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Aprendendo a viver: Diários, 1935- 1936, de Eunice Penna Kehl

Learning how to live: “Diários, 1935-1936”, by Eunice Penna Kehl

KEHL, Eunice Penna. Diários, 1935-1936. Posfácio de Maria Rita Kehl. Campinas: Chão Editora, 2022

RESUMO

Diários, 1935-1936 reúne a escrita inaugural de Eunice Penna Kehl (1901-1980), uma mulher culta, de classe média, que registrou seu dia a dia entre 1935 e 1970, em 14 cadernos. Publicados na íntegra, os dois primeiros volumes trazem as anotações da diarista sobre a vida familiar, social e a rotina doméstica, quando morava com o marido e os filhos no Rio de Janeiro. O trauma vivido por Eunice com a morte do primogênito, causada por uma septicemia, em outubro de 1935, marca os diários em antes e depois. A resenha discute essa mudança e a prática do diário sob a perspectiva foucaultiana do exercício de si.

PALAVRAS-CHAVE
Eunice Penna Kehl; diários; escrita feminina

ABSTRACT

Diários: 1935-1936 gathers the inaugural writing of Eunice Penna Khel (1901-1980), an educated, middle class woman who registered her day-to-day life between 1935 and 1970 in fourteen notebooks. Published in full, the two first volumes bring the notes of the diarist on family and social life, and domestic routine, when she lived with her husband and children in Rio de Janeiro. The trauma experienced by Eunice with the death of her first born, caused by septicemia, in october 1935, marks the diaries with a before and after. The review discusses that change and the practice of the diary from the Foucauldian perspective of the practices of the self.

KEYWORDS
Eunice Penna Kehl; diaries; feminine writing

A crítica literária concorda que há propensão das mulheres para escrever diários (DIDIER, 1976DIDIER, Béatrice. Le journal intime. Paris: Presses Universitaires de France, 1976., p. 40-41), mas as diaristas femininas ocupam um lugar à sombra. Diários, 1935-1936, de Eunice Penna Kehl, situa-se na contracorrente desse cenário e consolida o projeto da Chão como editora que ilumina a memória sob perspectivas em geral esquecidas. Entregar-se à tarefa de manter um diário parece simples, basta pensar nos populares diários com chave e cadeado especialmente associados a garotas, mas é raro quem, como Eunice, tenha se lançado com constância e disciplina a essa escrita por mais de décadas e ainda preservado sua obra. Maurice Blanchot (2013, p. 270)BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. chama o calendário de “demônio” ao examinar o pacto enfrentado pelo diarista. Eunice tinha 34 anos quando começou a se dedicar a essa prática, acumulando 14 cadernos escritos entre 1935 e 1970. Maria Rita Kehl, neta de Eunice, apresentou o montante à editora, que decidiu pela publicação dos volumes inaugurais na íntegra. Na abertura da obra, uma nota breve reúne informações objetivas e relevantes sobre a publicação, e a editora não se furta a arriscar sobre o que teria impulsionado Eunice na empreitada: “muito provavelmente movida pelo acontecimento trágico que a pegou de surpresa em 1935” (KEHL, 2022KEHL, Maria Rita. De que fibra sou eu feita?. In: KEHL, Eunice Penna. Diários, 1935-1936. São Paulo: Chão Editora, 2022, p. 331-387., p. 7). A suposição leva o leitor ao caráter ambivalente dos diários: lê-los é render-se ao jogo de formular perguntas e elucubrar respostas.

Ao transcrever e digitalizar a totalidade do conjunto, a Chão estudou a possibilidade de fazer uma seleção, mas reconheceu o quanto submeteria o original a um olhar restrito. Por isso optou pela publicação na íntegra mantendo, inclusive, as anotações de Eunice das contas pagas mês a mês. É impossível não ler com interesse os gastos com carne, ovos, tangerinas, cigarro e cinema. Da maneira como foi publicado, as possibilidades de leitura permanecem abertas. O diário, enquanto manuscrito, possui um estatuto diverso daquele do de uma obra publicada: “mesmo datilografado, existe apenas um exemplar único, cuja reprodução trai o status original” (JORDANE, 1995, p. 119-120 apud SIMONET-TENANT, 2004SIMONET-TENANT, Françoise. Le journal intime: genre littéraire et écriture ordinaire. Paris: Téraèdre, 2004., p. 13).

Um exemplo de obstáculos enfrentados na edição de diários é o fato de Eunice escrever em “five-year diaries”, um estilo pouco comum no Brasil. Nele, cada folha é dividida em cinco partes correspondendo ao mesmo dia do mês, ao longo de cinco anos. Não são esses os modelos utilizados por ela em 1935 e 1936, mas pensar em como publicar em livro um ano baseado em um “five-year diaries” ajuda a dimensionar as implicações editoriais. Uma opção seria descartar o registro dos outros quatro anos e supor que as entradas não se contaminariam? Além disso, qual será o efeito dessa escrita submetida a um espaço predeterminado, já que para cada ano de um “five-year diaries” há sempre o mesmo número de linhas? Essas questões reforçam o caráter do diário manuscrito como objeto ímpar e próximo de uma obra de arte (LEJEUNE, 2014LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., p. 301).

As perguntas “por quê”, “para quê” e “para quem” acompanham a leitura dos diários e estimulam variadas respostas. Por mais que escreva regularmente, Eunice não responde diretamente nenhuma delas, algo comum entre diaristas. Segundo Philippe Lejeune (2014, p. 302-306)LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., as razões principais que levam as pessoas a escrever diários são: conservar a memória, sobreviver, desabafar, conhecer-se, pensar, deliberar, resistir, e simplesmente escrever: “Mantém-se enfim um diário porque se gosta de escrever”. O estudioso também propõe a imagem do diário como uma “Garrafa lançada ao mar”: uma valiosa contribuição para a memória coletiva. O filósofo Michel Foucault (2006, p. 147)FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Organização e seleção: Manoel Barros de Motta. Tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. remonta o aparecimento da escrita de si como ética dos cuidados de si na Grécia antiga; mais tarde, pontua, a literatura cristã associará a prática aos exercícios de confissão como meio de evitar o pecado. O efeito terapêutico dos diários perdura e vai além. Ao inscrever-se no papel sistematicamente, Eunice parece desenvolver uma ética, um modo de vida em que escrita e vida se articulam. Ela chega a fazer cópia do seu diário mesmo supondo: “Ninguém vai ler o que escrevo no meu diário, posso, pois, continuar até a verificação de que deva ou não prosseguir” (p. 26). Maria Isabel Silveira2 2 Maria Isabel Silveira (1880-1965), casada com o escritor e político Valdomiro Silveira (1873-1941), cujo acervo pessoal foi doado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), em 2006, publicou o livro de memórias Isabel quis Valdomiro, pela editora Francisco Alves, em 1962. Em meio aos documentos do arquivo, destaca-se o conjunto de 62 cadernos que pertenceram a Maria Isabel, entre os quais 44 volumes (1925-1965) que acolheram a sua escrita diarística. A dissertação Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida (MENDES, 2021), sob orientação do professor Marcos Antonio de Moraes, defendida em 2021, no Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, focaliza os diários, colocando em pauta a questão da escrita feminina e o memorialismo de mulheres. , a principal diarista que venho pesquisando desde o mestrado, chegava a fazer rascunho dos seus diários. Em um pequeno bloco, a lápis, tomava nota de episódios que depois eram passados a limpo para o caderno principal. São muitos os interesses que motivam a leitura desse gênero, e a curiosidade por uma intimidade (outra) que possa se revelar e surpreender é uma delas. Como pesquisadora de diários de autoria feminina, procuro entender qual o sentido mais profundo que mobiliza essa escrita e suas linhas de força. A motivação de Eunice viria do desejo de tornar-se escritora? Afinal, o gosto dela pela escrita não se questiona.

Mineira de Juiz de Fora (MG), Eunice casa-se com Renato Kehl em 1920 e com ele tem dois filhos, Sergio Augusto e Victor Luis, que morreu de septicemia em 1935. Nas palavras de Eunice: “Mil novecentos e trinta e cinco foi o último ano de felicidade completa que vivi, a contar da data do meu casamento” (p. 72). A escrita do primeiro diário inicia-se em março, a infecção que acomete Victor é registrada pela primeira vez em 8 de outubro, e a morte ocorre nove dias depois. A perda incontornável estabelece um antes e depois na escrita. No diário de 1935 observam-se modulações no tom que são abolidas em 1936. O primeiro dos diários de Eunice experimenta a liberdade da forma, tal qual define Blanchot (2013, p. 270)BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.: “tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém na ordem e na desordem que se quiser”.

Eunice chama de “Divagações” quatro entradas em 1935 que se referem a trechos mais longos, caracterizados por um esforço intelectual de compreender alguma questão relacionada ao casamento ou à maternidade. Nas “Divagações” de 27 de março há um movimento importante: ela revela o desejo de ser escritora e ao mesmo tempo explica o que a leva a renunciar a ele. No que parece uma análise aguda, Eunice se aproxima da premissa de Virginia Woolf no célebre Um teto todo seu. Tendo um marido que escreve – Renato Kehl é um dos principais autores eugenistas brasileiros –, Eunice entende que a mesma casa não poderia abrigar um marido escritor e uma esposa escritora:

Bem vontade tenho eu de saber escrever. Gostaria imenso de me impor a admiração e respeito de toda gente por este dom, espalhando ideias, mas boas ideias. Não sei por quê, nem em que me baseio para esperar que, futuramente, serei uma grande escritora. Nada, por enquanto, revela em mim esta tendência, a não ser uma sensação, ou antes, uma intuição muito íntima de que isto vai acontecer um dia.

(p. 18).

[...] O materialismo, a banalidade das ocupações femininas combina tão pouco com as preocupações intelectuais, que já me conformei com a ideia de não pensar mais em escrever tão cedo. Outra cousa me afasta também da vida literária. Não creio que um casal possa ser feliz, quando marido e mulher lutam no mesmo campo de competições. O homem raramente se conforma com o sucesso literário da esposa, por mais que a ame. É um sentimento tão natural, tão humano e tão... masculino, que creio não poder escapar à regra. Para que o orgulho masculino nada sofresse com isto, seria necessário, que o marido fosse um espírito de uma superioridade fora do comum, ou um simples “joão-ninguém” que ficasse satisfeito em ser o “marido de fulana de tal” e nada mais.

(p. 19).

O tom das “Divagações” não se repete no diário de 1936, fortemente atravessado pelo luto. É como se a escrita dada a alguns desvios dos fatos diários tivesse sido censurada. O diário de 1935 cessa no dia seguinte ao da morte de Victor Luis, 18 de outubro, mas Eunice volta nele posteriormente e acrescenta um apêndice escrito em 10 de março de 1936, dando a esse diário um fechamento. O texto marca o fim de uma voz que admite uma forma mais aberta. No diário de 1936, prevalece o tom do pesar com predominância de referências a melancolia, tristeza e culpa. A escrita se sujeita ao luto, e repetidamente Eunice revisita as últimas lembranças do primogênito. No dia 24 de fevereiro, em um gesto comovente, ela lê um livro de Victor:

Segundo dia de Carnaval. Mais barulho e mais alegria. Dentro de nós uma angústia sem fim.

Fomos ao barulho no Leblon. Durante o dia, ficamos em casa lendo. Li um livro do Victor: O náufrago do espaço. É um livro de aventuras fantásticas. Gosto de ler os seus livros. Tenho a impressão que ele está ao meu lado. É como se estivesse conversando com ele, fazendo reviver personagens que ele conheceu e dos quais gostou. Sinto, quem sabe, as mesmas emoções que ele sentiu e isto me consola.

(p. 112).

O texto do apêndice explica a mudança brusca ocorrida com a morte do filho e talvez tenha sido redigido com a finalidade de justificar o abandono da escrita:

Durante quase quinze anos, nossa vida foi só harmonia e paz. Éramos quatro. [...] Foi um choque tão grande, que no primeiro momento não pude realizar a extensão de minha desgraça. Fiquei apática. Nem chorar sabia. Tudo mudou de repente na minha vida. Renato não quis mais ficar em Águas Férreas. Em poucos dias ficou decidida nossa mudança para Demétrio Ribeiro, onde moraríamos com Cecilia. Desde novembro cá estamos, vivendo juntos num casarão enorme, velho, mas confortável. Vivo cansada. Não tenho um momento de descanso.

(p. 73).

Apesar de revisitar com frequência a dor da perda e a culpa, o diário de 1936 apresenta uma Eunice muito ativa. Na década de 1930, ela se torna empreendedora e com uma sócia administra uma academia de ginástica para mulheres. O posfácio assinado por Maria Rita Kehl, além de ser um texto afetivo que aproxima mais o leitor da Eunice de fora dos diários, aborda questões instigantes, como a relação da autora com o marido eugenista e suas afinidades políticas. Mesmo sem formação universitária, Eunice registra com prazer suas atividades intelectuais: leituras de obras literárias e filosóficas e aulas de alemão, por exemplo. Esse é um dos traços em comum com Maria Isabel Silveira, que lê em italiano e francês, aprende inglês, toca piano e tem aulas de canto. São duas diaristas pertencentes a uma burguesia culta e instruída que reproduzem o padrão de identidade feminina e seus papéis sociais. Porém, se de um lado esses diários não apresentam discursos contra-hegemônicos, de outro, neles se observa – pelas inúmeras atividades que essas mulheres desempenham durante o dia – uma procura incessante por preencher a vida e torná-la útil. Tanto Eunice, quanto Maria Isabel concordam (pela negação) na definição de um dia bem vivido. Eunice escreve em 8 de maio de 1935 e Maria Isabel em 15 de janeiro de 1925:

Outro dia pau e desperdiçado. Nada faço quando estão encerando a casa. Ajudei Nair e cansei-me. A única cousa útil que fiz foi ir à ginástica pela manhã. Fiz algumas compras e cheguei atrasada para o almoço. Renato e Serra Netto me esperavam. Amélia saiu do hospital e foi para casa.

(p. 40).

15) quinta. Chove desde ontem à tarde e choveu o dia todo. Não fomos ao banho de mar. De manhã estudei piano e estive em arranjos de casa. Nada fiz durante o dia. Dormi. A atmosfera muito carregada deixa a gente desanimada. Não saí nem à noite, hora em que estiou.

(Maria Isabel apud MENDES, 2021MENDES, Mariana Diniz. Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14022022-215336.
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, p. 92).

A procura por uma ocupação ou algo em que possa se engajar parece se contrapor a uma espécie de vazio que, mesmo antes da morte do primogênito, aparece no primeiro diário: “Passei metade do dia cosendo, nervosa e triste sem motivo” (p. 14), “Deitei-me triste e acordei triste” (p. 34), “Estou nervosa e abatida. Chorei sem motivo” (p. 38). São construções recorrentes e muito parecidas com as escritas por Maria Isabel Silveira, anotadas em minha dissertação: “Voltei para casa, estive muito nervosa e depois do jantar chorei muito”, “Chorei muito cedo e ontem ao deitar-me. Uma tristeza de morte” (MENDES, 2021MENDES, Mariana Diniz. Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14022022-215336.
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, p. 133; p.163). São períodos soltos e sem relação direta com eventos que poderiam explicá-los. Em geral, irrompem no papel e quebram a estabilidade das frases que sucedem e precedem. A forma violenta como aparecem denotaria a impossibilidade de escreverem sob o signo do murmúrio, do queixume e do lamento? No caso de Eunice, a experiência do luto eclipsou o tédio e o vazio registrado em 1935, na entrada de 31 de março: “Último dia do mês; domingo de tédio, tédio, tédio! Foi no que consistiu o dia. Tédio, por quê? Nem eu sei. Fomos ao cinema ver Kay Francis. Melhora passageira, mas o mal cá está novamente. Só desejo que chegue a hora de dormir. Quem sabe amanhecerei melhor?” (p. 25).

Diários, 1935-1936 parece se constituir como espaço do devir. Mesmo inserida em uma dinâmica de poder patriarcal, Eunice relaciona vida e escrita como um território de si, trata-se “de uma linha de fuga, ou ainda de uma simples saída” (DELEUZE; GUATTARI, 2017DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução: Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.). A frequência sistemática aos diários transforma a escrita em um lugar para onde voltar e se torna um espaço de atenção consigo mesma e de elaboração de si. A presença do tempo meteorológico é um traço recorrente que pode parecer uma anotação banal, mas leio como um ritual de passagem, uma marca do deslizamento do vivido para a escritura: “O dia foi chuvoso e triste” (p. 36), “Choveu e fez frio” (p. 36), “Choveu torrencialmente” (p.40), “Já estou cansada de tanta umidade e frio. Tenho saudades do sol” (p. 120), “Muito calor” (p. 131). Os diários de Maria Isabel também trazem essa marca e ela chega a criar o verbo “noroestou” (apud MENDES, 2021MENDES, Mariana Diniz. Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14022022-215336.
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, p. 99)

Se, de um lado, diários privilegiam a liberdade por serem multiformes (SIMONET-TENANT, 2004SIMONET-TENANT, Françoise. Le journal intime: genre littéraire et écriture ordinaire. Paris: Téraèdre, 2004., p. 12), por outro, é comum cada diarista elaborar uma arquitetura própria para suas entradas, uma espécie de moldura que se mantém. As entradas de Eunice não possuem tanta regularidade na forma, mas o luto como presença constante em praticamente todas as páginas do diário de 1936 acaba produzindo esse efeito de estabilidade. Outro dado constante são os finais das entradas que anunciam o anoitecer: “Deitamo-nos cedo”, “Vou dormir bem cedo”, “Fomos dormir cedo e é só”, “Deitamo-nos cedo. Noite bem dormida”. Os diários também adormecem à noite na expectativa de, no dia seguinte, provê-los com uma nova entrada, e assim o diarista produz um movimento circular.

Não por acaso Eunice se torna sócia de uma academia de ginástica para mulheres, pois ela mesma é uma mulher afeita a exercitar o corpo, como mostram bem os diários: “Iniciei minha ginástica, depois de um mês de descanso” (p. 27), “Pela manhã, ginástica. Depois algumas compras, corte de cabelo” (p. 31), “Fiz hoje uma ginástica ótima!” (p. 32), “Fui à ginástica apesar de uma noite mal dormida, cheia de emoções” (p. 37), “A única cousa útil que fiz foi ir à ginástica pela manhã” (p. 40). O movimentar-se na escrita parece envolver o mesmo ímpeto de exercitar o corpo e se ajustaria a uma ginástica da subjetivação alinhada com a ética do cuidado de si, conforme problematiza Michel Foucault:

Ora, em meus cursos no Collège de France, procurei considerá-lo [o problema das relações entre o sujeito e os jogos de verdade] através do que se pode chamar de uma prática de si, que é, acredito, um fenômeno bastante importante em nossas sociedades desde a era greco-romana, embora não tenha sido muito estudado. [...] o de um exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser.

(FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Organização e seleção: Manoel Barros de Motta. Tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 265).

Os diários inaugurais talvez tenham correspondido a um novo espaço na vida de Eunice, onde, paradoxalmente, a quietude da escrita figurasse em uma contínua busca por movimento e ação. Quem sabe ao tornar os diários um exercício de si, Eunice tenha conseguido preencher o vazio, vencer o tédio e transformar a dor da vida em algo suportável e mais interessante.

  • 2
    Maria Isabel Silveira (1880-1965), casada com o escritor e político Valdomiro Silveira (1873-1941), cujo acervo pessoal foi doado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), em 2006, publicou o livro de memórias Isabel quis Valdomiro, pela editora Francisco Alves, em 1962. Em meio aos documentos do arquivo, destaca-se o conjunto de 62 cadernos que pertenceram a Maria Isabel, entre os quais 44 volumes (1925-1965) que acolheram a sua escrita diarística. A dissertação Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida (MENDES, 2021MENDES, Mariana Diniz. Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14022022-215336.
    https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14...
    ), sob orientação do professor Marcos Antonio de Moraes, defendida em 2021, no Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, focaliza os diários, colocando em pauta a questão da escrita feminina e o memorialismo de mulheres.
  • MENDES, Mariana Diniz. Aprendendo a viver: Diários, 1935-1936, de Eunice Penna Kehl. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 212-219, dez. 2022.

Referências

  • BLANCHOT, Maurice. O livro por vir Tradução: Leyla Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Tradução: Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
  • DIDIER, Béatrice. Le journal intime Paris: Presses Universitaires de France, 1976.
  • FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Organização e seleção: Manoel Barros de Motta. Tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
  • KEHL, Maria Rita. De que fibra sou eu feita?. In: KEHL, Eunice Penna. Diários, 1935-1936. São Paulo: Chão Editora, 2022, p. 331-387.
  • LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
  • MENDES, Mariana Diniz. Diários de Maria Isabel Silveira (1880-1965): vestígio e inscrição de uma voz comedida. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14022022-215336.
    » https://doi.org/10.11606/D.8.2021.tde-14022022-215336
  • SIMONET-TENANT, Françoise. Le journal intime: genre littéraire et écriture ordinaire. Paris: Téraèdre, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2022
  • Aceito
    19 Out 2022
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