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António Hespanha e as vésperas das humanidades digitais

António Hespanha and the eve of digital humanities

RESUMO

Ao longo do seu percurso como historiador, António Hespanha cultivou a inovação metodológica, colocada sempre a serviço de um enorme rigor com a escolha e a exploração das fontes. Parte muito relevante do pioneirismo do seu trabalho está ligada à permanente abertura ao que as tecnologias da informação e as ferramentas digitais poderiam trazer à historiografia, não apenas enquanto utensílios de trabalho analítico mas também como potentes instrumentos de divulgação e disponibilização, em larga escala, de dados e de trabalho crítico. Este texto, fazendo um breve conspecto do trabalho de António Hespanha com forte investimento nos meios tecnológicos, procura demonstrar o seu papel pioneiro na aplicação e divulgação do que hoje conhecemos como humanidades digitais.

PALAVRAS-CHAVE
Humanidades digitais; ferramentas informáticas; historiografia

ABSTRACT

Throughout his career as a historian, António Hespanha cultivated innovative methodological approaches with a permanent demand for acuity in the choice and exploitation of historical sources. A relevant part of his pioneering work is linked to the constant attention to what information technologies and digital tools could bring to the historiographical work, not only as analytical tools but also as powerful instruments for dissemination and accessibility, on a large scale, of data and critical work. This text, making a brief overview of António Hespanha’s work with strong investment in technological resources, seeks to demonstrate his pioneering role in the application and dissemination of what is now known as digital humanities.

KEYWORDS
Digital humanities; computer tools; historiography

O impacto da obra de António Hespanha na compreensão e no estudo dos fenómenos de poder da época moderna e do constitucionalismo é conhecido e, para além do alcance real na produção historiográfica internacional e de língua portuguesa, tem sido assinalado pela profusão de homenagens que lhe têm sido dedicadas nos últimos anos, tendência, de resto, em que este número especial se integra. Se os seus contributos para o entendimento da centralidade do direito nas sociedades da época moderna e dos primeiros constitucionalismos são visíveis na produção historiográfica que produziu e influenciou, se a sua participação na renovação do campo da história política e do direito é inegável e fundamental, se o seu trabalho com categorias novas de objetos (os rústicos, as mulheres, os juristas, as margens do império) revelam o seu pioneirismo e a sua atenção a uma história que ambiciona ir a contracorrente, falta, na minha opinião, assinalar uma outra dimensão do seu trabalho, de carácter vincadamente metodológico mas com um evidente potencial para extravasar esse confinamento e revelar a sua postura sobre a dimensão aberta da ciência, e que se traduz no recurso arrojado a novas tecnologias e ao cruzamento do seu trabalho com o digital, desde muito cedo no seu percurso.

Esse aspeto da sua produção tem sido descurado nos exercícios de revisitação da sua obra. Num espaço de homenagem, considero importante assinalar o seu pioneirismo na introdução e no uso daquilo a que hoje chamamos de humanidades digitais e que, à época em que os iniciou, se chamava de “informática aplicada à história” ou de “computação e história”, entre outras designações menos bem conseguidas. Grande parte do seu percurso de historiador foi feito com um recurso hábil a ferramentas informáticas e, por outro lado, partiram dele importantes primeiros ensaios de aplicação de metodologias das humanidades digitais não só à historiografia, mas também à história pública e à disponibilização de documentação em formato digital. Nessas duas dimensões estão expressas outras tantas qualidades suas enquanto historiador: o rigor e a partilha.

A visão eminentemente não formalista e não estadualista do direito que Hespanha praticou e explorou no seu trabalho, a sua eleição de objetos de estudo mais próximos dos usos e rotinas – administrativas, sociais e profissionais – de objetos capazes de traduzir maneiras de falar e imaginar o direito – objetos eminentemente práticos e quotidianos –, ajuda-nos a compreender a valorização que fez de dados seriais, massivos, capazes de dar conta da dimensão prática da realização vivencial do direito. E, para o tratamento e a exploração desses novos universos de dados, que Hespanha, como ninguém, soube trazer para a história do direito e da política, era necessário o recurso a ferramentas tecnológicas capazes de abarcar e de retirar sentido de coleções gigantescas de informação. Porque a história que Hespanha praticava, e que continuava a propor até recentemente, beneficiava da exploração de “constelações muito vastas de dados” (HESPANHA, 2015HESPANHA, António Manuel. De novo os factos – uma proposta de retorno ao serial numa fase pós-positivista da historiografia jurídica. Conferência no VII Congresso do IBHD, Curitiba, 2015, gentilmente cedida pelo autor., p. 1), para trabalhar quer na diacronia dos tempos longos, quer na sincronia dos espaços vastos2 2 Para uma proposta inteiramente assente na necessidade de um retorno à longue durée e a uma nova “viragem quantitativa”, cf. Guldi e Armitage (2014). .

Um primeiro ensaio em As vésperas do Leviathan

A primeira edição de As vésperas do Leviathan (HESPANHA, 1986HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal - séc. XVII. Lisboa: ed. Do autor, 1986.), nomeadamente o seu segundo volume, é um interessante caso de humanidades digitais quase analógicas. Acompanhando e aprofundando a análise da ordem política da monarquia portuguesa e das relações entre a administração central e as diferentes instâncias de poder local, produzidas no primeiro volume, o autor criou um conjunto de mapas das diferentes comarcas do reino, que constituem o grosso do segundo volume e que formavam um ensaio de sistema de informação geográfica (SIG) em papel.

Em 1986, data da edição de autor em dois volumes, os computadores pessoais eram ainda uma raridade, e o software de cartografia ou de SIG, uma utopia no imaginário de poucos engenheiros informáticos. No entanto, através de programação num pequeno computador doméstico, António Hespanha, com ajuda do seu filho João Pedro Hespanha, então adolescente, produziu um conjunto de mapas capazes de representar cartograficamente a informação quantitativa e qualitativa em massa que as fontes por si exploradas na sua tese seminal forneciam.

Ao contar “uma história, sem detalhes de nomes e de datas, do sistema político português, uma instanciação do que caracterizava, em geral, as monarquias corporativas europeias” (HESPANHA; 2011HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445., p. 435), Hespanha fê-lo, identificando “modelos profundos do mundo e da vida, que dirigiam a acção da grande massa das pessoas comuns”, através do recurso à grande tradição jurídica europeia, encerrada em fontes literárias que exigiam um saber exegético complicado e algo raro” e combinando com “pesquisas empíricas fortemente apoiadas em meios computacionais” (HESPANHA; 2011HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445., p. 433). Por um lado, o descentramento do sujeito, mas, por outro, uma visão a diferentes escalas, tanto macro como micro, que observa o território como uma expressão do carácter plural e disperso dos polos de poder3 3 Para uma discussão em torno das possibilidades mais recentes de uma “viragem espacial” na história do direito, que dialoga muito com as propostas de António Hespanha, veja-se Costa (2013). .

O espaço político pré-moderno, tal como Hespanha o analisa em As vésperas do Leviathan mas também noutros trabalhos (HESPANHA, 1982HESPANHA, António Manuel. L’espace politique dans l’Ancien regime. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Estudos em homenagem aos profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz, n. 58, fascículo 2, 1982, p. 455-510.; HESPANHA, 1983HESPANHA, António Manuel. Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique. Ius Commune X, 1983, p. 1-47.), é um espaço miniaturizado, fragmentado, heterogéneo, dominado pela oralidade e pelas relações interpessoais, um espaço comunitário que condiciona e molda as práticas. O trabalho pioneiro que produziu e ofereceu aos leitores no volume de anexos da sua tese, ao trazer a cartografia para o centro da análise e ao mostrar que os fenómenos que identificava e analisava eram mapeáveis, veio demonstrar de forma cabal como não era possível fazer uma história da política, do direito ou da administração sem considerar a sua dimensão material no território e que, para o fazer de forma mais expressiva, o recurso a ferramentas de representação cartográfica a diferentes escalas era fundamental.

A criação de grandes bases de dados

No final da década de 1980, no quadro da integração de Portugal na então Comunidade Económica Europeia, verifica-se um reforço dos mecanismos de política científica nacional através do alargamento da diversidade das fontes e dos instrumentos de financiamento. Ao país são atribuídos fundos estruturais europeus com vista à reforma das suas estruturas económicas. Entre esses fundos, uma fatia importante era atribuída ao domínio da ciência e da tecnologia, através da agência estatal responsável pelo planeamento, coordenação e fomento da investigação científica e tecnológica nacional. Esse processo culminaria na criação, em 1997, da atual Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que substituiria, com funções alargadas, a então extinta Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica (JNICT).

Por essa via, as universidades portuguesas eram expostas a novas formas de pensar a pesquisa, inclusivamente nas ciências sociais e humanas, pelo convite à criação de equipas constituídas em torno de projetos que recebiam financiamento para um plano de trabalhos que era sujeito a concursos de seleção e ao escrutínio de pares. Então integrando o Instituto de Ciências Sociais (ICS), da Universidade de Lisboa, António Hespanha foi dos mais dinâmicos historiadores portugueses a abraçar, naquele período, essas novas oportunidades de financiamento, cruzando a sua curiosidade académica com uma forte vocação pedagógica para integrar jovens pesquisadores recrutados entre os seus alunos de graduação e pós-graduação4 4 “Enquanto estive no ICS, já antes e também depois disso, sempre apostei em projectos de investigação colectivos, incorporando estudantes e jovens bolseiros, produzindo resultados comunitariamente úteis e educando na definição de objectivos e no seu cumprimento. Revejo-me muito nisto e fico contente por poder ser associado a uma reacção contra o egoísmo, o individualismo e uma competitividade paranoica do trabalho intelectual, devastadora para a sua qualidade e o seu sentido social, assim como me agrada, do mesmo modo, ter cultivado uma certa ‘estética profissional’, não ansiosa pela fama ou pelo reconhecimento público, não obcecada pela competição entre colegas; enfim, cool [...]” (HESPANHA 2011, p. 437. .

Seguindo nas linhas de questionamento que vinha explorando, era possível, então, realizar inquéritos bastante mais alargados através de projetos de recolha maciça de dados, levados a cabo por coletivos de jovens pesquisadores sob a coordenação de Hespanha, no ICS. Não se tratava de simples trabalho de tarefeiros em larga escala; os jovens pesquisadores integravam a discussão do enquadramento teórico, eram estimulados a prosseguir os seus estudos pessoais em torno das fontes ou dos elementos recolhidos e trabalhados, recebiam formação em áreas de ponta ao mesmo tempo que beneficiavam do ambiente interdisciplinar e altamente internacionalizado que caracterizava o ICS, já no início da década de 1990, ao mesmo tempo que podiam aprofundar a sua reflexão na biblioteca do instituto, animando seminários de leitura e discussão de textos, fazendo pequenos workshops metodológicos, entre outras atividades de extensão.

Entre os projetos conduzidos por António Hespanha nesse período, a produção de grandes bases de dados merece especial destaque por ter sido o cerne do trabalho do grupo por si coordenado5 5 Sem existência formal, porque ainda não vigorava a figura dos grupos de pesquisa ou das linhas de investigação, o grupo tinha a expressiva designação interna de Aracne e integrava nomes como Ana Cristina Nogueira da Silva, André Belo, Ângela Barreto Xavier, Carla Araújo, Catarina Madeira Santos, Dulce Freire, Joana Estorninho de Almeida, Margarida Melo, Nuno Camarinhas, Pedro Cardim, Rui Tavares, Sandra Monteiro ou Susana Gomes da Silva. . Iniciadas praticamente ao mesmo tempo, nos primeiros anos da década de 1990, duas bases de dados fizeram escola e abriram o caminho para projetos futuros. Uma delas designava-se PoMo (Portugal Moderno) e consistia numa tentativa de representar as estruturas espaciais do Portugal de Antigo Regime. A sua fonte central era a Corografia portugueza, do padre António Carvalho da Costa (1706-1712)COSTA, António Carvalho da. Corografia portugueza e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem; varões illustres, gealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos Bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens. Lisboa: na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706-1712., e o objetivo era registar, numa base de dados relacional, todas as divisões administrativas do Portugal moderno, nos seus diversos níveis, incluindo informações detalhadas na obra sobre freguesias, paróquias, concelhos, comarcas e províncias, e com capacidade para se lhe agregarem dados provindos de outras fontes que acrescentassem informação ou, por outro lado, de colocar essa informação a serviço de outras bases que necessitassem de uma dimensão geográfica. O seu modelo relacional dos dados permitia estruturar a informação de forma a reproduzir a hierarquia das circunscrições territoriais e dar conta do seu carácter plástico, através das frequentes reconfigurações que a divisão do território foi sofrendo ao longo do período moderno.

Não existindo ainda, disponíveis no mercado de forma acessível, programas que gerissem sistemas de informação geográfica, essa base era, de certa forma, uma aproximação a um repositório desse tipo, não dispondo, contudo, da importante componente cartográfica. De qualquer forma, em 1994-1995, ainda se procurou trabalhar de forma digital os mapas de As vésperas do Leviathan para se explorar formas de cruzamento com a base6 6 Esse projeto exploratório, que envolveu a exploração de um sotware dinamarquês (MaPs), apresentado ao grupo de pesquisa no âmbito de um seminário conjunto com colegas da Universidade de Copenhaga, seria interrompido pela nomeação de António Hespanha para a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. .

A outra base pertencia ao projeto Storia Iurisprudentia Lusitania Antiqua (SILA) e foi influenciada por um projeto conduzido por Johannes-Michael Scholz no Max Planck Institute for European Legal History em meados dos anos 1980, que propunha uma prosopografia dos juristas espanhóis do século XIX, e pelo trabalho de Filippo Ranieri (1982)RANIERI, Filippo. Juristische Literatur aus dem Ancien Régime und historische Literatursoziologie. Einige methodologische Vorüberlegungen. In: BERGFELD, Christoph et al. (Ed.). Aspekte europäischer Rechtsgeschichte. Festgabe für Helmut Coing zum 70. Geburtstag (Ius Commune. Veröffentlichungen des Max-Planck-Instituts für europäische Rechtsgeschichte Sonderheft 17), 1982, p. 293-322. com bibliografia jurídica da Europa moderna. O projeto proposto à JNICT por António Hespanha tinha como objeto de estudo os juristas letrados portugueses do Antigo Regime. Recorrendo a uma gama de documentação muito variada e conservada em diversos arquivos portugueses (Arquivo da Universidade de Coimbra, Biblioteca da Ajuda, Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivos Nacionais da Torre do Tombo) e disponível num conjunto predefinido de bibliografia complementar (grandes enciclopédias e dicionários bibliográficos portugueses)7 7 Sobretudo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1936-1988); Machado (1741-1759); e Silva (1858-1923). , a base de dados SILA, também ela relacional, registava, por um lado, a informação de carácter biográfico dos juristas portugueses que produziram textos, impressos ou manuscritos, ao longo da época moderna, por outro a informação bibliográfica dessa mesma produção. Da informação biográfica constavam dados únicos (como nome, local e data de nascimento e falecimento) e múltiplos (carreira académica, cursus honorum, privilégios e mercês recebidos, parentesco etc.). Da informação bibliográfica constava toda a descrição possível de recuperar sobre os respetivos textos, com informação também sobre as suas diferentes edições e, sempre que possível, sobre as remissões a essas obras em textos de terceiros. Numa fase em que a internet dava os primeiros passos e em que ainda não se dispunha de grandes repositórios bibliográficos de referência, a base SILA rasgava caminhos de exploração para a história do direito, para uma compreensão do direito enquanto produção cultural contextualizada, abrindo vias para o estudo de redes de difusão da literatura jurídica portuguesa. Infelizmente, essa base permanece inédita, embora António Hespanha tenha feito um pequeno ensaio sobre o potencial de análise da sua informação num estudo que é tão estimulante quanto desafiador, de que falaremos mais abaixo (HESPANHA, 2019aHESPANHA, António Manuel. O direito na Academia (Coimbra, 1570-1640). A identificação do direito numa comunidade comunicativa. Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno XLVIII, 2019a, p. 537-618.).

Era um período em que o software de bases de dados era ainda muito pouco divulgado e eram raros os produtos que ofereciam uma interface amigável para o utilizador ou que não exigissem o conhecimento de linguagem de programação para as explorar. Quer a base PoMo, quer a base SILA, corriam em dBaseIII e apenas nos terminais informáticos do ICS. Posteriormente, foram feitas conversões para outros formatos mais modernos, nomeadamente o Microsoft Access, no caso da SILA. A base de dados PoMo teve uma segunda existência e alguma reutilização num projeto de que falaremos mais abaixo, no âmbito da coleção Ophir.

A experiência de trabalho em ambos os projetos acabaria por reproduzir-se noutros mais alargados, nomeadamente o projeto Optima Pars, cuja primeira fase foi dirigida por António Hespanha, e procurava estudar as elites sociais da época moderna numa perspetiva mais ampla mas sempre assente numa ambição de deslocação da atenção dos sujeitos para os grupos e para as estruturas de poder. Na sua segunda fase, já com Nuno Gonçalo Monteiro, que assegurou a direção quando António Hespanha foi nomeado para a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), o projeto alargou o seu campo de estudo para o espaço atlântico (MONTEIRO, 2005MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Ed.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005.).

Por outro lado, a experiência de trabalho na equipa dos projetos PoMo, SILA e Optima Pars influenciou os percursos individuais dos seus membros, com a prossecução de trabalhos de pós-graduação, normalmente sob a orientação científica de António Hespanha, que em muito devem às propostas teóricas e às soluções metodológicas ali experimentadas na busca de uma história das estruturas de poder modernas descentrada do sujeito8 8 Para além do meu trabalho com os juízes letrados portugueses (CAMARINHAS, 2010), refira-se Almeida (2004) ou Subtil (2010) só para citar os que desenvolveram trabalhos mais proximamente influenciados pela experiência do SILA e do Optima Pars. Uma apreciação, por António Hespanha, do conjunto das obras desses autores que exploraram grandes massas de dados pode ser encontrado em Hespanha (2019b). .

Digitalização e disponibilização de coleções de textos

No verão de 1992, como tarefa lateral do projeto SILA, uma obra de Álvaro Vaz, lente da Universidade de Coimbra e desembargador dos agravos da Casa da Suplicação, foi digitalizada. Tratava-se de Decisionum consultationum, ac rerum judicatarum in Regno Lusitaniae (1588)9 9 O exemplar utilizado era a edição de Coimbra, 1686, que reunia num só volume os dois tomos da edição original. . A tecnologia disponível estava a anos-luz dos processos simples que hoje conhecemos. Desde logo, a capacidade de processamento dos computadores e dos scanners e, também, a disponibilidade de armazenamento da informação eram muito limitadas. Essa tarefa se tornou possível com o uso do computador mais potente do ICS10 10 Com processador 486 e uma memória RAM de 4Mb. , de um scanner e de uma unidade de gravação de dados DAT11 11 Digital Audio Tape, um dos formatos testados pela indústria informática no final da década de 1980 e que acabaria por perder terreno para o disco compacto e, depois, para os DVDs. adquiridos especialmente com vista a replicar a tarefa com outros livros caso ela fosse bem-sucedida. O objetivo de António Hespanha era testar a qualidade e legibilidade do livro em formato digital, de forma a transpô-lo para um outro suporte que beneficiasse a sua leitura pela rapidez de acesso à informação, pela possibilidade de pesquisa, e pela reorganização que permitia sem perder a referência ao formato original. Não dispondo ainda das tecnologias de reconhecimento ótico de caracteres, o objetivo era registar as imagens digitais das páginas do livro e dotá-las de metadados que orientassem a pesquisa pelo utilizador. A inexistência de um software que gerisse as imagens criadas e as tornasse pesquisáveis bem como a pouca velocidade de leitura da unidade DAT fizeram com que os resultados do trabalho ficassem aquém das expectativas iniciais, mas a ideia da digitalização de textos em escala não foi abandonada.

Três anos mais tarde, António Hespanha era nomeado pelo governo português para comissário-geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, uma função que o próprio viu como um trabalho diverso do académico, um trabalho de “‘desintoxicação’ historiográfica, pela renovação e complexificação do saber sobre a expansão portuguesa, a diplomacia cultural e o serviço público na área da cultura” (HESPANHA; 2011HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445., p. 440). Mais uma vez, tratava-se de canalizar conscienciosamente os meios financeiros disponíveis para áreas consideradas estratégicas e capazes de causar um impacto positivo que estimulasse a produção historiográfica e o que agora chamamos de história pública. A palavra “investimento” traduz o espírito desse trabalho produzido na CNCDP. Nela foram criadas linhas editoriais de livros e revistas, financiaram-se cátedras universitárias, cursos de verão, exposições capazes de chegar ao grande público, produziram-se documentários, editaram-se discos, promoveram-se ações de formação e de sensibilização junto das escolas e, até, um programa de edição digital de fontes. As experiências levadas a cabo no ICS podiam, agora, com mais meios – humanos, financeiros e tecnológicos – ser convertidas num programa destinado a um público mais alargado.

Esse programa de edição digital era a coleção Ophir – Biblioteca Virtual dos Descobrimentos Portugueses, que produziu 12 volumes, em CD-ROM, cobrindo uma grande variedade de áreas do saber histórico sobre a expansão portuguesa e o Portugal da época moderna. Coleções inteiras de revistas científicas sobre o ultramar (revista Stvdia, Boletim da Filmoteca Ultramarina Portuguesa, revista Mare Liberum), coleções de fontes para a história de Portugal e da sua presença na América, na África e na Ásia (a Corografia portuguesa de António Carvalho da Costa, que já tinha sido trabalhada no projeto PoMo; a Bibliotheca Lusitana de Barbosa Machado e o Dicionário Bibliográfico Português de Inocêncio Francisco da Silva; fontes para o Estado Português da Índia editadas no Oriente Portuguez, no Archivo Português Oriental, ou nos Livros das Monções), e textos de autores da época que contribuem para o conhecimento da sociedade portuguesa e dos contextos políticos, sociais e culturais do período da expansão (a obra completa de António Vieira ou de Gil Vicente, as Décadas da Ásia de João de Barros, ou a História do Japão de Luís Fróis) eram, assim, reunidos numa coleção de CD-ROMs que os tornava acessíveis a um público mais alargado e que permitia “dar uma vida nova aos textos: pesquisá-los por palavras, eventualmente por temas, cruzar informação entre eles, editá-los em papel à medida das conveniências de cada um, inseri-los em ficheiros informáticos pessoais ou em redes telemáticas”, escrevia António Hespanha no texto da capa de cada volume da coleção12 12 A que acrescentava: “Não substituindo o livro tradicional […], o CD-ROM de texto abre novos caminhos ao trabalho dos historiadores, materializando métodos e processos que, há alguns anos, eram tão míticos como a mítica e esplêndida Ophir a que se alude no título da coleção”. .

Em 1996-2002, período em que a coleção Ophir se publicou, a disponibilização de grandes volumes de texto, em formato eletrónico e, por isso, amplamente pesquisável, era uma grande novidade. Na CNCDP, sob a iniciativa de António Hespanha, formou-se uma equipa, com jovens graduados em história e outras ciências sociais, que produziu esse trabalho de raiz, desde a recolha dos materiais bibliográficos até a digitalização dos livros, desde a transformação das imagens digitalizadas em texto eletrónico, até a sua revisão e edição, com marcação de metadados. A apoiar essa equipa, estavam engenheiros informáticos e designers, responsáveis pela criação do software que permitia a interface entre as coleções e o utilizador e pela estética da coleção. Cada volume tinha um editor científico, especialista na respetiva área temática e que trabalhava com a equipa a forma como cada coleção textual era apresentada ao leitor, que formas de busca orientada eram desenvolvidas, que enquadramento era oferecido. Mais uma vez, a marca de António Hespanha ficava presente na metodologia de trabalho: “autonomia, responsabilização, espírito de serviço comunitário (ou público) no domínio do saber histórico [...] ética de uso dos dinheiros públicos – economizar meios e produzir coisas úteis para todos” (HESPANHA, 2011HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445., p. 440).

Outra vez a história do direito

A expressão pública da produção de António Hespanha no que hoje chamamos de humanidades digitais teria ainda continuidade no seu regresso à academia como professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em 1999. No âmbito das suas funções no Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedad (Cedis), promoveu a criação de uma biblioteca digital para a história do direito português, estrutura que recentemente recebeu o nome de Arquivo Digital António Manuel Hespanha, em sua homenagem.

Mais uma vez, o objetivo principal da biblioteca digital era a criação de uma coleção de textos fundamentais para a história do direito português, com especial incidência no período constitucional, com uma ênfase nas obras de doutrina jurídica de natureza académica produzida no século XIX, mas agregando, posteriormente, outros textos jurídicos complementares, que incluem códigos, repertórios, coleções de legislação, ou debates parlamentares.

Beneficiando das lições aprendidas nos projetos anteriores, da evolução da tecnologia entretanto tornada disponível para o grande público, e do salto exponencial que o acesso generalizado à internet conheceu na mudança do século, essa nova coleção de textos optou por uma abordagem mais leve no seu tratamento, apostando essencialmente na disponibilização das obras em formato digital, sem conversão para texto eletrónico, mas enriquecidas com índices internos que facilitassem a navegação em cada livro, e enquadradas pela possibilidade de pesquisar toda a biblioteca por temas e áreas do direito, por título, autor e data. Agilizou-se, assim, o processo de produção das versões finais, garantindo, ao mesmo tempo, uma maior compatibilidade com sistemas e evitando a obsolescência do software que se perde com a constante atualização dos grandes sistemas operativos. Dessa forma, constituiu-se um grande corpus textual para a história do direito que foi tornado acessível ao grande público e, por isso, mas também pelas áreas cobertas na biblioteca, beneficia outras áreas do trabalho historiográfico de quem pesquisa o longo século XIX e o século XX.

Ainda no âmbito do seu trabalho na Faculdade de Direito, dessa feita em parceria com Cristina Nogueira da Silva, publicou o DVD de dados Fontes para a História do Direito Constitucional em Portugal (c. 1800-c.1910) (HESPANHA; SILVA, 2004HESPANHA, António Manuel; SILVA, Cristina Nogueira da. Fontes para a história constitucional portuguesa (c. 1800-1910). DVD. Lisboa: Faculdade de Direito da UNL, 2004.), que consistia numa compilação de textos essenciais para a história do constitucionalismo monárquico em Portugal (os textos das constituições, os projetos constitucionais, os debates constituintes, vários manuais de lições universitárias de direito constitucional bem como outras obras de referência para a história constitucional portuguesa), acrescidos de instrumentos de pesquisa, biobibliografia dos autores incluídos, repertórios da época, e índice de tópicos doutrinais referentes aos manuais recolhidos.

Mais do que a análise ou a exploração de dados para a criação de conhecimento e interpretação, essa vertente do trabalho promovido por António Hespanha virava-se essencialmente para a disponibilização de informação, da forma mais acessível e completa possível, com o acrescento da mais-valia que o conhecimento do especialista pode adicionar a esses corpus. Um acentuado sentido de serviço público e uma sensibilidade aguda para a “dimensão coletiva da construção da história” (HESPANHA, 2010HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445., p. 437).

No entanto, António Hespanha nunca abandonou essa outra vertente, a da análise, em que a tecnologia e os meios informáticos são postos a serviço do historiador, e voltou a demonstrá-lo num conjunto de textos mais recentes, em que, advogando um “retorno ao serial numa fase pós-positivista da historiografia jurídica” (HESPANHA, 2015HESPANHA, António Manuel. De novo os factos – uma proposta de retorno ao serial numa fase pós-positivista da historiografia jurídica. Conferência no VII Congresso do IBHD, Curitiba, 2015, gentilmente cedida pelo autor.), apresentou uma série de exemplos de aplicação dessa démarche ao trabalho do historiador do direito.

Nesses textos, Hespanha defende que, na posse de novas tecnologias, o historiador necessita de novos dados e, com eles, de novos métodos para a sua exploração. No primeiro (HESPANHA, 2015HESPANHA, António Manuel. De novo os factos – uma proposta de retorno ao serial numa fase pós-positivista da historiografia jurídica. Conferência no VII Congresso do IBHD, Curitiba, 2015, gentilmente cedida pelo autor.), apresenta um conjunto de “pesquisas em curso que documentam a possibilidade de colher dados massivos sobre práticas jurídicas e de obter, a partir deles, imagens inéditas e mais autênticas sobre o direito em sociedade”. Primeiro, um estudo sobre litigiosidade dos tribunais periféricos, quotidiana, e o seu “negativo”, da litigiosidade social que não recorre aos tribunais. Para o fazer, recorre a documentação de estatística criminal da época, cruzando com elementos de demografia e geografia histórica. De seguida, o autor apresentava exemplos de história do livro e dos conceitos jurídicos através da utilização de grandes repositórios online, de referências bibliográficas (WorldCat) ou de textos integrais (Google Books), e, recorrendo a métodos simples de busca ou a ferramentas mais sofisticadas de análise textual e análise estatística de textos, demonstra como essa informação de larga escala (big data) pode ser colocada a serviço da história da edição, da análise de perfis de autores, do estudo da difusão das obras em bibliotecas, das vogas na titulação de livros. Ferramentas mais complexas, que exploram os textos mais a fundo, permitem outro tipo de análises, como detetar evoluções do uso de conceitos, questionando a sua associação à evolução das representações sociais acerca do direito expressas nos textos jurídicos e não jurídicos.

No segundo (HESPANHA, 2017HESPANHA, António Manuel. Razões de decidir na doutrina portuguesa e brasileira: um ensaio de análise de conteúdo. In: HESPANHA, A. M. Sacerdotes do direito: direito, juristas e poder social no liberalismo oitocentista. Lisboa: Amazon, 2017.), o autor propõe a aplicação dos métodos da análise de conteúdo a um corpo de textos alargado da doutrina judicial portuguesa e brasileira, buscando tendências e modas e a descoberta de estruturas de argumentação e de organização textual pela utilização de métodos que procedem à “de-subjetivação dos textos” e à “desconsideração dos sentidos intencionais dos autores, para explorar os sentidos objetivos do texto”. Com o recurso às ferramentas de análise de conteúdo, é possível identificar frequência de utilização de palavras ou de conjuntos de palavras ou conceitos, a frequência do uso de estruturas frásicas, ou até definir universos de referências. Trata-se de um texto exploratório, que põe em prática as metodologias propostas num projeto de pesquisa que o autor candidatou a um concurso da FCT em 2009, com o título Análise textual da estrutura, legibilidade e fundamentação doutrinal e normativa de textos judiciais portugueses. Um contributo para o aperfeiçoamento da justiça (PTDC/CPJ-JUR/111210/2009)13 13 O projeto não se realizou por, no contexto da política de austeridade, ter sido aprovado com um corte substancial no pequeno financiamento solicitado, o que levou António Hespanha a abdicar do financiamento. . Aqui, o autor propõe-se analisar os fundamentos invocados pelos autores para justificar as soluções jurídicas propostas por juristas portugueses e brasileiros da primeira metade do século XIX com o intuito de responder a um conjunto triplo de questões: qual era o quadro das fontes de direito; qual a influência dos códigos europeus do início do século XIX; e qual a extensão da influência francesa e alemã na doutrina jurídica de língua portuguesa. A questão de fundo a que se procura responder com esse questionamento é saber que direito era efetivamente aplicado depois da promulgação das constituições e antes da entrada em vigor dos respetivos códigos civis. Em que medida o constitucionalismo, em Portugal e no Brasil, se constitui como um momento de rutura na tradição doutrinal do direito? Em que medida as autoridades doutrinais pré-constitucionais se mantiveram como elementos do arquivo textual dos civilistas do oitocentos? Como fontes, o autor recorre a manuais de civilistas de referência, um português e um brasileiro, complementando-os com obras que constituíssem termos de comparação. Identificam-se autores citados para reconstruir o universo de referência do autor. Um estudo de textos que é também um estudo do metatexto e do universo de leituras dos seus autores e da constelação de autoridades que cada texto convoca.

No terceiro artigo (HESPANHA, 2019aHESPANHA, António Manuel. O direito na Academia (Coimbra, 1570-1640). A identificação do direito numa comunidade comunicativa. Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno XLVIII, 2019a, p. 537-618.), o autor regressa ao projeto SILA e ensaia uma exploração dos seus dados quantitativos e qualitativos de uma forma extremamente original e inovadora, dominando de forma ágil as possibilidades abertas pelas ferramentas digitais. Ao rever a base de dados, muitos anos mais tarde, e apercebendo-se da proliferação de produção de apostilas universitárias nas faculdades de leis e de cânones da Universidade de Coimbra, o autor propôs-se analisar o direito ensinado naquelas faculdades, focando-se na figura dos lentes e procurando fazer a história de “uma comunidade de autores que participavam numa específica esfera comunicativa e por ela eram modelados” (HESPANHA, 2019aHESPANHA, António Manuel. O direito na Academia (Coimbra, 1570-1640). A identificação do direito numa comunidade comunicativa. Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno XLVIII, 2019a, p. 537-618., p. 537). A informação recolhida na base permite identificar os professores com produção de literatura jurídica (a totalidade do universo dos lentes de direito), os períodos em que estiveram ativos na universidade, as cadeiras lecionadas. Resguardado pela solidez da quantidade dos dados de que dispõe, o autor vê as suas intuições convertidas em demonstrações. Circunscreve o âmbito de análise ao período de 1570 a 1630, que é mais homogéneo na disponibilidade e qualidade dos dados, e produz um estudo exemplar do campo dos professores de direito de Coimbra, do perfil da sua carreira académica e, sobretudo, da sua produção enquanto professores: temas explorados, modas académicas, tradições de escrita, relações de patrocínio entre mestres e discípulos, os temas da inovação e da tradição, tudo isso partindo de uma pequena amostra dos dados seriais da velha base SILA.

Conclusão

No nosso texto procurámos destacar uma vertente do trabalho de António Hespanha que não mereceu tantas referências nas homenagens que lhe têm sido dedicadas. Um perfil que, no entanto, marcou de forma profunda o seu percurso intelectual e a sua prática cívica sempre que ocupou cargos executivos que lhe permitiram influenciar e direcionar políticas de investimento. Como historiador, sempre foi precursor no recurso a ferramentas informáticas, vistas como uma forma de amplificar a sua capacidade de lidar com grandes massas de dados, extensão informativa que sempre foi a sua forma de eleição de produzir hipóteses interpretativas. Estas deviam sempre ancorar-se em documentação, e o mérito do historiador residia tanto na sua capacidade interrogativa e interpretativa quanto na sua imaginação para criar novas fontes. O que Hespanha nos mostrou, até aos seus últimos trabalhos, foi que essa atenção a novas fontes esteve sempre desperta.

Da mesma forma, enquanto pesquisador mas também enquanto decisor, a sua ação sempre foi essencialmente orientada por uma noção muito profunda do serviço público, para a criação de estruturas duradouras de difusão de conhecimento e para a disponibilização, em acesso aberto, das compilações de informação desenvolvidas com dinheiros públicos, a serviço de uma ideia muito clara de comunidade e de partilha. Também aqui, o recurso às tecnologias digitais alargava as possibilidades.

A sua atenção às possibilidades abertas pela tecnologia foi uma constante, tal como a sua permanente curiosidade pela última novidade tecnológica. No contacto próximo com ele que tive a sorte de usufruir, são inúmeros os momentos que partilhou comigo de experimentação com um novo scanner portátil, um novo programa de tratamento de texto, um CD-ROM inovador, um site espantoso, uma nova app de reconhecimento de voz. Sua curiosidade e seu pioneirismo eram constantes. Um dia combinou comigo encontrar-nos na sala de referência da Torre do Tombo, ao final do dia, para conversarmos sobre um projeto conjunto. Quando lá cheguei, a sala estava vazia, mas eu ouvia a sua voz à distância por trás das várias estantes abandonadas. Parecia falar sozinho, o que seria estranho nele. Ao aproximar-me, percebi que ditava um índice de uma coleção do arquivo para uma app de reconhecimento de voz no seu tablet, que ia transcrevendo a informação lida para texto eletrónico. Explicou-me o método, não deixando de se queixar “da pouca inteligência destas máquinas…”

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    Universidade Nova de Lisboa (UNL, Lisboa, Portugal).
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    Para uma proposta inteiramente assente na necessidade de um retorno à longue durée e a uma nova “viragem quantitativa”, cf. Guldi e Armitage (2014)GULDI, Jo; ARMITAGE, David. The History Manifesto. Cambridge: Cambridge University Press, 2014..
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    Para uma discussão em torno das possibilidades mais recentes de uma “viragem espacial” na história do direito, que dialoga muito com as propostas de António Hespanha, veja-se Costa (2013)COSTA, Pietro. Uno “spatial turn” per la storia del diritto? Una rassegna tematica. Max Planck Institute for European Legal History Research Paper Series, n. 2013-07, 2013, p. 1-35..
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    “Enquanto estive no ICS, já antes e também depois disso, sempre apostei em projectos de investigação colectivos, incorporando estudantes e jovens bolseiros, produzindo resultados comunitariamente úteis e educando na definição de objectivos e no seu cumprimento. Revejo-me muito nisto e fico contente por poder ser associado a uma reacção contra o egoísmo, o individualismo e uma competitividade paranoica do trabalho intelectual, devastadora para a sua qualidade e o seu sentido social, assim como me agrada, do mesmo modo, ter cultivado uma certa ‘estética profissional’, não ansiosa pela fama ou pelo reconhecimento público, não obcecada pela competição entre colegas; enfim, cool [...]” (HESPANHA 2011HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445., p. 437.
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    Sem existência formal, porque ainda não vigorava a figura dos grupos de pesquisa ou das linhas de investigação, o grupo tinha a expressiva designação interna de Aracne e integrava nomes como Ana Cristina Nogueira da Silva, André Belo, Ângela Barreto Xavier, Carla Araújo, Catarina Madeira Santos, Dulce Freire, Joana Estorninho de Almeida, Margarida Melo, Nuno Camarinhas, Pedro Cardim, Rui Tavares, Sandra Monteiro ou Susana Gomes da Silva.
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    Esse projeto exploratório, que envolveu a exploração de um sotware dinamarquês (MaPs), apresentado ao grupo de pesquisa no âmbito de um seminário conjunto com colegas da Universidade de Copenhaga, seria interrompido pela nomeação de António Hespanha para a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
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    Sobretudo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1936-1988)GRANDE Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, 1936-1988.; Machado (1741-1759)MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca lusitana: histórica, crítica e cronológica. Lisboa: Occidental na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741-1759.; e Silva (1858-1923)SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário bibliográfico português: estudos aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858-1923..
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    Para além do meu trabalho com os juízes letrados portugueses (CAMARINHAS, 2010CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime: Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2010.), refira-se Almeida (2004)ALMEIDA, A forja dos homens: estudos jurídicos e lugares de poder no séc. XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004. ou Subtil (2010)SUBTIL, José (Ed.). Dicionário dos desembargadores (1640–1834). Lisboa: EDIUAL, 2010. só para citar os que desenvolveram trabalhos mais proximamente influenciados pela experiência do SILA e do Optima Pars. Uma apreciação, por António Hespanha, do conjunto das obras desses autores que exploraram grandes massas de dados pode ser encontrado em Hespanha (2019b)HESPANHA, António Manuel. Thirty years of studies on prosopography of Portuguese early modern jurists. Rechtsgeschichte – Legal History, n. 27, 2019b, p. 22-50..
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    O exemplar utilizado era a edição de Coimbra, 1686, que reunia num só volume os dois tomos da edição original.
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    Com processador 486 e uma memória RAM de 4Mb.
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    Digital Audio Tape, um dos formatos testados pela indústria informática no final da década de 1980 e que acabaria por perder terreno para o disco compacto e, depois, para os DVDs.
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    A que acrescentava: “Não substituindo o livro tradicional […], o CD-ROM de texto abre novos caminhos ao trabalho dos historiadores, materializando métodos e processos que, há alguns anos, eram tão míticos como a mítica e esplêndida Ophir a que se alude no título da coleção”.
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    O projeto não se realizou por, no contexto da política de austeridade, ter sido aprovado com um corte substancial no pequeno financiamento solicitado, o que levou António Hespanha a abdicar do financiamento.
  • CAMARINHAS, Nuno. António Hespanha e as vésperas das humanidades digitais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 131-144, dez. 2022.

Referências

  • ALMEIDA, A forja dos homens: estudos jurídicos e lugares de poder no séc. XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004.
  • CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime: Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2010.
  • COSTA, António Carvalho da. Corografia portugueza e descripçam topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem; varões illustres, gealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos Bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens Lisboa: na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706-1712.
  • COSTA, Pietro. Uno “spatial turn” per la storia del diritto? Una rassegna tematica. Max Planck Institute for European Legal History Research Paper Series, n. 2013-07, 2013, p. 1-35.
  • GRANDE Enciclopédia Portuguesa e Brasileira Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, 1936-1988.
  • GULDI, Jo; ARMITAGE, David. The History Manifesto Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
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  • HESPANHA, António Manuel. Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique. Ius Commune X, 1983, p. 1-47.
  • HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal - séc. XVII. Lisboa: ed. Do autor, 1986.
  • HESPANHA, António Manuel. Digitalização da doutrina jurídica académica portuguesa (c. 1800-c.1910). Historia Constitucional, n. 8, 2007, p. 357-359.
  • HESPANHA, António Manuel. Entrevista a António Manuel Hespanha por Pedro Cardim. Análise Social, v. XLVI, n. 200, 2011, p. 430-445.
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  • MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca lusitana: histórica, crítica e cronológica. Lisboa: Occidental na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1741-1759.
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  • SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário bibliográfico português: estudos aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858-1923.
  • SUBTIL, José (Ed.). Dicionário dos desembargadores (1640–1834) Lisboa: EDIUAL, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2021
  • Aceito
    02 Maio 2022
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