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Fazer e desfazer história: a contribuição historiográfica de António Manuel Hespanha

Doing and undoing history: António Manuel Hespanha’s historiographical contribution

RESUMO

Este dossiê discute as contribuições de António Manuel Hespanha (1945-2019) para a história política e a história do direito, bem como o seu pioneirismo no campo das humanidades digitais.

PALAVRAS-CHAVE
Historiografia; fontes; humanidades digitais

ABSTRACT

This dossier discusses the historiographical contributions of António Manuel Hespanha (1945-2019) for political history and history of law, as well as his pioneering work in the field of digital humanities.

KEYWORDS
Historiography; sources; digital humanities

António Manuel Hespanha (1945-2019) foi um dos mais destacados historiadores da sua geração. Pesquisador incansável, Hespanha escreveu vasta produção – livros, capítulos, artigos –, que abriu novos caminhos para a pesquisa sobre a história institucional, política e do direito, refletindo sobre relações de poder e imaginários nos vários espaços de colonização portuguesa. Traduziu e organizou obras de referência, editou coletâneas, fundou periódicos, produziu bases de dados, promoveu iniciativas de digitalização de acervos. Esteve à frente de importantes iniciativas e instituições de ensino e pesquisa em Portugal. Formou ali um grupo destacado de historiadoras e historiadores. Desde meados dos anos 1990, passou a vir frequentemente ao Brasil, participando de encontros científicos e bancas, ministrando cursos, pesquisando e publicando em colaboração com diversos estudiosos.

Este dossiê não presta a primeira nem a última homenagem possível para uma figura tão ubíqua e seminal3 3 A ele dedicamos livro por nós organizado (DANTAS; BARBOSA, 2021). . Foi necessário fazer um recorte para explorar algumas searas em sua vasta produção. A escolha do dossiê recaiu sobre a contribuição historiográfica de António Manuel Hespanha. Foram convidados pesquisadores que trabalharam com o homenageado para refletirem sobre algum livro, texto ou temática cara ao autor. Não foi possível incluir a discussão da sua contribuição para a teoria do direito, campo de seu interesse na última década, quando publicou alguns livros que convidam à colaboração mais de perto entre história e teoria do direito4 4 Especialmente, Hespanha (2016). Vide ainda trabalho anterior (Hespanha, 2007). .

O conjunto abre com a contribuição da medievalista Maria Filomena Coelho, que discute, em “A centralização do poder em Portugal: ‘uma tragédia ou epopeia que começou cedo’”, os ganhos analíticos da contribuição de Hespanha para fazer a crítica da tese da “centralização precoce” do poder monárquico no reino de Portugal entre os séculos XII e XIV. Embora formulada para a época moderna, a crítica à existência de um Leviatã, metáfora da centralização do poder, que governa de forma monopolista, serviu à historiadora para reavaliar as tipologias e evidências documentais do período medieval. Coelho se inspira no trabalho de Hespanha para extrair algumas teses: o rei como cabeça do corpo político repensado nos quadros da monarquia corporativa; a revisão do significado das guerras a fim de ressaltar o problema da legitimidade que opunha o rei e as facções nobiliárquicas; a não abrangência das leis em todo o território; a atuação dos oficiais régios na lógica da mercê.

As pesquisas de Hespanha para a época moderna receberam uma especial atenção da historiografia brasileira e provocaram um fecundo debate entre nós. João Fragoso e Maria Fernanda Bicalho ressaltam a mudança paradigmática provocada por sua obra para a compreensão da sociedade, política, economia e direito da monarquia portuguesa no centro e no ultramar. O artigo “Uma releitura do ‘Brasil-Colonial’ a partir da obra de António Manuel Hespanha” retoma novas noções que tiveram um indiscutível impacto na historiografia brasileira, resultando na perda de cogência do conceito epocal de “Brasil-Colonial”. Os autores ressaltam a importância e a fecundidade de conceitos como sociedade corporativa e monarquia polissinodal, economia do bem comum e economia política dos privilégios, pluralismo jurídico e centralidade de regras particulares (costumes, estilos e privilégios) com força derrogatória de normas gerais. Em uma visada para possíveis desdobramentos da pesquisa, o artigo também revisa e aprofunda os conceitos de graça e mercê para destacar o papel do sistema de representações cristãs e dos esquemas de justiça distributiva na compreensão do bem comum e dos laços sociais do Antigo Regime nos Trópicos.

O uso da literatura jurídica letrada da época moderna foi valorizado por Hespanha ao longo do seu trabalho historiográfico. Ele mostrou que se tratava de uma fonte relevante em dois sentidos principais, como fonte historiográfica para a reconstrução das categorias e esquemas práticos dos juristas e como fonte do direito propriamente dita, ou seja, como saber normativo articulado com o funcionamento dos poderes. Uma consequência da crítica ao “paradigma estadualista”, uma obsessão de Hespanha desde os primeiros trabalhos, era o de escapar dos enviesamentos da história do direito como história da legislação. Gustavo César Machado Cabral, que prossegue esse filão aberto por Hespanha em suas pesquisas, discute, em “Ampliando as fontes: António Manuel Hespanha e a literatura jurídica portuguesa da Idade Moderna”, como a literatura jurídica foi empregada em diferentes momentos da produção do historiador português.

Outra fronteira aberta por Hespanha foi o estudo do pluralismo jurídico nos espaços ultramarinos. A contribuição de Carmen Alveal e Marcos Arthur Viana da Fonseca, “Os usos do direito na América ultramarina portuguesa: entre o pragmatismo dos rústicos e a argumentação refinada dos letrados”, incursiona no estudo da pragmática (usos) do direito na América portuguesa a partir de processos judiciais sobre questões fundiárias em Curitiba e dos ofícios da Coroa nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil. É um estudo de localização do direito, revelando a interação de ordens normativas diferentes (doutrinárias, legislativas e costumeiras), que traz subsídios para sustentar a tese de Hespanha de um direito colonial.

No artigo “Espaço político e organização do poder no Antigo Regime em Portugal”, José Subtil, colaborador próximo de Hespanha na História de Portugal (SUBTIL, 1998SUBTIL, José. Os poderes do centro. In: História de Portugal. Direção de José Mattoso. v. IV – O Antigo Regime. Coordenação de António Manuel Hespanha. Lisboa: Editorial Estampa/Círculo de Leitores, 1998, p. 141-173.), aborda a mudança da organização dos poderes na passagem da sociedade de corte para o Estado de Polícia. A produção do espaço político, apoiada em dispositivos de regulações e representações, conhece dois tempos fortes sucessivos, entre 1640 e 1807, o espaço político da corte e o espaço político do Estado, o que vai de encontro à mitificação da construção precoce do Estado no Antigo Regime. O terremoto de Lisboa (1755) e as reformas de Pombal repercutem igualmente na reconfiguração dos poderes periféricos e na desconstrução das autonomias jurisdicionais, moldando o curso posterior do liberalismo em Portugal.

A contribuição de Hespanha para a história do liberalismo, especialmente o português, foi esmiuçada por Arno Wehling em “Hespanha e uma crítica do liberalismo português”. Ao invés do valor de face das grandes teorias do liberalismo, Hespanha valoriza os imaginários sociais em sua diversidade e sua articulação com os modos de governar no Oitocentos. Novos objetos ganham relevância para a descrição concreta e contextual do funcionamento dos poderes, como as carreiras administrativas, as fórmulas processuais e documentais, as rotinas e ritos institucionais. O que sobressai é uma história complexa e matizada do liberalismo, ao invés de uma concepção de ruptura e introdução ex nihilo de uma nova e original concepção da política. O liberalismo continua e modifica os imaginários e regimes de governo anteriores.

O texto “António Hespanha e as vésperas das humanidades digitais”, de Nuno Camarinhas, registra outra faceta de Hespanha, também mencionada no artigo de Gustavo Cabral, seu pioneirismo no que vem sendo chamado atualmente de humanidades digitais. Desde o doutorado que trazia impressa uma solução de visualização espacial de dados geográficos, e depois ao longo de sua trajetória, Hespanha usou e promoveu a criação de softwares para a produção de bases de dados, digitalização e disponibilização on-line de acervos, apresentação e produção de conhecimento historiográfico a partir dos novos recursos informáticos.

O dossiê evidencia a abrangência de temas, interesses e períodos da produção de Hespanha. O título da revista que fundou e dirigiu, Penélope – Fazer e Desfazer a História (1988-2007), cabe como emblema da sua rica trajetória: fez muita história, alterando nossa compreensão do passado e do presente, e desfez na historiografia muitos enviesamentos, para usar uma palavra de sua predileção.

Avesso às solenidades, curioso, experimental, incansável, acessível a quem o procurasse, sempre destilando humor, António Manuel Hespanha era, além de notável professor e pesquisador, também figura humana singular que faz falta.

  • 3
    A ele dedicamos livro por nós organizado (DANTAS; BARBOSA, 2021DANTAS, Monica Duarte; BARBOSA, Samuel (Org.). Constituição de poderes, constituição de sujeitos: caminhos da história do direito no Brasil (1750-1930). São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2021. (Cadernos do IEB, v. 14).).
  • 4
    Especialmente, Hespanha (2016)HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático. Lisboa: Almedina Brasil, 2016.. Vide ainda trabalho anterior (Hespanha, 2007HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e justiça nos dias e no mundo de hoje. Lisboa: Almedina, 2007.).
  • DANTAS, Monica Duarte; BARBOSA, Samuel. Fazer e desfazer história: a contribuição historiográfica de Antônio Manuel Hespanha. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 19-23, dez. 2022.

Referência

  • DANTAS, Monica Duarte; BARBOSA, Samuel (Org.). Constituição de poderes, constituição de sujeitos: caminhos da história do direito no Brasil (1750-1930). São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 2021. (Cadernos do IEB, v. 14).
  • HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e justiça nos dias e no mundo de hoje. Lisboa: Almedina, 2007.
  • HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático Lisboa: Almedina Brasil, 2016.
  • SUBTIL, José. Os poderes do centro. In: História de Portugal Direção de José Mattoso. v. IV – O Antigo Regime Coordenação de António Manuel Hespanha. Lisboa: Editorial Estampa/Círculo de Leitores, 1998, p. 141-173.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2022
  • Aceito
    16 Nov 2022
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