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História, direito, política, música e arte: onde o povo brasileiro?

Estamos num ano marcante. Além do triplo 22 – 1822, 1922 e 2022 –, eleições presidenciais cruciais. Assim como foi escrito no Editorial da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (RIEB) 81, frequentemente esta publicação recupera tempos passados, mas não como um tempo decorrido e inerte. Interrogamos materiais de épocas antigas para lembrar nossas raízes de desigualdade e violência e para pensar ações em busca de uma sociedade mais justa e solidária.

Assim, a discussão sobre o direito colonial está presente no dossiê “Fazer e desfazer história: a contribuição historiográfica de António Manuel Hespanha”, organizado por Monica Duarte Dantas e Samuel Barbosa, que analisa contribuições do português António Manuel Hespanha (1945-2019) para a história política e a história do direito. Podemos relembrar o discurso de posse como professor titular na Faculdade de Direito da USP de Fabio Konder Comparato, em 1976:

Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição ao descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas, como disse um historiador, uma ligeira ausência: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários — civis, religiosos e militares — que acompanharam o Governador Geral. Tivemos Estado antes de ter povo.

(COMPARATO, 1976COMPARATO, Fabio. Discurso de posse. Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: 1976. Editor, O. de A. (1976). A Faculdade de Direito recebe mais um titular. Revista da Faculdade de Direito, Universidade De São Paulo, 71, 313-340. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66785. Acesso em: dez. 2022.
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/artic...
, p. 331-332).

Comparato recorre a Alceu Amoroso Lima que, 50 anos antes, resumiu que

“[...] o Brasil se formara às avessas, começara pelo fim. Tivera Coroa antes de ter Povo. Tivera parlamentarismo antes de ter eleições. Tivera escolas superiores antes de ter alfabetismo. Tivera bancos antes de ter economias. Tivera salões antes de ter educação popular. Tivera artistas antes de ter arte. Tivera conceito exterior antes de ter consciência interna. Fizera empréstimos antes de ter riqueza consolidada. Aspirara a potência mundial antes de ter a paz e a força interior. Começara em quase tudo pelo fim. Fora uma obra de inversão, produto [...] de um longo oficialismo”. Debalde procura-se o povo, nos principais fatos de nossa História. Ele teima em permanecer ausente, privado de palavra.

(COMPARATO, 1976COMPARATO, Fabio. Discurso de posse. Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: 1976. Editor, O. de A. (1976). A Faculdade de Direito recebe mais um titular. Revista da Faculdade de Direito, Universidade De São Paulo, 71, 313-340. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66785. Acesso em: dez. 2022.
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/artic...
, p. 332).

O historiador e professor António Manuel Hespanha pesquisou sobre os usos do direito nas colônias portuguesas. Com ampla atividade de pesquisa em instituições de Portugal, passou a vir frequentemente ao Brasil desde meados dos anos 1990, participando de encontros científicos e bancas, ministrando cursos, pesquisando e publicando em colaboração com diversos estudiosos. O dossiê desta RIEB 83 recaiu sobre sua contribuição historiográfica. Foram convidados pesquisadores que trabalharam com o homenageado para refletirem sobre algum livro, texto ou temática cara ao autor. Não foi possível incluir a discussão da sua contribuição para a teoria do direito, campo de seu interesse na última década, quando publicou alguns livros que convidam à colaboração mais de perto entre história e teoria do direito.

Política, direito e relações coloniais são temas predominantes no dossiê. Maria Filomena Coelho escreve sobre a centralização do poder em Portugal; João Fragoso e Maria Fernanda Bicalho fazem uma releitura do “Brasil colonial” a partir da obra de António Manuel Hespanha; Gustavo César Machado Cabral trabalha com a presença de Manuel Hespanha na literatura jurídica portuguesa da Idade Moderna; Carmen Alveal e Marcos Arthur Viana da Fonseca discutem os usos do direito na América ultramarina portuguesa. Utilizam o artigo “Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro” e o livro Como os juristas viam o mundo, ambos de Manuel Hespanha. Nessa época, havia a coexistência de várias ordens jurídicas, inclusive com forte presença do direito canônico. Os autores apontam a existência de um direito local e o seu uso por instâncias locais em contraposição à concepção de um direito erudito, letrado, utilizado pelos oficiais régios, ao analisar processos judiciais da Comarca de Paranaguá e também nas capitanias do norte do Brasil, concluindo que havia uma espécie de direito “brasileiro” no período colonial.

Completam o dossiê os artigos de José Subtil sobre o espaço político e a organização do poder no Antigo Regime em Portugal; e de Arno Wehling, sobre Hespanha e uma crítica do liberalismo português. Nuno Camarinhas mostra o caráter inovador de António Hespanha na sua abertura para a utilização de tecnologias da informação e ferramentas digitais na pesquisa historiográfica e como instrumentos de divulgação do trabalho científico.

Na seção Artigos, temos dois textos: um relacionado à memória dos inícios do samba, outro sobre José Veríssimo como crítico do simbolismo.

Relacionar berços do samba à urbanização do Rio de Janeiro e de São Paulo ao posterior registro de memória produzido pelos Museus da Imagem e do Som das duas cidades, assinalando e discutindo a presença de intelectuais brancos nesse processo de captação de história oral, é o roteiro do artigo “Entre a praça e o largo: artistas e intelectuais na formação de dois ‘berços’ do samba”, que resulta de reflexões conjuntas do doutorado de Rafael do Nascimento Cesar e de pós-doutorado realizado pela autora Renata Monteiro Siqueira na University of Illinois. Em 1930, dois importantes planos urbanísticos começaram a implementar um novo sistema viário para estimular o desenvolvimento do Rio de Janeiro e de São Paulo. Localizada no bairro carioca da Cidade Nova, a Praça Onze deu lugar à construção da avenida Presidente Vargas no início dos anos 1940, principal conexão do bairro ao centro da cidade. Na mesma época, o prefeito de São Paulo, Prestes Maia, inaugurava o primeiro trecho do prolongamento da avenida Pacaembu, partindo da rua das Palmeiras até as imediações da antiga estação ferroviária da Barra Funda e dos armazéns da Companhia Sorocabana. Habitada pelos trabalhadores braçais da ferrovia por quase todo o século XX, essa área se tornaria conhecida pelo nome informal de “Largo da Banana” entre o fim dos anos 1940 e o início dos 1950. No auge do Estado Novo, o samba feito no Rio de Janeiro foi irradiado como símbolo de uma identidade nacional; havia uma concessão simbólica a certos aspectos à negritude. Mesmo assim, a Praça Onze não foi poupada pela urbanização, assim como o Largo da Banana em São Paulo. Nos anos 1960 a 1980 aconteceram importantes levantamentos acerca do passado e do presente da música popular. O artigo focaliza então a negociação a respeito dos “berços” do samba paulistano e carioca através das relações travadas entre artistas negros e intelectuais brancos vinculados às unidades do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ) e de São Paulo (MIS-SP).

Alvaro Santos Simões Junior, professor de Literatura Brasileira da Unesp de Assis, analisa em seu artigo “Veríssimo, crítico do simbolismo (1899-1901)” as resenhas produzidas por José Veríssimo, crítico literário do Jornal do Commercio e Correio da Manhã, ambos do Rio de Janeiro. O grande crítico paraense aproveitava para avaliar direta ou indiretamente a obra do poeta negro Cruz e Sousa enquanto resenhava obras de poesia simbolista publicadas por discípulos ou admiradores desse escritor. O autor cita a observação de João Alexandre Barbosa, professor de Teoria Literária da FFLCH/USP, no mais importante estudo sobre Veríssimo: “esse crítico via no simbolismo o mérito de contribuir para a superação dos esgotados ‘moldes parnasianos’, mas contava com sua incorporação à tradição local representada pelo romantismo”. Por “transposição de exigências realistas” à poesia, deplorava nos poemas simbolistas a ausência de uma “referencialidade explícita”. Em virtude dessa suposta deficiência, concluía que nesses textos as palavras nada significavam. O problema teria sido Veríssimo restringir-se a uma “análise unilateral do conteúdo”, inadequada para uma poesia que almejava a “ruptura com a linearidade discursiva”.

Na seção Criação, Fabrício Reiner de Andrade apresenta as obras de 11 artistas brasileiros contemporâneos que fizeram parte da mostra Watú não está morto!, apresentada no IEB/USP em 2022. Os artistas foram convidados a expressar, através de suas respectivas poéticas, as visões e angústias sobre o Brasil atual. A exposição, assim como o artigo, visa demonstrar, a partir da diversidade de posições, lugares de origem e afirmações de gênero não binário, como o Brasil está permanentemente em xeque por conta da violência, da injustiça social, do apagamento da memória coletiva, da destruição da natureza e do cerceamento da maioria do povo às riquezas tão prometidas pelos mandatários de todos os tempos.

Carolina Casarin reúne, na seção Documentação, fotos de Mário de Andrade com um robe de chambre por ele desenhado e traz considerações sobre os regimes de visibilidade dessas imagens. No Arquivo do IEB, o “Lote Mário de Andrade em casa” tem nove documentos fotográficos que retratam o autor de Pauliceia desvairada com o robe de chambre em casa, ora lendo, ora escrevendo ou tocando algum instrumento. Há um destaque para os objetos de cena; Mário está cercado de obras de arte, livros, objetos de estudo e trabalho, o que permite observações sobre o conceito de pose e a afirmação do lugar do intelectual. Na leitura do texto, por uma citação de depoimento de Gilda de Mello e Souza, filósofa, ensaísta e professora da USP, é possível inferir que o pai de Gilda era primo de Mário de Andrade e ela era sobrinha-neta da mãe de Mário.

A resenha de Mariana Diniz Mendes, que já pesquisa sobre a escrita de diários, focaliza o livro Diários, 1935-1936, que reúne textos escritos em cadernos de Eunice Penna Kehl, uma mulher culta, de classe média. São anotações sobre a vida familiar, social e a rotina doméstica, quando morava com o marido e os filhos no Rio de Janeiro. Há o trauma vivido por Eunice com a morte do primogênito, causada por uma septicemia, em outubro de 1935. A resenha mostra a prática do diário sob a perspectiva foucaultiana do exercício de si e a mudança acontecida após a morte do filho.

Esta edição de número 83 da RIEB vai dos primórdios coloniais do Brasil, passa por crítico de literatura do século XIX, traça relações entre urbanização e locais matrizes do samba no Rio de Janeiro e em São Paulo, descreve um livro de memórias de uma dona de casa carioca, fotografias domésticas de Mário de Andrade (de novo, ambiências de 1922) e chega às tecnologias digitais empregadas por um estudioso do direito colonial e à exposição Watú não está morto!, realizada no IEB em 2022, em ressonância com nossas violências ambientais e sociais. Cinco séculos de ausência de povo, com algumas brechas abertas pela ciência e pela arte.

  • BUITONI, Dulcilia Helena Schroeder; BAGOLIN, Luiz Armando; GARCIA, Walter. História, direito, política, música e arte: onde o povo brasileiro?. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p.13-17, dez. 2022.

Referência

  • COMPARATO, Fabio. Discurso de posse. Revista da Faculdade de Direito da USP São Paulo: 1976. Editor, O. de A. (1976). A Faculdade de Direito recebe mais um titular. Revista da Faculdade de Direito, Universidade De São Paulo, 71, 313-340. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66785 Acesso em: dez. 2022.
    » https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66785

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2022
  • Aceito
    01 Dez 2022
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