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A centralização do poder em Portugal: “uma tragédia ou epopeia que começou cedo”

The centralization of power in Portugal: “a tragedy or epic that began early”

RESUMO

As abordagens propostas por António Manuel Hespanha relativamente ao exercício do poder em Portugal, no período do chamado Antigo Regime, tiveram forte impacto historiográfico, com instigantes desdobramentos que se podem apreciar até hoje na produção intelectual dedicada à Idade Moderna e aos estudos coloniais. A maneira inovadora como ele propôs a mudança de perspectiva, de uma tradição interpretativa de tipo centralista, para outra, de cunho pluralista, propiciou resultados muito mais operativos para se conhecer a complexidade das estruturas e lógicas do poder. Entretanto, tal proposta não teve a mesma repercussão entre os medievalistas, que continuam a preferir a matriz centralista como forma do passado.

PALAVRAS-CHAVE
António Hespanha; centralização política; pluralismo jurídico

ABSTRACT

The approach taken by António Manuel Hespanha regarding the exercise of political power in Ancien Regime Portugal had a considerable impact on historiography, with intriguing developments which can still be observed and appreciated by its outstanding contribution to studies of Modern and Brazilian Colonial History. The ground-breaking way of his pluralistic view of political power, instead of a monolithic tradition founded on a centralistic-type, provided for more effective research on the nature of complex structures of power. Nonetheless, his innovative approach failed to have the same influence upon medievalists, who stick by the traditional perspective as the adequate type for knowing the political past in the Middle Ages.

KEYWORDS
António Hespanha; political centralization; juridical pluralism

Há quase 35 anos, António Manuel Hespanha defendeu uma tese que renovou profundamente a historiografia sobre as instituições e a política do Antigo Regime português. O acerto dos argumentos – fortemente documentados – acabou por projetar a tese além das fronteiras de Portugal, convertendo seu autor em importante referência intelectual no campo da história e do direito. Publicada em livro, na Espanha, em 1989, sob o sugestivo título As vésperas do Leviathan: instituições e poder político (Portugal – séc. XVII), contou com um prefácio que, logo nas primeiras linhas, esclarece o teor do desafio:

O objetivo deste livro é recolocar de novo – aspira o autor que também em termos novos... – a questão do advento em Portugal desse sistema de poder a que é costume chamar o “Estado moderno”. Ou, ditas as coisas mais chãmente, voltar àquilo que a nossa historiografia tem designado, pelo menos desde os inícios do século passado, como a questão da “centralização do poder”. [...] Tema propenso a juízos rápidos, a frases feitas e a acordos fáceis. [...] Este é um terreno de santas e variadas alianças. Desde os tradicionalistas – a chorar o fim das liberdades corporativas e concelhias – até os jacobinos – exaltando a epopeia da des-feudalização –, passando pelos que saúdam a obra de construção do Estado, quase todos estão de acordo em que a tragédia ou epopeia começou cedo entre nós.

(HESPANHA, 1994HESPANHA, António. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994., p. 9 – grifos nossos).

Essa dramática intercorrência – tragédia ou epopeia –, que dá forma à questão da “centralização do poder”, tem sido abordada de maneira profícua por estudiosos do poder na Idade Moderna, mas continua a ser amplamente ignorada pelos que se dedicam à Idade Média portuguesa. Nesse caso, e homenageando o espírito crítico de nosso saudoso autor, diria que, se a epopeia é política, a tragédia é historiográfica.

Inspirada pela obra de António Hespanha, venho me dedicando há algum tempo a estudar o poder e as instituições medievais na Península Ibérica e, mais recentemente, circunscrevi o objeto de pesquisa ao reino de Portugal entre os séculos XII e XIV. Tal reorientação deveu-se, sobretudo, à força que a historiografia portuguesa atribui à “centralização precoce” do poder monárquico, funcionando como motor para explicar praticamente tudo o que ocorre naquela época e que, relativamente ao presente, ajuda a alimentar a imagem saudosista de um Portugal outrora com papel vanguardista na construção da Europa. Esse modelo explicativo desafiou-me a encarar o problema na tentativa de contribuir para, pelo menos, matizar alguns dos principais argumentos dessa corrente, cujas lógicas dificultam o conhecimento do passado, na medida em que transformam a história em reflexo anacrônico do presente.

A existência do Estado na Idade Média é ainda uma questão polêmica que, no caso do reino de Portugal, adquire especial interesse historiográfico. A maneira como a identificação de estruturas de poder, caracterizadas como públicas, ganhou destaque nos trabalhos de renomados especialistas, ajudou a dar corpo à tendência de valorizar positivamente esses aspectos, que, indissociáveis da história da nação, foram alçados à categoria de meta-história. Portanto, apesar de se alegar frequentemente a superação de velhas tendências nacionalistas da escrita da história de Portugal, nota-se que, relativamente ao medievo, tais lógicas foram travestidas de “precocidade” na formulação e exercício do poder público, graças a uma suposta capacidade de centralização/monopolização do poder por parte dos monarcas, que teria colocado Portugal como precursor na história da formação dos estados nacionais. O modelo de poder público escolhido pelos historiadores adeptos dessa interpretação espelha-se em um futuro que “ainda” não se cumprira, nos primeiros séculos da nação, mas que, pela força da teleologia, “já” sinalizava a sua gestação. A narrativa assume tons de destino, apesar dos desvios e recuos impostos pelas trajetórias de muitos dos atores históricos que não se teriam mostrado à altura daquela finalidade. Nesse cenário, o progresso da história é traduzido pelo Estado encarnado exclusivamente na monarquia, e os modos como se vão construindo essas interpretações são os do nacionalismo metódico do século XIX.

Em termos historiográficos, sobre as manifestações do poder público no reino de Portugal em épocas medievais, pode-se dizer que o modelo adotado como medida de sua adequação e eficácia é originário de nossa contemporaneidade. Por aplicação de tal anacronismo à realidade histórica de cada reinado português conclui-se que aquele tipo de Estado ou se formou ou, após ganhar forma, se frustrou devido a “condições medievais” particularmente impeditivas.

O leque das evidências da centralização política “precoce” apresentado pelos medievalistas portugueses é amplo, apoiado em farta documentação. O modelo de Estado considerado legítimo é aquele que possibilita dominar a sociedade graças ao monopólio da força, à crescente capacidade de controlar a emissão de leis, à resolução de conflitos por meio dos tribunais de justiça régia, à exação fiscal e, concomitantemente, à criação de um corpo burocrático régio para dar realidade a essas dimensões. Assim, serão precisamente esses os conteúdos recortados pelos historiadores de uma massa documental bastante generosa para comprovar a centralização precoce do poder político em Portugal, “já” na Idade Média.

Foi essa imagem triunfalista do Estado que, em meados dos anos 1980, levou António Hespanha a tentar observar, nos vestígios históricos dos arquivos, a maneira pela qual a epopeia se tinha realizado no tempo e no espaço. Centrou seu recorte de pesquisa no século XVII, em Portugal. Suas descobertas foram desconcertantes, com repercussões historiográficas dramáticas, porque abalavam modelos explicativos consolidados nos quais se apoiava o prestígio da nação, e de boa parte da intelectualidade portuguesa. Eis os achados, que seriam devidamente reafirmados por ele, pouco antes de seu falecimento, em 2019:

A historiografia mais corrente tem difundido a imagem de que o sistema político da época moderna se caracterizou, também em Portugal, por uma crescente centralização e monopolização do poder pelo rei, logo a partir dos finais do séc. XV. Costumava-se apoiar esta visão com argumentos como os da decadência das cortes, da curialização da nobreza, da criação dos juízes de fora e consequente enfraquecimento da autonomia municipal, do enriquecimento da coroa com a empresa dos descobrimentos.

Alguns destes argumentos são muito pouco rigorosos, tendo bastante de mítico.

Os juízes de fora, ainda que fossem esses instrumentos do poder real de que tanto se fala, só existiam, até finais do séc. XVIII, em cerca de 20% dos concelhos. Um livro meu, já com bastantes anos, provou isso abundantemente. E, mesmo nos finais do séc. XVIII, existia um grande apego dos concelhos às suas autonomias jurisdicionais, embora isso já conviva com um projeto da coroa de reordenar o espaço político, numa perspectiva geométrica e centralizadora. [...]

Embora os poderes dos senhores portugueses não fossem tão extensos e incontrolados como no resto da Europa, ou mesmo em Espanha, cerca de 2/3 dos concelhos do reino pertenciam a senhores, que aí administravam a justiça, dando porém obrigatoriamente recurso para os tribunais reais de segunda instância. E, em cerca de 1/3 dos casos, estes senhores das terras podiam mesmo impedir a entrada dos magistrados régios (corregedores) a cargo de quem estava a supervisão do governo local. [...]

Depois, se quisermos avaliar da importância relativa do poder real, temos que pôr a questão da eficácia da máquina administrativa da coroa e, mesmo antes, dos meios de conhecer o reino.

[...] Dos cerca de 1.700 oficiais que a coroa tinha ao seu serviço em meados do séc. XVII, uns 500 estavam na corte. No resto do país, apenas 10% das estruturas administrativas pertenciam à coroa, o que quer dizer que, para cerca de 12.000 funcionários concelhios, senhoriais e de outras entidades (excluídos, em todo caso, os oficiais eclesiásticos), havia 1.200 da coroa.

(HESPANHA, 2019HESPANHA, António. Uma monarquia tradicional: imagens e mecanismos da política no Portugal seiscentista. Versão Kindle. Lisboa: Ed. de autor, 2019.).

Tais conclusões estavam bem documentadas em As vésperas do Leviathan, transformadas em gráficos, tabelas, mapas, que projetavam claramente as realidades do poder régio em Portugal na Idade Moderna. Diante do significado desses dados, impunham-se algumas perguntas retroativas à Idade Média. Configurar-se-ia situação similar? Seria o poder régio ainda menos centralizado do que encontrara Hespanha para o século XVII? Ou, como alguns medievalistas chegaram a argumentar, a situação da monarquia de meados da Idade Moderna revelava um cenário de crise da instituição, bastante diferente do que se conhecia para o medievo? O fato é que a historiografia medievalista portuguesa não dispunha – e, em boa medida, segue sem dispor – de dados concretos que permitissem dar realidade às afirmações grandiloquentes sobre a famosa “centralização precoce do poder político” em Portugal.

Monopólio da força “consequente ao esforço guerreiro da reconquista”

O “monopólio da força legítima” configura um dos argumentos centrais da Teoria do Estado, cujas condicionantes históricas contemporâneas são muitas vezes esquecidas pelos medievalistas. O “caráter guerreiro” da sociedade medieval somado às circunstâncias da conquista de território aos muçulmanos fornecem os elementos para que, facilmente, se transporte o conceito no tempo. Apesar da crítica à classificação de “reconquista”, durante muito tempo adotada de maneira unânime pela historiografia no que se refere aos avanços cristãos sobre Al-Andalus, é essa a lógica que continua a presidir boa parte das interpretações, reforçadas pela liderança militar dos monarcas, documentada até na pintura e na escultura. A imagem propagada, na própria época, e realçada ao longo do tempo pelos processos de monumentalização de determinados monarcas, é a do guerreiro que galvaniza a força justa – legítima – para sanar, naquela perspectiva, uma injustiça/violência: a invasão e posse de territórios cristãos por “infiéis”. A eventual adoção (histórica e/ou historiográfica) do termo “cruzada” para designar essas ações de força torna a lógica explicativa ainda mais sedutora. Não só a legitimidade do rei para conceber, organizar e executar tais iniciativas é evidente, como ela tem, muitas vezes, aparência monopolista. Para a Península Ibérica, as bulas papais concedem a um rei específico o privilégio de cruzada, o qual passa a ter o direito de liderá-la como chefe guerreiro supremo, a cujo comando respondiam os vários níveis hierárquicos de seus exércitos. Além da força cruzadística, porém, há outros registros nas fontes – ainda mais numerosos – que, pela forma como são interpretados, induzem também à ideia da legitimidade do monopólio régio da força. Por exemplo, as guerras frequentes entre reis cristãos, apresentadas histórica e historiograficamente como conflitos entre reinos, ou então os enfrentamentos que opuseram reis e grupos aristocráticos (laicos e/ou eclesiásticos), no plano interno do reino, são casos que requerem maior análise. O primeiro ponto a destacar é a tipologia documental que fornece os relatos históricos e na qual se apoia a interpretação dos historiadores. No caso de Portugal, trata-se basicamente de crônicas régias. Essas fontes são ricas em informações e mostram-se particularmente interessantes para entender como atores políticos, em épocas específicas, e para fazer frente a determinadas circunstâncias, produziam narrativas com o objetivo de oferecer uma versão adequada/legítima/verdadeira dos acontecimentos considerados por eles importantes. Uma agenda política transformada em memória. Tais narrativas, por meio da modelação do acontecido, reforçam a arquitetura política da sociedade sobre a qual o monarca “tem o dever” de reinar. É natural, portanto, que uma crônica régia, encomendada para fortalecer a posição política de um rei e/ou de uma dinastia, assente suas estratégias narrativas em alguns pilares, entre os quais a legitimidade adquire papel fundamental. A fusão entre rei e reino é uma operação retórica essencial à eficácia política da narrativa, própria da lógica corporativa/funcionalista que sustentava aquele modelo. O vigor da crônica manifesta-se em um relato que fala, por exemplo, da guerra do reino de Portugal contra o de Leão e Castela, entremeado de menções específicas ao rei-guerreiro, mas de maneira fusional e intercambiável. Em tal perspectiva, a nobreza guerreira não está ausente, mas suas façanhas são subsidiárias da função régia no campo de batalha. Ela responde ao chamado do chefe, cumpre o serviço militar devido ao senhor. Nessa lógica, o rei legitima o exercício da força bélica dos guerreiros; ele é o centro do qual irradia o uso legítimo da força.

A simbiose entre rei e reino opera-se igualmente graças a outra importante ideia: o bem comum. Rei, reino, bem comum formam uma espécie de trindade política essencial à percepção da legitimidade do poder monárquico. Assim, se a liga fusional apresenta fissuras, configura-se a ilegitimidade do rei. Por óbvio, tal infortúnio não afeta o patrocinador da crônica, mas os rivais que povoam o relato e que, no papel de antagonistas, ressaltam a virtude do monarca. As ações bélicas narradas são apenas de dois tipos: legítimas ou ilegítimas. As primeiras baseiam-se na justiça, orientadas, portanto, para a realização do bem comum do reino. As segundas, ilegítimas, servem a interesses privados, originam-se da soberba dos poderosos, corrompem o bem comum e o reino. A tipologia das crônicas pressupõe esse caráter dicotômico, cuja eficácia retórica foi amplamente provada. Funcionava positivamente como duplo movimento: a reafirmação do modelo e a promoção de personagens e grupos no cenário político.

O monarca, como cabeça do corpo político, assume papel de superioridade na configuração e distribuição do poder, o que não significa que ele pudesse governar de forma monopolista. Na Idade Média, tendências desse tipo são identificadas com a tirania, um dos pecados mortais atinentes ao exercício do poder. O monopólio régio sobre qualquer fonte de poder e riqueza evidencia a separação entre o rei, o reino, e o bem comum. As crônicas apresentam numerosos exemplos de maus reis/senhores, que nos termos dessas narrativas modelares são condenados por não honrarem devidamente a nobreza e a igreja, por não “darem a cada um o que lhe é devido”. O papel da cabeça política no modelo corporativo é o de distribuir justiça. Bom rei é bom juiz.

Ressaltar tais aspectos é essencial, na medida em que as crônicas mostram vastos exemplos positivos de monarcas que exercem funções militares com superioridade relativamente aos demais personagens importantes do reino, mas sem que tal posição assuma características de dominação ou de autoridade (no sentido weberiano de Herrschaft de tipo carismático) a ponto de ser incontestável, portanto, de caráter absolutista. O jogo retórico que se opera entre rei e reino no âmbito militar incorpora a nobreza guerreira a essa relação simbiótica, e as narrativas não escondem o protagonismo que essa classe adquire para a glória do reinado. Tal como já referimos com respeito ao rei, é também possível que suas ações sejam classificadas negativamente, recorrendo às mesmas lógicas antagonistas, que ressaltam o prejuízo ao bem comum do reino.

Uma das classificações problemáticas oriunda das fontes, e aproveitada pela historiografia para adensar os argumentos que sustentam a identificação do monopólio da força exercido pela monarquia, é a de “guerra civil”. Ainda que a expressão seja muito mais própria da historiografia, é verdade que as crônicas, refletindo a concepção da época, podem classificar as disputas armadas entre facções nobiliárquicas como tal. Entretanto, é preciso entender o que a expressão significava naquela época. A sociedade civil é a sociedade política2 2 “[...] analizar el concepto no implica centrarse exclusivamente en una palabra, pues el sentido de lo político lo trasmitían otras palabras, como el término civil: civil y político son sinónimos en la época medieval [...]” (CARRASCO MANCHADO, 2017, p. 265). , mas, diferentemente de nossa contemporaneidade, ela não engloba todos os naturais do reino, referindo-se apenas a uma elite aristocrática/oligárquica. Trata-se de um modelo elitista que exclui da participação direta na sociedade civil a maior parte dos súditos. Ainda que todos os cristãos façam parte da comunidade política, como cristandade, a lógica corporativa submete a representatividade dos membros inferiores do corpo aos laços de dependência que os atam aos superiores. São estes que têm o direito de participar das instâncias políticas, nas quais representam, por meio de sua voz, a todos que lhes estão vinculados. Assim, quando um enfrentamento entre bandos aristocráticos é classificado como guerra civil, o conflito bélico é adjetivado pela dimensão política superior de seus líderes. Em outro aspecto, salienta o anacronismo da interpretação historiográfica, quando “guerra civil” surge nas crônicas para classificar embates entre nobreza e realeza. Uma vez mais, a tipologia documental deve ser fator de reflexão. O cronista, ao dar protagonismo ao rei, coloca-o como aquele que enfrenta ou é enfrentado. Aos leitores, informa-se, por exemplo, que uma “guerra civil” desestabilizou e/ou destronou determinado monarca. Mas essa “guerra civil” não corresponde ao seu conceito político clássico ou moderno, pois julga os fatos segundo a virtude ou o vício do monarca contra o qual a “elite civil” se levantou. A guerra civil aqui é intestina à administração do poder pelas elites.

Na perspectiva contemporânea, a guerra civil opõe poder contra poder e divide o Estado. A guerra civil configura um cenário de caos, espécie de Behemoth hobbesiano, do qual está ausente o único poder legítimo capaz de pôr fim à anarquia e restabelecer a ordem. Por outro lado, a guerra civil pode configurar a manifestação agônica libertária de resistência contra o Estado opressor. Mas nos discursos o Estado se apresenta como a última instância do poder. Já na descrição das crônicas régias há conotações distintas. A parte da elite civil, levantada em armas contra um monarca acusado de ser tirano ou inútil, afirma ter por objetivo o restabelecimento da ordem. Ela não se insurge contra o regime de poder do Estado. Todo o contrário! Justamente por se considerar integrante do poder público e com a função de proteger o bem comum, ou seja, como parte constitutiva do Estado, ela entende ter a obrigação legítima de levar a cabo uma “guerra civil” para destituir um poder ilegítimo. De forma similar, os enfrentamentos armados entre facções nobiliárquicas, eventualmente classificados como “guerra civil” pelos cronistas, requerem um trabalho de contextualização política para que se percebam as estratégias retóricas adotadas na construção de um xadrez verbal que precisa incorporar o protagonista régio às disputas pelo poder. Sem esquecer que, muitas vezes, o próprio monarca integra uma das facções, ainda que apenas como simpatizante.

Até aqui, assinalamos vários aspectos importantes e merecedores de maior reflexão por parte daqueles que se dedicam a estudar o caráter do poder monárquico no medievo português, questionando a forte tendência historiográfica de identificá-lo como obedecendo ao paradigma do absolutismo régio. E não deixa de ser interessante notar que, na impossibilidade de comprová-lo documentalmente, é comum que, sem abandonar o paradigma, se acabe por avaliar negativamente a prestação política desses monarcas. De forma global, a Primeira Dinastia apresentaria uma “performance” de qualidade política inferior à Segunda Dinastia, ainda que se admitam alguns lampejos “promissores” em alguns reinados, como nos de Afonso II e de Afonso III e, com mais desenvoltura, no de D. Dinis, que “fez tudo quanto quis”! A explicação ganha ritmo ascendente e evolucionista – com avanços e recuos –, embora a Dinastia Afonsina acabe etiquetada por José Mattoso – importante referência historiográfica – como época da “monarquia feudal”, como infância da nação. Em seu famoso volume da história de Portugal, assim acautela: “convém, antes de examinarmos o funcionamento da monarquia portuguesa em si mesma, advertir que se trata de uma monarquia ‘feudal’, isto é, de um poder régio que não distingue claramente o público e o privado” (MATTOSO, 1993MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1993., p. 269); e, mais adiante: “a monarquia portuguesa tem um carácter feudal até Afonso III, apesar das inovações de Afonso II, não admira que antes de c. 1250 não exista propriamente aquilo a que chamamos de ‘governo central’ do País, mas uma corte constituída por vassalos do séquito real [...]” (MATTOSO, 1993MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1993., p. 275).

O recurso ao léxico feudal para falar da monarquia em seus primórdios rendeu-lhe alguns dissabores entre os pares, pois introduzia um fator perturbador à velha certeza de que Portugal não tinha conhecido o feudalismo, apenas um regime senhorial, devidamente domesticado pela monarquia desde muito cedo. Nas palavras de António Hespanha (1994, p. 35 – grifos nossos), concebia-se a “imagem de uma centralização precoce, preparada pela inexistência de feudalismo e pelo fortalecimento do poder real consequente ao esforço guerreiro da reconquista”. Mas, na verdade, José Mattoso não pretendia dinamitar completamente a “centralização precoce”, apenas atrasá-la. Seus argumentos tratam de evidenciar o quanto os primeiros reinados têm dificuldade em monopolizar o poder frente a forças centrífugas que desafiam permanentemente os reis e, também, frente às limitações dos próprios monarcas e dos seus representantes para agirem de maneira coerente com “o projeto”. Mattoso, portanto, não abandona a medida do Estado: aplica-a de forma muito mais rigorosa. Para ele, Estado digno do nome é aquele que surgirá mais adiante: “Em 1484 o Regnum de D. Dinis é um ‘Estado Moderno’, organizativamente complexo e seguramente centralizado” (MATTOSO, 1993MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1993., 546).

Lei e burocracia régia: “um conjunto de sistemas comunicativos relacionados”

Em termos historiográficos, o panorama da centralização teria começado a se desenhar com mais nitidez com Afonso II. Embora se admita que o rei “deixou a dever” no quesito das armas – provavelmente por questões de saúde física –, celebram-se com largueza seus feitos jurídicos e administrativos. Nas palavras de uma estudiosa, tais iniciativas permitem identificá-lo como “vanguarda das monarquias centralizadas da Europa de Duzentos” (VELOSO, 1988VELOSO, Maria Teresa. D. Afonso II: relações de Portugal com a Santa Sé durante o seu reinado. Tese (Doutorado). Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 1988. 2 v., p. 100). Seria esse, verdadeiramente, o reinado charneira da “epopeia”, com três feitos heroicos: a promulgação de leis com caráter geral, que teriam alcançado todo o reino; a submissão dos privilégios aristocráticos à confirmação régia; a realização de inquirições gerais com o objetivo de averiguar os abusos que prejudicavam o poder da Coroa. Trata-se das Leis Gerais de 1211, das Confirmações Gerais de 1218 e das Inquirições Gerais de 1220.

Apesar de não ser possível traduzir em dados concretos e seriais o que cada um desses monumentos jurídicos e historiográficos significou na época da sua realização, dadas as características da pouca documentação remanescente, ainda assim, é possível fazermos algumas perguntas de teor qualitativo, inspiradas pelas conclusões a que chegou António Hespanha sobre matérias similares atinentes ao exercício do poder régio, no século XVII. Assim, ao invés de interpretar tais iniciativas jurídicas à luz das expectativas do Estado contemporâneo, é possível considerá-las de acordo com lógicas próprias da época e com especial atenção ao cenário político em que ocorreram. Dessa forma, os resultados mostram-se muito mais operativos para conhecer o passado, à medida, por exemplo, que resolvem um problema constante daquelas explicações historiográficas repletas de atestações negativas – até mesmo em tom de frustração – relativamente ao desempenho político errático e incompetente dos monarcas medievais. Nem mesmo os “bons reis” escapam à crítica, uma vez que quase todos, apesar de patrocinarem boas iniciativas, acabariam vencidos pelo “espírito medieval” da época.

No que se refere às três iniciativas referidas do reinado de Afonso II, é possível, de modo diverso, analisá-las em seu contexto histórico. Entretanto, também sobre esse aspecto é necessário fazer uma reflexão crítica. Não se trata de adotar o contexto histórico canonizado pela historiografia, definido à partida como quadro político de um tempo em que a monarquia portuguesa começaria a ensaiar um comportamento com vistas à centralização. Dessa forma, acaba-se por “avaliar” as informações contidas na documentação à luz dessa medida. Qualquer opinião ou ação é explicada, politicamente, ou como adesão, ou como resistência, à centralização do poder monárquico. O rei contra a nobreza, a igreja contra o monarca, eclesiásticos “esclarecidos” a favor do rei... As leis, as confirmações e as inquirições são apresentadas como evidências desse contexto definido a priori e estranho ao tempo medieval, que requer, como qualquer outro tempo histórico, cuidadoso e paciente trabalho de contextualização para interpretar os vestígios do passado de acordo com lógicas mais empáticas com a época analisada. O contexto nunca está pronto; ele deve ser construído.

Estudos realizados recentemente sobre as chamadas Leis Gerais de 1211 (COELHO, 2019COELHO, Maria Filomena. Las leyes de 1211: la voz del rey de Portugal al servicio de la concordia. Temas Medievales, v. 27, p. 1-26, 2019.) e as Inquirições Gerais de 1220 (COELHO, 2020COELHO, Maria Filomena. Inquirir em nome de Afonso II: a jurisdição régia a serviço da aristocracia cristã (Portugal, século XIII). Tempo, Niterói, v. 26, n. 1, jan.-abr. 2020, p. 210-229.) pretendem refletir aquele trabalho contextual. Em primeiro lugar, destaco o adjetivo “geral”, amplamente adotado pela historiografia, que denota que tais instrumentos legislativos e judiciais/administrativos implementados por Afonso II tivessem por objetivo atingir todo o reino. Tal uso do adjetivo decorre de interpretações posteriores e responde claramente aos desejos daqueles que querem alentar a teoria da centralização precoce. O referido conjunto de leis, ainda que legisle sobre uma série de temas que afligiam o reino, não pretende abranger todo o território, pela simples razão de que o monarca restringe-se a ditar a lei dentro da sua jurisdição. No século XVIII, como demonstra António Hespanha, essa capacidade estava distante de ser traduzida como “total”; o que dizer com relação ao século XIII! Destaque-se ainda que a maior parte dos conteúdos das leis dizia respeito aos abusos dos oficiais régios e que Afonso II, que acabava de subir ao trono, se comprometia a conter. Essa legislação conforma, em termos políticos, a manifestação da concórdia entre o novo soberano e os grupos descontentes com o governo de seu pai, Sancho I. Relativamente às Inquirições de 1220, embora fossem instrumento eficaz para a averiguação dos direitos régios sobre determinados territórios, concentraram-se em regiões que configuravam cenários políticos de intensas disputas aristocráticas – laicas e eclesiásticas – e, assim, aproveitavam a muitos grupos, não apenas ao monarca. Os próprios inquiridores, longe de serem meros “funcionários públicos”, eram eclesiásticos de renome que tinham especial interesse na região e em atingir o principal afetado pelo levantamento de informações: o arcebispo de Braga.

Tanto no que refere às Leis de 1211 como às Inquirições, é comum que historiadores anunciem com ênfase a suposta intenção que subjazia à aplicação dos instrumentos – a centralização do poder –, sendo depois obrigados a admitir seu fracasso. No caso das leis, é a frustração relativamente ao seu recorrente descumprimento, comprovada pelas frequentes reclamações registradas, por exemplo, em atas de cortes. Com relação às Inquirições, é a falta de registros que informem sobre possíveis medidas adotadas pelo monarca para conter os abusos e punir os culpados. Tal dinâmica historiográfica pode ser observada relativamente a outras medidas legislativas da monarquia ao longo da Idade Média e, igualmente, no que tange a inquirições realizadas posteriormente, nos reinados de Afonso III e de D. Dinis.

A falta de uma metodologia que considere as diversas tipologias documentais usadas no trabalho de pesquisa leva a um tratamento das informações, contidas nas fontes, como se de dados neutros e objetivos se tratasse. Ao mesmo tempo, as leis, por exemplo, são abordadas pelos historiadores como se a expectativa da sociedade medieval fosse similar à da nossa contemporaneidade, regida pelo “estado de direito”. E os registros dos depoimentos, colhidos nas inquirições, como se fossem destinados à criação de um cadastro para servir ao controle e à administração dos domínios e finanças régios, contra os abusos e usurpações da aristocracia laica e eclesiástica, evidência de um embate entre o público e o privado. Esquece-se de uma parte de grande peso nesses processos ligada à simbologia do exercício do poder, cujas manifestações se espraiavam em muitas direções, além de contarem com protagonistas diversos, que dividiam o poder com o rei. Ainda sobre as tipologias documentais, observam-se, com bastante frequência, diferentes fórmulas e maneiras de “dizer”. Relativamente ao monarca, identificam-se algumas mais propícias a sedimentar conclusões que apontariam claramente para o exercício monopolista do poder: o rei “manda”, “ordena”, evocando sua potestas absolutas. Enunciados sedutores para os que desejam encontrar as “origens do Estado”.

A máquina burocrática da monarquia é outro dos elementos que engrossam os argumentos historiográficos da centralização. À medida que a Idade Média vai avançando, há cada vez mais documentação que atesta o crescimento da teia de oficiais régios para atender às mais diversas especificidades da administração. Uma vez mais, tudo parece apontar para o nascimento do Estado burocrático e impessoal.

Em seu estudo seminal, Hespanha revelou a lógica que presidia o exercício desses ofícios, que, no século XVII, já haviam atingido um grau de hierarquização que muitas vezes era até mesmo difícil de desvendar devido às intermináveis subcategorias e dependências. Facilmente se encontram estatutos e regimentos que delimitam a função desse oficialato. Entretanto, como bem notou o autor, tais descrições não são suficientes para nos dar a dimensão e a complexidade de sua atuação e do que eles representavam para o exercício do poder aristocrático-monárquico. Estatutos e regimentos não esgotam as possibilidades políticas da experiência desses oficiais e suas funções.

As análises sobre a burocracia régia na Idade Média constituem um dos pontos fortes da historiografia centralista. Apoiada na perspectiva weberiana, que ressalta a necessidade do Estado contemporâneo de contar com um corpo burocrático técnico preparado para realizar e defender eficazmente os interesses públicos, de maneira impessoal, com facilidade interpretam-se as iniciativas monárquicas medievais de formação de quadros de oficiais como prenúncio – e até mesmo como realidade precoce – dessa tipologia ideal. Entretanto, mais uma vez, os resultados das pesquisas de António Hespanha, para o século XVII, deveriam, pelo menos, despertar nos medievalistas algum cuidado relativamente a conclusões quase sempre entusiasmadas diante da criação de cargos burocráticos ligados à jurisdição monárquica.

Nesse tema, a metodologia é também fundamental. Não é incomum adotar-se a descrição dos ofícios da administração e da justiça, contida em leis, estatutos e regimentos como realidade factícia. Assim, basta encontrar na documentação menções à criação de juízes de fora e corregedores, cuja função precípua constituía uma instância de superioridade sobre as jurisdições locais, para concluir tratar-se de evidência que aponta na direção do controle régio sobre outros poderes do reino. Entretanto, os historiadores não deveriam contentar-se com uma única tipologia documental. Espera-se que leis, estatutos e regimentos recorram a uma linguagem que sublinhe inequivocamente a potestas absolutas3 3 Ainda assim, tal como alerta António Hespanha, “potestas absolutas” não significa poder total, mas “poder superior”. Na lógica política do Antigo Regime, tal superioridade era limitada pela existência das demais jurisdições legítimas. O poder do monarca era superior com relação a outros poderes, que possuíam autonomia jurisdicional, também relativa. daquele que os emite. Porém, a autoridade emissora produz regras que, obviamente, apenas podem abranger a jurisdição que a circunscreve. Isso não está dito no documento, e nem precisaria! Os juízes do rei somente poderiam dizer justiça nas terras em que o monarca tivesse jurisdição.

Outro elemento essencial à análise vincula-se à lógica pela qual os ofícios régios eram distribuídos e exercidos. Configuravam importante instrumento da governação, perfeitamente incorporados a uma cultura política que concebia as responsabilidades atinentes ao bem comum, regidos pela economia do dom. Os ofícios eram entendidos como função, concedidos e recebidos numa lógica de benefício (mercê) e serviço. Dessa forma, não se pode considerá-los como se de funcionários públicos contemporâneos se tratasse, dos quais se esperaria uma atuação que primasse pela impessoalidade. Os oficiais régios, em suas diversas hierarquias, integram redes de interesses, capitaneadas por figuras políticas importantes do reino que, por sua vez, dão sustentação ao monarca. Essa aristocracia cortesã e de serviço governa com o rei. Do ponto de vista metodológico, portanto, as evidências do fortalecimento político de um monarca não deveriam ser buscadas em manifestações que comprovem sua capacidade de eliminar as redes de interesses particulares, mas, ao contrário, na de se apresentar como vetor indispensável à realização desses interesses e, mais importante, na sua transformação em bem comum. Ao mesmo tempo, é do interesse dos grupos aristocráticos, que se articulam no espaço da corte, a criação de estruturas burocráticas régias com alcance geográfico ampliado, o que lhes permite, por meio do controle e patrimonialização dos ofícios, se sobreporem às aristocracias e oligarquias regionais, num processo de elitização do próprio jogo político. Tal cenário exige que os historiadores esmiúcem as redes que se formam em torno desses ofícios e que, frequentemente, dependendo das tipologias documentais selecionadas que registram o seu exercício, podem dar a falsa impressão de se tratar de burocracia composta de oficiais “técnicos”, sem ligações com a alta aristocracia do reino. Sem dúvida, para a Idade Média, a documentação não é generosa nesse aspecto. Contudo, o silêncio não autoriza afirmar que, ao não encontrarmos tais ligações, isso signifique estarmos diante de um corpo de “funcionários públicos” avant la lettre. Os indícios do exercício dessas funções apontam para lógicas de redes, mais evidentes se os historiadores recorrerem a tipologias documentais que permitam maior confronto e complementação de informações.

Outro ponto concernente à maneira como se costumam considerar historicamente as iniciativas de criação e de implementação de um corpo burocrático é a suposta “neutralidade”, que a sua mera existência garantiria. Uma concepção essencialista da “máquina burocrática” do Estado, pela qual a própria estrutura teria propriedades especiais que garantiriam a supremacia dos interesses públicos (de tipo técnico moderno) sobre os privados (de tipo feudal). Tal é a opinião de Mattoso, sobre a capacidade centralizadora de Afonso II:

[...] surpreendentemente inovadora, persistente e vigorosa. De tal modo inovadora, que constitui um dos mais precoces ensaios de supremacia do Estado que se conhecem na Europa feudal e que em alguns pontos lembra a acção de Frederico II. Este, todavia, viveu muito mais tempo e por isso aprofundou melhor as suas reformas políticas. Este facto só se pode compreender se admitirmos que o rei depositava a maior confiança em auxiliares imbuídos de concepções jurídicas capazes de pôr em prática medidas até então desconhecidas das administrações feudais.

(MATTOSO, 1993MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1993., p. 108).

As inovações de Afonso II em matéria política são, efetivamente, da maior transcendência, numa época em que dominava ainda a concepção feudal do exercício do Poder.

(MATTOSO, 1993MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Estampa, 1993., p. 111).

O tom triunfalista proclama que as medidas burocráticas seriam a ponta de lança capaz de ferir de morte a “concepção feudal”, e que a vitória final sobre as forças “centrífugas feudais” só não ocorrera em Portugal por uma questão de tempo de vida do rei!

A burocracia judicial, a partir de Afonso II, está cada vez mais presente, com os meirinhos-mores, depois os sobrejuízes de Afonso III, e os juízes de fora de D. Dinis; o corpo de funcionários especializado em questões fiscais, como os almoxarifes; os oficiais da administração, especialmente aqueles responsáveis pelos instrumentos de chancelaria, que registram a movimentação das concessões régias. Enfim, o crescimento dessas estratégias de governo são evidentes e, para a historiografia, têm no século XIV um ponto alto:

[...] o tempo português de D. Dinis se afigura muito menos marcadamente tradicional e mais decididamente inovador. Aspectos como a relação com o território, o património régio, a legislação, a justiça, alguns ensaios de uma fiscalidade ou a orgânica governativa e a respectiva oficialidade revelamse, a este respeito, concludentes.

(HOMEM, 1996HOMEM, Armando L. de Carvalho. A dinâmica dionisina. In: COELHO, Maria Helena da Cruz; HOMEM, Armando L. de Carvalho (Coord.). Nova história de Portugal: Portugal em definição de fronteiras – 1096-1325: do condado portucalense à crise do século XIV. V. 3. Lisboa: Estampa, 1996, p. 144163., p. 103).

Não se pode – nem se deve – negar o caráter inovador das técnicas administrativas e da criação e ampla difusão de um corpo burocrático que permitem o exercício do poder de forma muito mais eficaz, sobretudo, a partir do século XIII. A questão reside em perceber com que lógica se concebe e se experimenta essa máquina burocrática. Cada vez mais intrincada e complexa, ela atende plenamente à cultura política feudal, cujas ordens superiores, como já referi, vão tratando de conseguir, justamente por meio dessa “máquina”, um controle mais especializado e elitista dos instrumentos do poder, ao mesmo tempo que adensam suas redes de dependentes, integradas aos aparatos do governo régio. Para o século XVII, António Hespanha nos mostra o quanto essa tendência, iniciada na Idade Média, tinha-se agigantado. E referindo-se propriamente aos tempos medievais, sugeriu maneiras de abordar a lei e os aparatos régios do poder:

A lei é entendida como um sistema comunicativo (ou, melhor, como um conjunto de sistemas comunicativos relacionados), caracterizados por um universo de participantes (atores ou destinatários), por suportes materiais de comunicação (meios de comunicação, técnicas de escrita e registro, repositórios textuais), pelo estabelecimento de gramáticas narrativas ou estilos discursivos.

(HESPANHA, 2018HESPANHA, António Manuel. Southern Europe (Italy, Iberian Peninsula, France). In: PIHLAJAMÄKI, H.; DUBBER, M.; GODFREY, M. (Ed.). The Oxford handbook of European legal history. Oxford: OUP, 2018., p. 405 – tradução e grifos nossos).

Tais sistemas comunicativos, para a Idade Média, devem mesmo ser compreendidos de forma a adensar a ideia de inter-relação, mas sem que os historiadores se deixem arrastar pelo protagonismo absoluto das iniciativas da Coroa. Na maior parte do reino, o poder do monarca dependia da voz que lhe era emprestada pelas aristocracias/oligarquias locais. Como bem assinalou Oliveira Marques (1978, p. 283-285)MARQUES, António de Oliveira. Introdução à história da agricultura em Portugal: a questão cerealífera durante a Idade Média. 3. ed. Lisboa, Edições Cosmos, 1978. ao tratar das crises de produção e abastecimento que afetaram Portugal na baixa Idade Média, a falta de estradas e caminhos adequados impossibilitava a articulação econômica ao nível do reino, e minava a capacidade de o monarca implementar políticas eficazes para enfrentar esse problema. Vitorino Magalhães Godinho enfatiza igualmente as dificuldades vinculadas à articulação interna do reino, mostrando que, no século XIV, as intensas trocas entre Lisboa e cidades da Normandia contrastam fortemente com o estado de desconexão observado, por exemplo, entre a principal cidade régia e o Minho ou o Algarve (GODINHO, 1963GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa: Editora Arcádia, 1963. 2 v.). Tal panorama sugere, ainda uma vez, a necessidade de se interpretar o exercício do poder régio por meio da sua intensa articulação com os grupos de interesses locais e regionais, que, sem dúvida, foram os principais responsáveis pelo fortalecimento do poder régio ao nível do reino4 4 Sobre o interesse das interpretações de Oliveira Marques e Vitorino Magalhães Godinho para esse particular, remeto para os resultados do projeto “Portugal 1300”, desenvolvido pelo Laboratório de Estudos Medievais (LEME/USP). .

De epopeia a tragédia: o pluralismo como conclusão

A concepção centralista talvez seja um dos aspectos mais característicos da historiografia portuguesa sobre a Idade Média. São realmente poucos os medievalistas que consideram tratar-se de um problema. Ao contrário, a centralização monárquica é entendida como uma espécie de natureza do poder político. O caminho de construção desse tipo de poder, identificado ao caráter positivo da modernidade, apresenta-se repleto de desafios e, sobretudo, de grandes personagens responsáveis por submeter as forças centrífugas do “atraso”. A história política do medievo português é, assim, contada como epopeia, como evolução e progresso nacional.

A inserção de Portugal na União Europeia (UE) acabou por corroborar essa dinâmica explicativa, apesar do Estado Nacional ter saído do centro da cena. Opera-se um deslocamento em algumas dimensões, mas garante-se a valorização dos instrumentos que teriam fundado a civilização cristã ocidental: a instituição de um “Estado”. Em termos da herança histórica, desenha-se um cenário de concorrência entre os países membros da União Europeia (UE) sobre o peso que cada um teria nas origens desse patrimônio cultural, e Portugal reivindica protagonismo, dada a alegada “precocidade” política. Assim, por exemplo, a ideia da centralização política precoce viu-se reforçada pela aderência de alguns medievalistas portugueses ao famoso projeto de pesquisa “Genèse de l’État Moderne Européen”, de Jean-Philippe Genet (1999)GENET, JeanPhilippe. La genèse de l’Etat Moderne: genèse d’un programme de recherche. In: A génese do Estado Moderno no Portugal tardomedievo (séculos XIIIXV). Ciclo de Conferências organizado pela Universidade Autónoma de Lisboa no ano lectivo de 1996-97. Coordenação: Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem. Lisboa: UAL Editora, 1999, p. 2151., cuja principal fragilidade, do ponto de vista metodológico e teórico, era justamente seu acentuado anacronismo triunfalista relativamente às capacidades históricas de uma Europa “civilizadora de mundos”. Nesse sentido, aquilo que Genet identifica como “Estado” é resultado de teorias contemporâneas, mas que não chegam a merecer uma reflexão analítica conceitual, sendo naturalizadas como paradigmas para “avaliar” a Idade Média em termos políticos. O século XIII é escolhido como tempo de origem da “gênese”, quando se teriam manifestado os elementos que tais abordagens historiográficas consideram dignos de serem identificados como componentes do “Estado” monárquico: capacidades absolutistas e mentalidade impessoal legislativa, administrativa, judicial e fiscal.

A tragédia manifesta-se na pouca operatividade desses modelos historiográficos para se conhecer o passado. Observa-se um padrão repetitivo, quer relativamente aos fatos escolhidos como relevantes para contar a “saga” da centralização, quer sobre as justificativas que explicam seu sucesso ou fracasso. Outro aspecto característico é a oscilação da historiografia entre momentos de júbilo e de frustração relativamente às ações dos reis, ao “avaliar”, positiva ou negativamente, dinastias, reinados, reis, instituições, leis, nobres, eclesiásticos... Como sublinha Ana Isabel Carrasco Manchado (2017, p. 266)CARRASCO MANCHADO, Ana Isabel. Por qué escribimos política en la Edad Media, cuando queremos decir poder? Por una necesaria renovación conceptual en el estudio de la sociedad medieval. In: CARRASCO MANCHADO, A. I. (Dir.). El historiador frente a las palabras: lenguaje, poder y política en la sociedad medieval: nuevas herramientas y propuestas. Lugo: Axac, 2017, p. 257-277., “la concepción del Estado Moderno, como paradigma explicativo, restringe y orienta el significado y las funciones semánticas de lo político y de todos los términos que se interrelacionan con dicho término”. Ou seja, a adoção desse parâmetro moderno empobrece a explicação do passado, tornando-o menos complexo.

Retomo, neste momento, a proposta de António Hespanha, a qual creio ser muito mais rica em possibilidades para interpretar o passado medieval português ao dar o devido destaque a características políticas que tendem muito mais ao pluralismo que à centralização: uma constelação de poderes dinâmica, encimada pela monarquia5 5 Tal imagem política foi retomada por Hespanha em diversas ocasiões, mas sempre como desdobramento do capítulo “A constelação originária dos poderes”, da obra As vésperas do Leviathan. .

Apesar de uma decisiva evolução no sentido de um potenciamento do modelo “estadualista”, verificada a partir dos meados do século XVIII, de tudo o que acabamos de dizer resulta um sistema de poder, que, embora contendo, decerto, uma referência à unidade (“monarquia”), compatibilizava esta unidade com uma extensa autonomia de poderes políticos periféricos. Ou seja: que o polo político “monárquico” não consumia o todo, mas apenas ganhava nele um particular destaque (“proeminência”). [...] A compreensão do sistema político pré-estadual começa por se confrontar com o paradoxo de um sistema político a um tempo “monárquico” e “pluralista”. Pois se a ideia de “pluralismo” remete para um pluricentrismo político, a de “monarquia” parece exigir a unidade de poder. Esta tensão entre a unidade do todo e a autonomia das partes não é, no entanto, característica apenas da construção do poder político; mas a manifestação, neste campo, do modo como o pensamento medieval e pré-moderno entendeu, em geral, a unidade.

(HESPANHA, 1994HESPANHA, António. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994., p. 466).

Para encerrar, chamo a atenção para o ponto fundamental da transformadora abordagem oferecida por António Hespanha. Ele abandonou a velha tendência da historiografia a contabilizar vestígios documentais para identificar elementos centralizadores ou descentralizadores, e que acabou por produzir interpretações matizadoras do poder, como “Estado com resistências particularistas”, “Estado tendencialmente centralizado”, “Estado em construção” etc. Ou seja, interpretações meramente atomistas e indicativas dos elementos do sistema. De modo oposto, Hespanha assumiu uma perspectiva estrutural, fundadora, para compreender o “sistema efetivo do poder” e sua “articulação interna efetiva”, que do ponto de vista teórico não emanava da ideia de centralização, mas da concepção corporativa, conceituável, à maneira clássica, como paradigma (HESPANHA, 1994HESPANHA, António. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal, séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994., 524-527; COELHO, 2022COELHO, Maria Filomena. O Estado virtuoso: corpos e pluralismo jurídico em Portugal (séc. XII-XIII). In: TEODORO, L. A.; MAGALHÃES, A. P. (Org.). A formação de reinos virtuosos (XIII-XVIII). São Paulo, 2022 (no prelo).).

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    “[...] analizar el concepto no implica centrarse exclusivamente en una palabra, pues el sentido de lo político lo trasmitían otras palabras, como el término civil: civil y político son sinónimos en la época medieval [...]” (CARRASCO MANCHADO, 2017CARRASCO MANCHADO, Ana Isabel. Por qué escribimos política en la Edad Media, cuando queremos decir poder? Por una necesaria renovación conceptual en el estudio de la sociedad medieval. In: CARRASCO MANCHADO, A. I. (Dir.). El historiador frente a las palabras: lenguaje, poder y política en la sociedad medieval: nuevas herramientas y propuestas. Lugo: Axac, 2017, p. 257-277., p. 265).
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    Ainda assim, tal como alerta António Hespanha, “potestas absolutas” não significa poder total, mas “poder superior”. Na lógica política do Antigo Regime, tal superioridade era limitada pela existência das demais jurisdições legítimas. O poder do monarca era superior com relação a outros poderes, que possuíam autonomia jurisdicional, também relativa.
  • 4
    Sobre o interesse das interpretações de Oliveira Marques e Vitorino Magalhães Godinho para esse particular, remeto para os resultados do projeto “Portugal 1300PORTUGAL 1300. Grupo de pesquisa Mediterrâneo 1300 – Fome, Pandemia e Crise no Final da Idade Média. Desenvolvido pelo Laboratório de Estudos Medievais. Disponível em: https://portugal1300.fflch.usp.br.
    https://portugal1300.fflch.usp.br...
    ”, desenvolvido pelo Laboratório de Estudos Medievais (LEME/USP).
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    Tal imagem política foi retomada por Hespanha em diversas ocasiões, mas sempre como desdobramento do capítulo “A constelação originária dos poderes”, da obra As vésperas do Leviathan.
  • COELHO, Maria Filomena. A centralização do poder em Portugal: “uma tragédia ou epopeia que começou cedo”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 24-40, dez. 2022.

Referências

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  • COELHO, Maria Filomena. Um universo plural: política e poderes públicos na Idade Média (séc. XII-XIII). In: TORRES, Armando (Org.). La Edad Media en perspectiva latinoamericana 1. ed. Heredia: Editora de la Universidad Nacional de Costa Rica – EUNA, 2018, v. 1, p. 133-150.
  • COELHO, Maria Filomena. Las leyes de 1211: la voz del rey de Portugal al servicio de la concordia. Temas Medievales, v. 27, p. 1-26, 2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2021
  • Aceito
    15 Abr 2022
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