menos demostrarlo los esfuerzos de Max Reger en sus fantasías y fugas, Hindemith y Alois Hába en la música de cámara, el Strawinsky ascético que aparece en la Sonata, el Octeto, el Concerto o la Sinfonía de los salmos, o el norteamericano Roger Sessions, cuya música es de un enorme poder intelectual.

Puede señalarse, sin embargo, una característica general que es común a todas esas tendencias que contemplan la renovación de la música a través de la armonía, y es el cultivo intensivo y creciente del contrapunto y la polimelodía como reacción ante la armonía estática del impresionismo. En ese campo aparecen firmemente alineados Hindemith o Schönberg, Alois Hába como Honegger, Osterc como Krének, Roy Harris, Egon Wellecz, Roger Sessions o Demetrio Zébre. En los antípodas se hallarán los valores relativos y circunstanciales, adictos sobre poco más o menos, a la armonía fácil y evocativa, colorista, sensual y fin de siglo del Impresionismo, movimiento que fué renovador hace casi medio siglo, y que hoy de puro gastado y superado, se ha convertido en el refugio de todos los compositores retrógrados del universo. (PAZ, 1943PAZ, Juan Carlos. Ensayo I sobre música. Papeles de Buenos Aires, n. 2, nov. 1943, p. 12., p. 12).

E, numa segunda colaboração na mesma revista, Paz renova a aposta construtiva:

Luego de la implantación de la técnica de doce sonidos comienza en la música un nuevo período constructivo. El músico creador se ha despojado de los recursos tradicionales del métier, como plan tonal, desarrollo melódico, repeticiones textuales, polarización de unos acordes sobre otros, cadencias, rellenos de toda especie, como asimismo de toda definición o imagen de procedencia más literaria que musical. A continuación, las fuertes y naturales corrientes de la música vencen toda dialéctica y logran su expresión dentro de las nuevas conquistas, logradas hasta entonces gracias a una renovación total de la armonía. La doble tonalidad de Debussy, la politonalidad de Milhaud, Honegger, Casella, Hindemith y diversos compositores de Checoeslovaquia y de la U.R.S.S., pero especialmente de Schönberg y de su grupo vienés, encaran la renovación desde el punto de vista de una armonía centrípeta, actuante, en oposición a la armonía tradicional, verdadero sostén de las ideas melódicas y a ellas subordinada. (PAZ, 1944PAZ, Juan Carlos. Ensayo II sobre música. Papeles de Buenos Aires, n. 3, abr. 1944.).

Numa outra colaboração, Paz ainda faz uma diferenciação pertinente entre obra revolucionária, ou seja, de vanguarda, e obra moderna. Na revista surrealista editada por Algo Pellegrini, reivindica, por exemplo, que Wozzeck, de Alban Berg, não é uma “ópera revolucionária”:

es una obra que cierra una técnica y una estética: el atonalismo integral y el expresionismo escénico, respectivamente; y se sitúa por lo tanto en el extremo opuesto de las obras bien o mal llamadas revolucionarias, que son las que abren nuevos rumbos: Erwartung, por ejemplo, de la que procede todo cuanto Wozzeck nos muestra de sorprendente y de alucinante. (PAZ, 1953PAZ, Juan Carlos. A propósito de Wozzeck. Letra y línea, n. 2. Buenos Aires, nov. 1953, p. 7., p. 7).

Mais ainda, aponta, no caso de Wozzeck, o que Paz considera sérias inconsequências:

1º, el empleo de esquemas de formas basados en la tonalidad y aplicados en el campo atonal, es decir, de negación de lo tonal, lo que supone una contradicción difícil de explicar; 2º, la supervivencia del viejo criterio de drama, cuyo excesivo sinfonismo post-wagneriano definió Schönberg irónicamente como “una sinfonía para gran orquesta acompañada de una voz que canta”; 3º, la situación ideológica contradictoria entre estructuras sinfónicas infinitamente complicadas en su organización, y destinadas a comentar una acción nihilista de disgregación hacia la nada; 4º, el gigantesco esfuerzo gastado en apuntalar una causa perdida como es la de la ópera, género anacrónico y burdamente convencional: convencional como todo lo que en arte pretende interpretar o copiar la realidad, en lugar de adoptar una medida de superación sobre la misma (PAZ, 1953PAZ, Juan Carlos. A propósito de Wozzeck. Letra y línea, n. 2. Buenos Aires, nov. 1953, p. 7., p. 7).

Não houve, ao que consta, nenhum contato direto entre Paz e Mário de Andrade, mas através da mediação do diretor do Instituto Interamericano de Musicologia, o já citado Curt Lange, também estreito colaborador de Andrade11 11 “O prof. Curt Lange, antes de mais nada, é um crente das possibilidades musicais e outras, dos americanos. Isso o distingue muito de nós, brasileiros, que não temos não uma grande saúde moral nesse sentido. Nós descremos muito de nós mesmos, somos uns desleixados a respeito de intercâmbio musical. O prof. Curt Lange, ao contrário, se apresenta virilmente crente da América, compreende com ânimo sadio as nossas possibilidades, e a sua atuação já vai se fazendo sentir fortemente”. (ANDRADE, 1993, p. 266; TONI; CAROZZE, 2013, p. 181-204; ARCANJO JÚNIOR, 2011). O Acervo Curt Lange encontra-se atualmente na UFMG. , quem inaugurou com “candente y cáustica” conferência as atividades do grupo, Juan Carlos Paz sintoniza com o pessoal da Musica Viva (1938-1950), que partia igualmente da convicção de que “a arte dos mais jovens compositores brasileiros rompe energicamente com a tradição concebendo uma arte mais universalista, sem a preocupação de regionalismo expresso por características especiais de país e raça, integrando-se nas correntes mais avançadas da música contemporânea. Sua obra, alheia a preconceitos e doutrinas, não pretende ser outra coisa senão a expressão real e sincera de nossa época”. Pouco depois da morte de Mário, em 1945, Paz destacará o ensino de Hans-Joachim Koellreutter e o aparecimento do grupo Musica Viva, cuja evolução se lê em paralelo da relação entre Paz e Knoll:

Con la llegada al Brasil de Hans-Joachim Koellreutter, en 1937, puede afirmarse que comienza en ese país una nueva etapa de su evolución musical: la que une a un sentido de renovación sustancial en el punto de partida de la creación, un criterio de responsabilidad mayor, en el aspecto cultural, que el que hasta entonces practicara el compositor nativo, muellemente columpiado por fáciles folklorismos, costumbrismos, espíritu de imitación, e inauditas orgías de colorido instrumental y de selváticas onomatopeyas, planeando sobre un terreno de lacrimosa sentimentalidad.

Era el instante en que imperaba en el país, y con máxima fuerza, la pueril creencia de que para hacer un arte nacional era preciso emplear ritmos o giros melódicos extraídos del cancionero popular o de las músicas autóctonas. Entonces todo se convertía en excursiones musicales a la selva, al Amazonas, a un indigenismo literario y ornamental, pleno de un salvajismo a hechura de la mentalidad ochocentista del compositor blanco o mestizo, heredero directo del Romanticismo de sus mayores, con su ambición por lo decorativo a todo color, una saudade importada de Portugal, y fecundizada por el ambiente soñoliento y propicio a la sensualidad fácil y a la postergación del esfuerzo: físico y mental.

Toda la producción musical brasileña puede concretarse espiritualmente dentro de esos límites; y si la voluntad aparecía, en modo esporádico, era siempre para definirse dentro de una visión literaria y obediente a un clisé obligado - la danza guerrera de las tribus autóctonas o el candombe -, o más bien dicho, a una actitud pasiva que se alimentaba de un culto incondicional del pasado, en perpetua indiferencia y postergación del presente.

Los elementos indispensables para el logro de estos fáciles tradicionalismos, que obran directamente sobre el oyente por vía de un simple contacto psíquico, como la risa o el llanto, poco o ningún esfuerzo significaban para el compositor brasileño cultivador de tendencia semejante; le bastaba extender su brazo, por así decirlo, para obtener, sin gran fatiga, una cantidad de ritmos o de melodías derivadas en el mejor de los casos de las fuentes populares, cuando no simplemente calcados de lo popular o de lo autóctono, para obtener materiales evocativos y sentimentales para la construcción de un poema sinfónico, una ópera indo-italiana o una suite, invariablemente descriptivas, pintorescas, de esencia realista e imitativa, y aderazados con los recursos que el impresionismo y aún el verismo pusieron en manos de todos los aficionados del universo. Esa es, sintéticamente considerada, la labor incontrolada y deforme del nacionalismo musical brasileño, de Villa-Lobos a Lorenzo Fernândez, Francisco Mignone, Barroso Neto, Frutuoso Viana, imitadores, satélites y adláteres.

A essas alturas Sofia Knoll, separada de Paz, estava em tournée, inicialmente americana e, após a guerra, pela Europa, com um dançarino do Teatro del Pueblo, executando o repertório exotista hispano-americano que Paz fulminava a seguir:

“Esto ha sido, por otra parte, el defecto capital y el límite de posibilidades de los compositores de tendencia nacionalista de todas partes del universo, ya se trate de Smetana, Grieg, Borodin, Rimsky-Korsakov, Slavenski, Musorgski, Granados, Albéniz y toda la subsiguiente escuela española con la excepción de Falla: quien para superar su etapa meramente pintoresca y folklorizante, se obliga a retroceder varios siglos - en el Retablo y en el Concerto - para lograr al fin una estructuración, un orden, sin el cual no hay arte posible y sí solamente un balbuceo indefinido o un estado de incontrolada improvisación ”. E neste ponto, após a exaltação do retorno barroco de Falla à fantasia anacrônica do concerto para cravo, Paz observa que “los pueblos más ricos en música popular, son los que menos han contribuido con grandes personalidades al desarrollo de la música, del punto de vista universal. Así sucede con España, Hungría, Rusia, Rumania, Brasil o Checoeslovaquia. En cambio, países como Alemania, Austria o los Países Bajos, pobres en música basada en el elemento popular, así como la misma Francia, aportan la casi totalidad de las figuras cumbres de la música mundial”. (PAZ, 1945PAZ, Juan Carlos. Música brasileña de vanguardia: Hans Joachim Koellreutter y el grupo “Musica Viva”. Latitude, n. 4, maio 1945, p. 16-17., p. 16-17).

Tendo tomado conhecimento do manifesto Música Viva através da revista Clima, Juan Carlos Paz adota o mesmo princípio que Mário de Andrade desenvolve em O Banquete e afasta a hipótese de que

la única misión destinada a las agrupaciones llamadas “de vanguardia” se concretara en molestar a crítica y auditorios de esencia conservadora; una y otros consideran que el compositor contemporáneo afiliado a tendencias radicales tiene la misión específica de burlarse de ellos. Pero esto no colma la totalidad de las ocupaciones ni del tiempo de que dispone tal compositor, sino que constituye únicamente parte de su preocupación y actividades; el resto lo constituye la labor positiva: creación y divulgación; complementos que forman un todo en la actitud de ataque y defensa a que se ve forzado el compositor contemporáneo, ante la crítica rutinaria que pretende medir y clasificar tendencias nuevas con patrones y fórmulas archivables y en desuso. (PAZ, 1945PAZ, Juan Carlos. Música brasileña de vanguardia: Hans Joachim Koellreutter y el grupo “Musica Viva”. Latitude, n. 4, maio 1945, p. 16-17., p. 16-17).

Paz elogia a obra de Koellreutter com argumento quase futurista (“rigurosa higiene mental, que excluye como recursos prohibidos e indeseables toda sensiblería tradicionalista o todo criterio de arte basado en toda una farmacopea a base de estupefacientes, de los que tanto empleo se hace a partir de las Chansons de Bilitis, de Pélleas et Mélisande o de la Rhapsodie Espagnole”), destacando, porém, o atonalismo integral, impulsionado pelo principio de melodia livre como único elemento de estruturação formal, no plano da técnica dodecafônica, à qual Koellreutter adere desde 1940, aproximadamente, gerando assim “un nuevo sentido expresivo emanado directamente de la adopción del nuevo lenguaje armónico”. Naturalmente essa música anti-sentimental, “cerebral en el más alto sentido”, tinha que ser resistida porque, notadamente, no sul da América Latina, Paz julgava que a música

no ha superado la etapa impresionista con reflejos aún románticos, a pesar de las inyecciones negroides, indígenas, mestizas, etc. A fin de cuentas, y resumiendo, hallamos siempre un impulso sentimental no controlado, y no concretado en orden estructural alguno, disfrazado con derroches de color orquestal y etiquetas literarias que todo lo explican y nada definen, una técnica postiza - indios a la última moda europea - y una continua simulación del compositor blanco disfrazado de aborigen, en perpetuo carnaval folklorizante. La música y las enseñanzas de Koellreutter tienden a demostrar a los tradicionalistas, folkloristas y demás plagiarios del pasado que pululan en el ambiente musical latinoamericano, que la música es una estructuración sonora, y que dirigir la fantasía creadora desde un plano constructivo previamente organizado, es infinitamente más eficaz - y más difícil - que abandonarse blandamente a improvisaciones sin control, hijas de un desorden mental y estético lamentable; muy bonitas, a veces, mientras duran; pero incapaces de resistir un análisis severo en cuanto dejan de oírse. (PAZ, 1945PAZ, Juan Carlos. Música brasileña de vanguardia: Hans Joachim Koellreutter y el grupo “Musica Viva”. Latitude, n. 4, maio 1945, p. 16-17., p. 16-17).

Paz, como dissemos, elogia Hans-Joachim Koellreutter, ao passo que Koellreutter louva as ideias de Mário no Banquete. Com efeito, o músico alemão julgava a música uma arquitetura sonora que traduz a expressão do sentimento, uma arte “livre e soberana”, nunca “escrava do meio” (KOELLREUTTER, 1943KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Domenico Scarlatti. Leitura (Rio de Janeiro), n. 12, nov. 1943, p. 55., p. 55), e chega a afirmar, acerca especificamente do diálogo de Andrade que aqui nos ocupa, que “nesta hora, em que a civilização muda de rumo, em que se processa uma das maiores transformações sociais e espirituais, as palavras de Mário de Andrade apelam para os artistas pela socialização da sua arte: ‘Acho que o artista, mesmo que queira, jamais deverá fazer arte desinteressada’”. Impõe-se portanto aos artistas uma “socialização da sua arte”, uma vez que “pereceu o mundo do primado individual e surgiu um mundo novo, o do primado social” (KOELLREUTTER, 1945KOELLREUTTER, Hans-Joachim. “Sobre “O Banquete” de Mário de Andrade. Leitura (Rio de Janeiro), n. 27, mar. 1945, p. 53-54., p. 53-54)12 12 A série prossegue no nº 28, abr. 1945, p. 46-47; nº 29, maio 1945, p. 16-17; nº 30, jun. 1945, p. 65-66 e nº 31, jul. 1945, p. 65. Koellreutter ainda publicaria um outro texto sobre o assunto, “Arte funcional: a propósito de ‘O Banquete’ de Mário de Andrade”, numa revista comunista, Fundamentos, em fevereiro de 1948. Ver também seu diálogo com os concreto-abstracionsitas portenhos, em particular com Gyula Kosice, em “Carta Abierta de H. J. Koellreutter”. Arte Madi Universal, Buenos Aires, nº 4, out. 1950. .

Em 1967 Paz foi convidado a entrar para a Academia Argentina de Belas Artes, mas declinou o convite e até mesmo seu oposto, já que “fundar, de una vez por todas, la anti-academia: en la acera de enfrente, sí es posible. Aunque bien mirado, sería una acción harto redundante, porque la anti-A existe, y está integrada por todos los escritores y artistas no domesticados del Universo”. É a política do inimigo que traça a divisória entre os dois bandos. Dois anos mais tarde, Paz participa, não como músico mas como ator, de Invasión (1969), filme de um discípulo de Bresson, Hugo Santiago. Nele encarna a figura patriarcal de don Porfirio, uma sorte de ficcionalização de Macedonio Fernández, que lidera a resistência contra os saqueadores de Aquileia, questão antes abordada, em 1957 (ano em que o filme situa os acontecimentos), por uma história em quadrinhos, O Eternauta, de Héctor Oesterheld (OESTERHELD, 2011OESTERHELD, Héctor G. O Eternauta. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), artista mais tarde sequestrado e desaparecido pela ditadura, em 1977, ano também da primeira edição do Banquete. Edgardo Cozarinsky associou a batalha de Invasión, seus motivos ocultos e gratuitos, com o que vemos em Na selva das cidades de Brecht ou em Dois vultos na paisagem (Figures in a Landscape) de Losey. Mais anda, quando questionado sobre o filme de Hugo Santiago, julgou-o “extraordinário por sua força visual. Às vezes é demasiado literário, principalmente nos diálogos, mas Santiago, junto com o fotógrafo Ricardo Aronovitch, conseguiu fazer um belo filme. Quanto ao roteiro, foi feito a partir das conversas entre Borges e Bioy, coisa que eles faziam quase todas as noites, depois do jantar” (DIAS, 1999DIAS, Maurício Santana. As relações oblíquas. São Paulo: Folha de S. Paulo, 1999.). Trocando em miúdos, o filme no qual o corpo de Paz encarna um pseudo-Macedonio e encena a distopia do nacional perante uma invasão alienígena nasceu de um simpósio ou banquete cotidiano entre Borges e Bioy, materializando, sem o saber, o anterior duelo de Janjão e Pastor Fido, no banquete de Mário de Andrade. Em suma, remontamos assim a arqueologia da rivalidade ou amphisbetesis ético-cultural na América Latina.

De leve

Em 1976, para redigir seu último seminário, Roland Barthes lança mão de uma série de vinte fichas de O Banquete de Platão, que conservava num envelope intitulado “Notre Littérature”. Muitas delas foram utilizadas, de fato, em “Reflexões sobre um manual” (1969) e num outro texto sobre a retórica para a revista Communications (BARTHES, 1970BARTHES, Roland. L’ancienne rhétorique. Communications, n. 16, 1970, p. 172-223., p. 172-223). Barthes detectava em Platão uma retórica erotizada perseguindo sempre a interlocução pessoal, a adhominatio. Preocupado com a institucionalização da literatura na França, debruçava-se então sobre a história literária nacional, nos anos 70, tal como Mário o fizera com a música brasileira nos anos 40. Nesse instante de perigo e completamente descrente de teleologias e evolucionismos, como Macedonio, só interessava a Barthes o contemporâneo do leitor, dilacerado entre o peso da tradição e a incerteza quanto ao futuro. Justamente em “Reflexões sobre um manual”, Barthes chamava essas recorrências que aqui apontamos, por exemplo, entre as ideias de Janjão/Pastor Fido ou Juan Carlos Paz/Ginastera, de monemas da língua metaliterária, isto é, da(s) história(s) da(s) literatura(s), que chegam a nós com passo leve e pedindo compaixão.

Apoiado no Banquete de Platão, escreve então Roland Barthes: “Sofrerei pois com o outro, mas sem exagerar, sem me perder. A esta conduta, ao mesmo tempo muito afetiva e muito vigiada, muito amorosa e muito policiada, podemos dar um nome: é a delicadeza: ela é como uma forma “sadia” (civilizada, artística) da compaixão. (Ate é a deusa do desvario, mas Platão fala da delicadeza de Ate: seu pé alado, toca levemente.)” (BARTHES, 1981BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 49., p. 49).

  • 2
    Janjão pertence à estirpe do próprio Sócrates de Platão, o Dioniso de Nietzsche, o Idiota de Cusa: personagens conceituais.
  • 3
    Em 1969, em “Platão e o simulacro”, um dos capítulos da Lógica do sentido, Deleuze explicita que a estética sofre uma duplicidade dilacerante. Ela nomeia, de um lado, a teoria da sensibilidade, como forma da experiência possível; e de outra, a teoria da arte como reflexão da experiência real. Para que ambos os sentidos se reúnam, é preciso que as condições gerais da experiência se tornem, elas mesmas, condições da experiência concreta. E a obra de arte surja então, definitivamente, como experimentação. Aparece então não só a ideia do simulacro mas a própria experiência do moderno como potencialização do simulacro.
  • 4
    O artista-boneco, “entregue às mãos das formas novas e futuras da vida, formas de que tenho a certeza, sem ter a convicção. Tudo está em ser boneco consciente de sua bonequice, o que também é uma paixão, é amor e desse amor se morre”. Cfr. STAROBINSKI, Jean - Portrait de l’artiste em saltinbanque. Genève, Albert Skira, 1970.
  • 5
    Não esqueçamos, além do mais, que um dos pseudônimos de Astrojildo Pereira, fundador do PCB, era Gildo Pastor.
  • 6
    “Programa do Theatro Municipal” (13 ago. 1938). Nesse programa de música de câmara sul-americana, Carlos Gomes é definido como o ser rapsódico macunaímico, o “Campineiro genial que foi buscar no Guarani dum Cearense que descrevia o vale do Paraíba, a pedra fundamental da música do Brasil”.
  • 7
    Cabe relembrar que Eisenstein inspira-se no Greco para a filmagem de Que viva México!.
  • 8
    Trata-se das sonatas em do menor de J. S. Bach (BWV 1017), em do maior, Nº 17, de W. A. Mozart (K 296) e em ré menor de J. Brahms (op. 108).
  • 9
    “Las dos canciones de La ópera de los cuatro centavos, de Kurt Weill, muestran otro aspecto de la aclimatación del jazz en Europa; pero partiendo de lo arcaico y logrando un feliz equilibrio entre ambos elementos. Se ha dicho que esta ópera es un jazz en último estado de descomposición; pero el hecho es que ella representa una voluntad constructiva frente a los productos del post-impresionismo. Es, en suma, algo efectivo en un período de titubeos, claudicaciones, experimentaciones y negaciones de todo género” (PAZ, 1939aPAZ, Juan Carlos. Crónica de la música, Conducta, n. 7, jul. 1939a.).
  • 10
    Ver Buch, 2007BUCH, Esteban. L’avant-garde musicale à Buenos Aires: Paz contra Ginastera. Circuit: Musiques Contemporaines, v. 17, n. 2, 2007, p. 11-33., p. 11-33.
  • 11
    “O prof. Curt Lange, antes de mais nada, é um crente das possibilidades musicais e outras, dos americanos. Isso o distingue muito de nós, brasileiros, que não temos não uma grande saúde moral nesse sentido. Nós descremos muito de nós mesmos, somos uns desleixados a respeito de intercâmbio musical. O prof. Curt Lange, ao contrário, se apresenta virilmente crente da América, compreende com ânimo sadio as nossas possibilidades, e a sua atuação já vai se fazendo sentir fortemente”. (ANDRADE, 1993ANDRADE, Mário de. Música e jornalismo. Diário de S. Paulo. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1993, p. 266., p. 266; TONI; CAROZZE, 2013TONI, Flávia Camargo; CAROZZE, Valquíria Maroti. Mário de Andrade, Francisco Curt Lange e Carleton Sprague Smith: as discotecas públicas, o conhecimento musical e a política cultural”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 57, dez. 2013, p. 181-204., p. 181-204; ARCANJO JÚNIOR, 2011ARCANJO JÚNIOR, Loque. Francisco Curt Lange e Mário de Andrade entre Americanismo e o Nacionalismo musicais (1932-1944). Temporalidades, v, 3, n. 1, jan-jul. 2011, p. 35-55.). O Acervo Curt Lange encontra-se atualmente na UFMG.
  • 12
    A série prossegue no nº 28, abr. 1945, p. 46-47; nº 29, maio 1945, p. 16-17; nº 30, jun. 1945, p. 65-66 e nº 31, jul. 1945, p. 65. Koellreutter ainda publicaria um outro texto sobre o assunto, “Arte funcional: a propósito de ‘O Banquete’ de Mário de Andrade”, numa revista comunista, Fundamentos, em fevereiro de 1948. Ver também seu diálogo com os concreto-abstracionsitas portenhos, em particular com Gyula Kosice, em “Carta Abierta de H. J. Koellreutter”. Arte Madi Universal, Buenos Aires, nº 4, out. 1950.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2021
  • Aceito
    02 Abr 2022
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