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Hespanha e uma crítica do liberalismo português

Hespanha and a critique of Portuguese liberalism

RESUMO

A proposta deste estudo, que se constitui antes de mais numa homenagem ao grande historiador que foi António Manuel Hespanha, é a de situar algumas de suas contribuições para o conhecimento do liberalismo em Portugal. A análise dessas contribuições permite não apenas levantar questões nessa temática, como estendê-las à problemática geral do liberalismo e a aspectos do próprio conhecimento histórico.

PALAVRAS-CHAVE
Liberalismo; António Manuel Hespanha; constitucionalismo

ABSTRACT

The purpose of this study, which is primarily a tribute to the great historian António Manuel Hespanha, is to situate some of his contributions to the knowledge of liberalism in Portugal. The analysis of these contributions allows not only to raise questions on this subject, but also to extend them to the general problematic of liberalism and of historical knowledge itself.

KEYWORDS
Liberalism; António Manuel Hespanha; constitutionalism

A proposta deste estudo, que se constitui antes de mais numa homenagem ao grande historiador que foi António Manuel Hespanha, é a de situar algumas de suas contribuições para o conhecimento do liberalismo em Portugal. Mais associado aos estudos sobre o Antigo Regime, no início do novo século o pesquisador voltou-se para esse tema, não obstante o interesse pela sociedade estamental. De qualquer modo, sua perspectiva muitas vezes o levou a contrastar os dois universos.

A análise dos trabalhos de Hespanha sobre o liberalismo em Portugal permite não apenas levantar questões nessa temática, como estendê-las à problemática geral do liberalismo e a aspectos do próprio conhecimento histórico.

Hespanha continua sendo geralmente conhecido como o historiador por excelência do Antigo Regime, cujas estruturas institucionais e jurídicas estudou em extensão e profundidade, com fecundas sugestões para o desenvolvimento da pesquisa nesses campos. Suas contribuições à análise do liberalismo, entretanto, embora menos extensas, levantam problemas igualmente fundamentais para o conhecimento da efetividade histórica e em particular histórico-jurídica das concepções liberais.

Do guia da mão invisível ao Hércules confundido (2004-2009)

O historiador do direito e das instituições do Antigo Regime dera contribuições decisivas sobre os temas do pluralismo, da sociedade corporativa e da monarquia dos conselhos e estamentos, contribuindo para o aggiornamento da historiografia portuguesa e colonial brasileira. A revisão do absolutismo e da sociedade de ordens, superando antigos modelos que vinham em grande parte das historiografias liberal e marxista, já era uma realidade nos anos 1970 e 1980 em diversos setores da investigação científica, mas ainda não chegara com força ao Brasil, quando foram publicados os primeiros trabalhos de António Manuel Hespanha sobre o assunto. A renovação que anunciava, para a historiografia geral e mais ainda para a historiografia jurídica, tornou-se um “point of no return”.

No entanto, mesmo sem descurar de seus temas Ancien Régime, Hespanha apareceu à comunidade científica no espaço de cinco anos, em 2004 e 2009, com contribuição significativa a propósito do constitucionalismo liberal e mais especificamente sobre o liberalismo em Portugal. Trata-se do mesmo estudo em duas versões: Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português (2004) e Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português (2009), o primeiro publicado em Portugal, o segundo no Brasil. Distinguem-nos apenas os prefácios, os capítulos conclusivos e, no caso do primeiro, uma seção sobre constituição e economia na cultura constitucional portuguesa do século XIX. No primeiro título, a referência irônica a Adam Smith e aos liberais ortodoxos; no segundo, outra semelhante à relação estabelecida por Ronald Dworkin entre princípios constitucionais e normatividade (DWORKIN, 2007DWORKIN, Ronald. Império do direito. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 68). Por trás de ambas as críticas, o sorriso matreiro do historiador que identifica os percalços das ideias no mundo real.

Conversamos algumas vezes sobre essa mudança de foco, concordando que não se tratava de mudança de abordagem, se por isso considerássemos a problemática geral e os métodos de aproximação, sendo comuns a ambos os temas o enfoque pela história das instituições e pela história social, esta, como frisava, “amplamente concebida”.

Mas o interesse pelo constitucionalismo já se insinuara antes. Aparecera se não estou em erro no trabalho de 1982 sobre “o projeto institucional do tradicionalismo reformista” em obra sobre o liberalismo na península ibérica na primeira metade do século XIX (HESPANHA, 1982HESPANHA, António Manuel. O projeto institucional do tradicionalismo reformista: um projeto de constituição de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato (1823). In: FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo; SERRA, João B. (Org.). O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. V. 1. Lisboa: Sá da Costa, 1982, v. 1., I, p. 63) e ressurgiria no início dos anos 2000. Além dos dois livros aqui tratados, também trabalhou o tema em obras coletivas sobre a história econômica portuguesa oitocentista e a burocracia, ademais de um levantamento sobre as “fontes para a história constitucional portuguesa” (HESPANHA; SILVA, 2004HESPANHA, António Manuel; SILVA, Cristina Nogueira da (Coord.). Fontes para a história constitucional portuguesa (c. 1800-1910). DVD. Lisboa: Faculdade de Direito da UNL, 2004.a), em colaboração.

Como em geral fazia em seus livros, foi direto na definição dos objetivos. No prefácio de Guiando a mão invisível... seu propósito era o estudo dos imaginários sociais, isto é, no caso a formação e o comportamento da opinião pública. À Skinner e Poccock, que aliás cita respectivamente a propósito dos fundamentos do pensamento político moderno e do “momento” maquiaveliano, constata que a opinião se nutria menos dos grandes autores e teorias, muitas vezes empobrecidos e confundidos, do que das

[...] ideias gerais, falsamente simples e claras – divisão de poderes, ditadura, cidadania, direitos políticos, governo, independência dos tribunais, garantias constitucionais, poder moderador, sufrágio universal ou parlamentarismo – que formam a opinião pública – este elemento decisivo na legitimação política do constitucionalismo.

(HESPANHA, 2004HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004., p. 14).

Nessa busca pelo imaginário do contexto liberal português, Hespanha, na conclusão do livro, sublinhava a diversidade de “manifestações do imaginário do Estado”, distinguindo entre o “republicanismo” da primeira fase liberal, com seu governo subordinado à lei e hostil às normatividades concorrentes (“nisto consistia a liberdade”, afirma) e o “estatismo” da segunda metade do século XIX, com a concepção da sociedade como organismo e do Estado como “polo racionalizador da sociedade, pelo menos sempre que o instinto natural solidário dos homens não bastasse para realizar a harmonia social” (HESPANHA, 2004HESPANHA, António Manuel; SILVA, Cristina Nogueira da (Coord.). Fontes para a história constitucional portuguesa (c. 1800-1910). DVD. Lisboa: Faculdade de Direito da UNL, 2004., p. 525).

Podia trabalhar tal perspectiva porque pesquisava como historiador, preocupado com a enunciação desses temas na imprensa, em panfletos e nos debates parlamentares, onde apareciam com os sentidos e as flutuações que a capilaridade social viabilizava, sem a eventual pureza teórica do debate dos grandes sistemas, mas com grande eficácia na prática política e jurídica. Kant já dissera durante a Revolução Francesa, lembra ele, que a propósito dos direitos naturais a prática era muito diferente da teoria (HESPANHA, 2004HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Livraria Almedina, 2004., p. 5).

A respeito do “mundo de constrangimentos difusos e espontâneos” utiliza-se ainda de Foucault (1999, p. 135)FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade (Curso no Collège de France). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. para lembrar que o pensador francês não identificou no liberalismo a substituição do controle político do absolutismo pela ausência de poder, mas pela utilização de “técnicas racionalidade política e de direção da sociedade” (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 19). Em lugar da “direção através da disciplina, típica do Estado Polícia”, uma “direção pela governação (associada a uma racionalidade política e administrativa, frequentemente alheia aos mecanismos estatais formais”) (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 19).

No prefácio do Hércules confundido... destacou assim o combate ao que identificava como mitos acerca do constitucionalismo liberal oitocentista, o do “Estado magro” e o da “sociedade voluntária e contratualista”. Em ambos valorizou a importância do discurso dos juristas, cuja argumentação reforçava não a vontade individual ou da sociedade, antes reelaborava textos de autoridade a partir de uma ótica estatal.

Fragilidades do senso comum liberal

Nosso autor no trato do liberalismo parte da ideia de que não deseja fazer uma história comemorativa, de glorificação. O que seria essa glorificação ele define desde logo:

  • o liberalismo teria instaurado uma ruptura com o passado e fundado um novo modelo político;

  • o liberalismo teria criado e implantado nas ideias e na prática conceitos como cidadão, origem contratual da nação e soberania, concentração ou monopólio do poder pelo Estado e primado da lei como tecnologia (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 9).

A essas teses, lugares-comuns de uma interpretação centrada na “história das ideias políticas” tradicional, Hespanha contrapunha alguns argumentos familiares ao historiador que trabalha a época considerando a circulação social das ideias e a tônica das discussões mais generalizadas: a “modernidade” do primeiro liberalismo não resiste à evidência de que era ainda muito dependente de instituições e formas mentais da monarquia corporativa, como aparece na Constituição de Cádiz, em muitos aspectos ancorada no velho pactismo ibérico – opinião compartilhada com outros especialistas no tema (FERNANDEZ GARCÍA, 2002FERNANDEZ GARCÍA, Antonio. Introducción. In: FERNANDEZ GARCÍA, Antonio (Ed.). La Constitución de Cádiz (1812) y discurso preliminar a la Constitución. Madrid: Castalia, 2002., p. 25); a compatibilidade das novas ideias com antigas rotinas, como se percebe pelo uso por algum tempo do conceito copernicano de “revolução”, fato que Hannah Arendt (1988, p. 17)ARENDT, Hannah. Da Revolução. 1. ed. São Paulo: Ática, 1988. já destacara; e, traço mais perceptível de todos, a persistência de antigas práticas, como pedir mercês às Cortes ou esperar do governo que suprisse falhas da regulação legislativa.

Com base nisso, o autor questiona a intensidade “liberal” do período, argumentando que o liberalismo tinha um projeto que para se realizar na prática tinha que desmentir alguns de seus postulados teóricos, como a confiança na natureza individual “aperfeiçoada” pela educação para o desenvolvimento da pessoa, a afirmação da sociabilidade automática, mas sem a necessidade de sua construção prévia, ou ainda o esforço de governar mais para só depois governar menos (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 10-11).

Hespanha chama a atenção, com a argúcia de sempre, para a indispensável distinção a fazer entre a reação liberal às práticas do “Estado de polícia”, inclusive à regulamentação mercantilista, e a mesma reação contra o Antigo Regime como um todo – isto é, podemos acrescentar, à própria sociedade estamental e as “leis fundamentais” da monarquia absoluta.

No primeiro caso, o da reação ao “Estado de polícia” e à sua febre normativa, destaca que se trata menos de liberalismo do que de processos e meios usualmente utilizados na própria sociedade corporativa (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 12).

Isso não impede que o historiador constate a convergência de interesses e pontos de vista, como acontece com a clara simpatia de liberais pela atitude de revisão pombalina da Boa Razão. Viam com excelentes olhos o governo “científico” e “disciplinador”, instrumentos com os quais o Estado, segundo Hespanha, instrumentalizava o seu poder. Como consequência, diz ele, aqueles liberais que desejavam um Estado mínimo no modelo escocês ficavam entalados entre corporativistas e reformistas-estatistas.

Talvez ficassem entalados, acrescento, mas isso não os impedia de viver a incongruência entre um máximo de liberdade possível e a defesa da solução centralizadora, se ela visasse à modernização econômica. Esse foi um dos dilemas dos liberais ao longo do século XIX. No Brasil há exemplos fáceis, como o do Memorial orgânico de Varnhagen (WEHLING, 2016WEHLING, Arno. O conservadorismo reformador de um liberal: Varnhagen, publicista e pensador político. In: VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico (uma proposta para o Brasil em meados do século XIX). Com ensaios introdutórios de Arno Wehling. 3. ed. Brasília: Funag, 2016, p. 47-99., p. 35), mas talvez o mais eloquente seja o de Rui Barbosa em 1882.

O mesmo spenceriano – acentuadamente mais liberal que Adam Smith, portanto – que defendia nos pareceres sobre a instrução pública a ação estatal mínima fez um dos mais encomiásticos discursos de defesa do reformismo pombalino nas celebrações, naquele ano, a propósito do centenário de morte do marquês (BARBOSA, 1882BARBOSA, Rui. Centenário do marquês de Pombal: discurso pronunciado a 8 de maio de 1882 por parte do Clube de Regatas Guanabarense no Imperial Teatro Pedro II. 1. ed. Rio de Janeiro: Tipografia de G. Leuzinger & Filhos, 1882., p. 4).

Trata-se, portanto, para Hespanha, da grande adaptação das teses liberais ao concreto histórico. O choque de realidade assim provocado fez com que os remanescentes do Antigo Regime – veja-se que o autor tem em mente o caso português oitocentista, não obstante admita sua representatividade no contexto geral do liberalismo europeu –, os “corporativistas” na sua expressão, passaram a admitir algum grau de progresso social na ordem que desejavam. Inversamente, os liberais tornaram-se menos individualistas, o que levou ambas as posições a convergências, como o “ecletismo” em filosofia social e, para o autor, o “fusionismo” em política (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 13) – que no Brasil, acrescento, caracterizou-se como importação do ecletismo francês (MACEDO, 1997MACEDO, Ubiratan Borges de. A ideia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997., p. 32), definido logo depois, politicamente, como... conciliação.

O tema para a França foi estudado por Pierre Rosanvallon a propósito do “momento Guizot”, e Hespanha o registra, observando que “o governo deveria, decalcando as leis objetivas da vida social, potenciá-las pelas instituições, submetendo as paixões e os egoísmos a uma lei geral da racionalidade” (HESPANHA, 2004HESPANHA, António Manuel; SILVA, Cristina Nogueira da (Coord.). Fontes para a história constitucional portuguesa (c. 1800-1910). DVD. Lisboa: Faculdade de Direito da UNL, 2004., p.178)

Era o programa liberal-estatista do conservadorismo modernizador de um Guizot, segundo o qual o Estado deveria apoiar uma elite – no caso francês, burguesa – para fazer progredir toda a sociedade, retirando-a das limitações da economia agrária. A esse “poder legítimo” exercido pelos “notáveis” num processo de representação censitária, caberia conduzir a sociedade. Ou, dito por ele mesmo em 1826, quando ainda não chegara ao governo:

Toda organização social que, após haver experimentado as diferenças de situação, de civilização, de esclarecimento, pelas quais se distinguem as diversas classes de cidadãos, tendesse [...] a isolar as classes umas das outras [...] [e] a torná-las estacionárias na sua diversidade, seria radicalmente viciosa e contrária à marcha espontânea, a força vital do gênero humano.

O problema da organização social consiste em respeitar as diversidades, as desigualdades de fato [...] e ao mesmo tempo estabelecer, entre as classes que elas separam, os laços necessários, as relações, de modo que não possam se ignorar reciprocamente.

(GUIZOT, 1861GUIZOT, François. Discours académiques. 2. ed. Paris: Didier et Cie, 1861., p. 21 – tradução nossa).

Laços e relações que, como diz Hespanha, guiam a mão invisível.

Também no Brasil o quadro se repetiria. Certamente não foi por acaso que Francisco Adolfo de Varnhagen, leitor e admirador de Guizot, ao elaborar as duas versões de seu Memorial orgânico dirigido ao Parlamento brasileiro, em 1849-1850, a despeito de uma profissão de fé liberal, defendeu a presença do Estado na supervisão e implementação das atividades econômicas, em particular a industrial, dada a falta de condições da iniciativa privada para atuar por sua própria conta (VARNHAGEN, 2016VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico que à consideração das Assembleias Geral e Provinciaes do Brasil apresenta um brasileiro. 3. ed. Brasília: Funag, 2016., p. 122).

No âmbito do direito: os problemas da lei e do Estado

Hespanha constata que após a Revolução, na França como em outros países, a tendência era a de que à pluralidade de direitos se sucedesse o predomínio do direito. Este, por sua vez identificado com a vontade do poder, se corporificava na lei, não tanto por sua origem parlamentar, mas por sua natureza de comando.

Essa perspectiva coincide com a de Paolo Grossi (2005, p. 42-43)GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 1. ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005., quando se distingue entre a antiga “lex” pluralista e a nova “loy” esboçada desde os juristas da monarquia absoluta e acentuada com a Ilustração e a Revolução. Mas os dois pensamentos aproximam-se só até certo ponto.

Ainda na linha de acentuação do direito em detrimento dos direitos, o historiador português assinala que

O Império de Napoleão e, depois, a Restauração e os regimes que se lhe seguem – em nome da razão, da ciência, da moral e dos bons costumes, do bom senso – foram institucionalizando esta nova razão, pondo-a em prática, ao promulgar os grandes códigos, ao construir um aparelho administrativo centralizado e mais eficaz, ao lançar as bases de uma vida social regenerada [...].

(HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 12)

Hespanha entretanto entende, diferentemente de Grossi, que o processo não é via de mão única, do centro para a periferia, do Estado para a sociedade. Ele chama a atenção para as limitações da lei no século XIX, que passa a ser menos a fonte única de regulação, como desejavam liberais e adeptos da dogmática jurídica, para antes competir com a ordem jurídica anterior mantida em vigor e influente na formação da mentalidade e na literatura científica dos juristas, inspirando a interpretação e a integração da lei. Promove-se, dessa forma, uma verdadeira reformatação da lei estatal:

Uma coisa parece ser certa. Ao contrário do que alguns afirmam – provavelmente baseados em declarações bombásticas, mas raras e de improvável exequibilidade – a lei do novo Estado acaba por ser uma fonte menor de regulação. A montante tem que competir com o direito tradicional [...] a jusante, tem justamente que passar pelo crivo desta literatura [...] procede a um severo escrutínio da legitimidade e a uma reformatação inovadora da lei estatal.

(HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 14).

Por isso, afirma, não coloca em questão “uma pluralidade permanente de poderes”, já que “muitos corpos de Antigo Regime conservam ou renovam sua governação, como acontece com os municípios, com as famílias... e até com a Igreja” (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 17).

O que vai questionar é a leitura liberal “que diminui tanto o impacto do governo na sociedade como o peso da governação disperso na sociedade civil”.

Em outras palavras, Hespanha não nega a existência de uma “revolução liberal”, mas destaca que ela se restringe à defesa contra os atentados à liberdade política ou às garantias pessoais. Na ordem social e civil, ao contrário, boa parte do “imaginário liberal” esperou e quis a ação governativa do Estado em áreas como a defesa, a polícia, o governo civil e a economia – essas posições se enraizariam para ele no “imaginário corporativo” (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 15).

Portanto, onde Grossi sublinha o caráter “modernizador” e “centralizador” do Estado, Hespanha não nega o processo, mas o matiza com um traço de continuidade. Processo semelhante, sem a radicalidade do autor português, vê Victor Tau Anzoátegui (2008, p. 111)TAU ANZOÁTEGUI, Victor. La Codificación en la Argentina – 1810-1870: mentalidad social y ideas jurídicas. 2. ed. Buenos Aires: Perrot, 2008. na sobrevivência do direito indiano no direito codificado da Argentina oitocentista.

Ruptura e continuidade no Estado moderno são aliás dinâmicas correlatas e não necessariamente contrastantes, como procurei sublinhar em análise do tema (WEHLING, 2004WEHLING, Arno. Ruptura e continuidade no Estado brasileiro (1750-1850). Revista de História Constitucional, Madri, n. 5, 2004., p. 54). Se assim não fosse, não poderíamos entender a coexistência de antigos controles – como a manutenção da Igreja oficial ou traços do protecionismo mercantilista – com novos, como os que Hespanha (2009, p. 17)HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009. sublinha: escola pública, uso social das ciências, educação cívica. Estes, destacados por Foucault, a quem Hespanha acompanha nesse ponto, já haviam sido também identificados por boa parte da historiografia geral, chamando a atenção para a incoerência doutrinária entre o receituário liberal (ou pelo menos como era genericamente percebido) e a prática social e política.

A formulação de uma nova problemática

Em função desse encaminhamento, Hespanha propõe nova análise para o Estado oitocentista – português, mas estendendo-a para a Europa ocidental. Trata-se da constituição em movimento, que busca na “lebendige Verfassung” de von Stein, isto é, uma perspectiva que abandona o caráter estático e puramente teórico da análise do Estado para colocá-lo no centro de uma situação concreta, o processo histórico.

A raiz do argumento está novamente em Foucault, quando discute o problema da conciliação da liberdade com o exercício do poder e a percepção de que, no liberalismo, a proposta não é necessariamente governar menos, mas “a contínua recomendação aos políticos e governantes para que governem cautelosamente, delicadamente, economicamente, modestamente [(FOUCAULT, 1981FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade (Curso no Collège de France). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 277)]” (HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido – sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009., p. 15).

Em função dessa perspectiva o autor propõe toda uma linha de trabalho “fundada numa concepção pós-formalista e pós-jurisdicista das atividades do Estado”, que contempla o estudo das carreiras administrativas, das fórmulas processuais e documentais, dos ritos institucionais, do imaginário sobre a burocracia e todos os demais aspectos usualmente considerados numa historiografia renovada do direito como cobrindo as áreas da administração da justiça, dos operadores jurídicos e da cultura jurídica.

Algumas questões suscitadas a propósito das contribuições de Hespanha ao tema do liberalismo

As análises de Antônio Manuel Hespanha têm como objeto o liberalismo constitucional português, mas permitem o levantamento de algumas questões axiais para o aperfeiçoamento da compreensão do próprio fenômeno do liberalismo.

A partir dessas análises podemos identificar algumas ideais-força dos temas do liberalismo em geral e do liberalismo constitucional.

O mito do liberalismo como ano zero da queda do absolutismo e do conjunto do Antigo Regime

A interpretação implica em identificar no liberalismo, em especial nos momentos revolucionários da América e da França, a ruptura radical com o passado e o início da contemporaneidade. Obviamente não se trata de minimizar e muito menos ignorar os efeitos da “Revolução Liberal”, mas de matizar seus desdobramentos, de modo que não apenas se identifiquem os elementos novos do processo histórico, como se reconheçam aqueles que permanecem. Ruptura, sem dúvida, porém também continuidade em muitos aspectos.

O fenômeno existe quer no liberalismo tout court, quer na sua versão de liberalismo jurídico ou constitucional.

No primeiro, foram as persistências da regulamentação e tutela econômica de inspiração mercantilista em muitos países, a começar pela existência na Inglaterra das Poor Laws quinhentistas ainda depois de iniciada havia duas gerações a Revolução Industrial (WEHLING, 2003WEHLING, Arno. Tocqueville e o mundo da Revolução Industrial. In: TOCQUEVILLE, Alexis. Ensaio sobre a pobreza. 4. ed. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2003., p. 183). Ou o papel atribuído ao Estado na supervisão das atividades mercantis nos códigos comerciais das primeiras décadas do século XIX. Ou ainda a preeminência estatal naturalizada nos países da Europa ocidental e nos Estados Unidos em matéria de política monetária.

No âmbito político a adoção do governo misto à Montesquieu e do modelo inglês foi revolucionária, mas a representação, embora não se fizesse mais pelas ordens estamentais, nem por isso tornou-se igualitária, já que se estabeleceram condições de acesso, como o sufrágio censitário e a alfabetização.

No segundo, basta lembrar que o código dos códigos, o Code Civil jusracionalista, filho dileto do casamento da Revolução com o Império napoleônico, admitia ele próprio, pela mão do experimentado jurista Pontalis, principal membro da comissão que o elaborou e um dos melhores quadros jurídicos do Antigo Regime, institutos e interpretações que vinham do direito anterior, fosse das leis monárquicas, dos costumes ou do direito comum (HALPERIN, 1992HALPERIN, Jean Louis. L’ impossible Code Civil. 1. ed. Paris: PUF, 1992., p. 30).

No próprio âmbito dos direitos e garantias individuais, solenemente proclamados antes mesmo da Constituição francesa de 1791, logo se verificou que a declaração do direito à liberdade era realmente uma novidade, mas sua limitação na prática, por diferentes razões políticas e econômicas, a alguns setores da sociedade fazia com que outros e amplos setores não percebessem diferenças maiores entre ambos os regimes. Muitos anos depois da Revolução e na primeira onda crítica ao liberalismo, Proudhon poderia afirmar que a liberdade de uns convivia com a alienação da de outros.

A aplicabilidade dos princípios liberais pela via constitucional

A crença – o substantivo aplica-se com justeza – na Constituição como expressão da melhor forma de definir direitos e garantias individuais e a organização do Estado foi um dos postulados caros à maioria dos autores liberais e de modo geral conseguiu adeptos muito além dos grêmios intelectuais. “Catecismos constitucionais” confundiam-se com “catecismos liberais” em diferentes países da Europa central e ocidental e da América ibérica, e a palavra, que lembrava o missionarismo, expressava claramente a preocupação de levar ao maior número de pessoas a boa nova representada pelo liberalismo na sua forma de constituição política. Associar ambos os conceitos, constituição e liberalismo, era prova da adesão ao mundo novo que se projetava. No Brasil D. Pedro I tinha as duas palavras permanentemente em seu vocabulário, bem como a esmagadora maioria dos políticos e jornalistas que moviam a nascente opinião pública brasileira. No ano anterior à independência publicou-se na Bahia um “catecismo político ou lições para os meninos” que respondia à pergunta sobre o que era a Constituição da seguinte forma: “É a coleção formal das leis fundamentais, que a nação organizou e que o rei tem jurado manter e conservar” (SEMANÁRIO CÍVICO, 1821SEMANÁRIO CÍVICO, n. 10. Salvador, 3 de maio de 1821. p. 3)

O enunciado dos princípios liberais guardava estreita relação com a concepção sistêmica da sociedade, por sua vez resultado da vulgarização das concepções newtonianas sobre o Universo desde as primeiras décadas do século XVIII. Assim, ser liberal presumia em graus diversos admitir as virtualidades da engenharia social, isto é, a reestruturação da sociedade more geometrico a partir de princípios axiais como contrato, lei, direitos – expressamente: liberdade, segurança, igualdade jurídica, propriedade – garantias, constituição, códigos. Quanto a estes, pareceu desde logo claro que, para reformar a sociedade, retirando-lhe o caráter estamental, não bastavam os enunciados constitucionais, mas o detalhamento nos âmbitos penal, comercial e civil.

Tais pressupostos ideológicos ligavam-se estreitamente à crescente percepção de que havia transformações técnicas de monta e que o conjunto – as indústrias, o triunfo da liberdade, o primado da lei – apontava para o progresso, cuja melhor conceituação seria dada à época pela obra de Condorcet sobre os quadros dos progressos do espírito humano.

A força da ficção jurídica passando por fato histórico concreto

Desde suas primeiras formulações seiscentistas as teses liberais baseavam-se na ficção jurídica da ideia de contrato entre iguais, anterior à organização do poder civil (BOBBIO, 2004BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 125) e expressão dos direitos naturais. À pergunta sobre o que eram os direitos do homem respondia o mesmo Semanário Cívico: “Certos desejos natos com o seu coração, quer o consideremos em estado selvagem, quer de polidez” (SEMANÁRIO CÍVICO, 1821SEMANÁRIO CÍVICO, n. 10. Salvador, 3 de maio de 1821., p. 1).

As revoluções americana e francesa, lembra Bobbio, baseavam-se nessa concepção, e para ele, a despeito da referência à vontade geral na segunda, a presença dos direitos naturais era superior à da pura influência rousseauniana.

Em ambas se partiu de uma ficção jurídica, a existência de um acordo primordial, que não poderia, obviamente, ser historicamente comprovado. Surge aqui desde logo importante fissura entre os liberais, que terá consequências posteriores: enquanto na França afirma-se tal concepção caracterizando a imprescritibilidade dos direitos “nem mesmo pelos povos que não os exerceram por um largo período de tempo” (BURKE apud BOBBIO, 2004BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 50), na Inglaterra, Burke retorquia que os direitos individuais existiam não porque fossem naturais, mas porque se constituíam em norma consuetudinária dos ingleses.

A primeira tese pode ser considerada extensão das concepções more geometrico, enquanto a segunda invocava em seu apoio a experiência histórica das “lutas pela liberdade” na Inglaterra do século XVII, muitas vezes também remontando a outro mito, o da Magna Carta como fundadora das liberdades, estudado em sua origem whig por Herbert Butterfield.

Baseado em argumentação semelhante, Hespanha sublinhou assim a importância do imaginário na formulação das questões constitucionais.

A percepção monolítica do liberalismo

O uso acrítico do conceito de liberalismo levou a muitas distorções de análises. O conjunto de teorias, fórmulas e propostas de organização social e políticas públicas (ou sua ausência) embutidas na expressão, evidentemente aplicado em diferentes situações de espaço e tempo, levou à preferência pelo uso do plural e da adjetivação (econômico, político, intelectual).

Na frequente comparação entre a Inglaterra e a França já se apontou a assimetria, em matéria de liberalismo econômico e liberalismo político. Enquanto no primeiro aspecto havia na Inglaterra da Revolução Industrial um liberalismo dinâmico, pró-industrialista, na França o liberalismo era conservador e defensor do protecionismo estatal. No plano político dar-se-ia o inverso: o liberalismo francês era mais afoito, enquanto o inglês era mais conservador.

Se a perspectiva for a adjetivação, cada liberalismo particular ou cada enfoque particular do liberalismo tinha seu tônus principal: no econômico, a livre iniciativa e a diminuição da presença estatal como bases da riqueza e da prosperidade; no político, o combate ao despotismo e a defesa do governo representativo e parlamentar; no intelectual, a defesa da tolerância e da conciliação. Naturalmente o espectro liberal sempre foi suficientemente amplo para admitir graus de intervenção estatal, em economia; o aumento do poder do executivo (à “direita”) e do aumento da base representada (à “esquerda”), em política; e ainda algum grau de controle da opinião e intolerância, no aspecto intelectual.

O liberalismo como um todo e o liberalismo constitucional especificamente não podem, portanto, como tantas outras categorias, ser reduzidos a uma relação de protocolos ou características monovalentes, sobretudo numa época de mudanças aceleradas como a da industrialização, do desmonte da sociedade estamental e da nova formulação do Estado... “liberal”.

Talvez um bom exemplo dessa pluralidade de liberalismos seja o comentário ácido de Alexis de Tocqueville, obviamente um liberal aristocrático, como tinha sido Montesquieu, sobre o reinado da classe média – e dos liberais “doutrinários” – sob a monarquia de Luís Felipe:

Ela [classe média] se alojou em todos os lugares, aumentou prodigiosamente o número destes e se acostumou a viver quase tanto do Tesouro público quanto de sua indústria [...]. Senhora de tudo como nunca havia sido e talvez jamais será nenhuma aristocracia, a classe média, tornada governo, tomou um ar de indústria privada.

(TOCQUEVILLLE, 1893TOCQUEVILLE, Alexis de. Souvenirs. 1. ed. Paris: Calman Lévy, 1893., p. 5-6 – tradução nossa).

Talvez pensando em algo como essa situação foi que Antônio Manuel Hespanha pode ter sugerido para a capa da edição brasileira de seu Hércules confundido a conhecida caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro intitulada “A política: a grande porca”, publicada no jornal A Paródia e que representava uma leitoa amamentando inúmeros filhotes, isto é, os partidos políticos e seus membros.

Considerações finais

O objetivo de Hespanha nessas investigações é definido como sendo encontrar, sob a hegemonia dos consensos argumentativos evidenciados na dogmática jurídica, a história dos imaginários sociais (que dá como sinônimo de opinião pública), a história das instituições e, como pano de fundo, a história social “amplamente concebida”. De alguma forma, essa proposta, de 2004-2009, é uma reafirmação das posições definidas em 1978 no seu livro de estreia, A história do direito na história social, no qual atribui à historiografia oitocentista as tarefas de descontruir o Antigo Regime e legitimar a nova ordem burguesa nascida com a Revolução (HESPANHA, 1978HESPANHA, António Manuel. A história do direito na história social. Lisboa: Livros Horizonte, 1978., p. 9).

O caminho escolhido para desbastar essa construção ideológica foi o do esforço pela recuperação da historicidade do direito e do liberalismo oitocentistas. Para isso, tornou-se necessário descer às atitudes, comportamentos, ideias e doutrinas em circulação nas diferentes conjunturas vividas no Portugal do século XIX, sem esquecer suas vinculações ou possíveis paralelismos com a situação institucional, jurídica e social de outros países. Dessa forma, entende-se seu recurso a perspectivas como as de Skinner e Poccock e seu trabalho de historiador na investigação não apenas dos cumes doutrinários, ideológicos ou jurídicos, mas dos vales e encostas, encontrados na bibliografia secundária, nos artigos de imprensa, nos panfletos e nos debates parlamentares.

A intenção de estudar as limitações históricas do liberalismo, que ficara explícita na ideia de guiar a mão invisível, reaparece no subtítulo da edição brasileira sob a forma de sentidos improváveis e incertos, chamando a atenção para o caráter cambiante das situações históricas, sempre longe das soluções sistêmicas.

Levar em conta o processo e não o sistema, eis a percepção da historicidade em Hespanha, processo que se caracteriza por mediações, transições, antecipações, retardamentos.

A recusa às soluções more geometrico demonstrata parece-me a grande contribuição de um ponto de vista epistemológico de Hespanha em ambos os livros, como foi sua preocupação antidogmática ao longo de toda a obra. As incoerências percebidas no liberalismo real, que poderiam ser observadas também no socialismo real ou em qualquer outra idealização conceitual, atingem a um cerne efetivamente profundo do conhecimento.

O que Hespanha critica em incoerências liberais, como o pressuposto da educação para a sociabilidade ou o reconhecimento da ação governativa, é a essencialização do conceito pelos diferentes teóricos liberais e seus intérpretes ao longo do século XIX (e não necessariamente apenas aí). O que produziu um verdadeiro “ente de razão” metafísico, o “liberalismo”, cujos avatares seriam – ou deveriam ser – meros decalques do arquétipo. Ao contrário, acrescente-se, poderia ser obviamente proposta a concepção não de um, mas de vários liberalismos, conforme a época, o lugar e a natureza política, econômica ou intelectual da abordagem; ou até a de um tipo ideal weberiano, como mera aproximação estatística e tendencial da variedade de suas manifestações.

Pela sensibilidade a essas e tantas outras nuances, Antonio Manuel Hespanha foi sempre um jurista-historiador do direito, desconfiado da camisa-de-força da dogmática jurídica e por extensão de todas as dogmáticas, científicas, religiosas ou seculares.

  • WEHLING, Arno. Hespanha e uma crítica do liberalismo português. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 117-130, dez. 2022.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2021
  • Aceito
    19 Abr 2022
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