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Do céu que nos cobre ao chapéu que nos desnuda

O número 84 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (RIEB), como de costume, traz uma ampla gama de assuntos aos leitores, contemplando o seu compromisso com a diversidade e a multidisciplinaridade enquanto tópicas contemporâneas. Se, no entanto, fosse possível imaginarmos um ponto de inflexão no conjunto de artigos aqui apresentados, a questão do corpo, ou do corpóreo, seja este entendido como o fulcro de representações e manifestações sociais, raciais, políticas, ideológicas, artísticas, seja como o locus de experiências de deslocamento e de territorialidade, talvez possa servir de balizador ou mote, provocando os leitores e instigando-os a pensarem nas múltiplas relações que são estabelecidas hodiernamente e historicamente tendo-o (o corpo) como evidência primordial de um acontecimento, no sentido deleuziano (DELEUZE, 2009DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009., p. 360).

Mylene Mizrahi (PUC-RJ), no artigo “Slippery stereotypes - hair and the aesthetics of race in Brazil”, analisa os tipos de penteado de mulheres negras como estratégias, na década de 2010, no Rio de Janeiro, para combater o racismo e o apagamento das diferenças ou inversamente para reforçá-los, corroborando os discursos sobre mestiçagem e branqueamento há muito em curso em nosso país. Mizrahi problematiza assim, para além do caráter performativo no trato dado aos cabelos e às cabeças, a mão de via dupla presente nos discursos estéticos de raça.

Rafael do Valle (UFSCar) retoma o antológico ensaio O espírito das roupas, de Gilda de Mello e Souza, no artigo “Ensaio sobre o chapéu: reflexões de Gilda de Mello e Souza a partir de um acessório da moda”, para pensar sobre o chapéu como um item de vestimenta que transcende o seu aspecto utilitário. Impregnada pelo corpo de quem o porta, e ao mesmo impregnando-o, a roupa em geral é afetada pelos gestos corporais, o que levou a autora a declarar “a moda como a mais humana das artes”. O chapéu, em particular, é apresentado como uma espécie de máscara que, ao ser vestida, desnuda um éthos ou o caráter do usuário que, por sua vez, se quer investido como sua imagem correspondente, muito embora falsa, pois se trata de uma ilusão criada apenas para o trato social. É assim, ao menos, que o chapéu é visto pela incessante ironia machadiana, lembrada pela ensaísta.

Em “Choque cultural, notas sobre uma entrevista de Celso Furtado a Zelito Viana, 1975”, Renata Bianconi (Unicamp) e Maria Alice Rosa Ribeiro (Unesp) comentam o curta-metragem Choque cultural, de Zelito Viana, criado a partir de uma entrevista com Celso Furtado após o seu retorno ao Brasil. Na entrevista, Furtado expõe didaticamente o desenvolvimento da sociedade colonial portuguesa no Brasil com a exploração da indústria açucareira, e como esta serviu para alicerçar as divisões sociais resultantes, com a formação de uma “classe de cima” e uma “classe de baixo”. Segundo as autoras, as opiniões de Furtado ajudaram Zelito a estruturar o seu filme, que busca dar visibilidade imagética aos conceitos de “dominação cultural e econômica”, percorrendo cidades brasileiras e mostrando, através de sua organização e desorganização urbana, o descompasso entre as classes referidas.

A adesão dos artistas à política e o modo como esta afeta a produção e também a recepção de sua obra são o tema do artigo “Pequena biografia política de Guimarães Rosa”, de Gustavo de Castro (UnB) e Andrea Jubé (UnB). O autor e a autora partem de um conjunto de documentos e entrevistas a fim de dar conta do posicionamento político do escritor, tido como flagrantemente conservador, em contraste com as suas posições progressistas no campo da escrita.

Em “O silêncio sinfônico da floresta. Geofonia, biofonia e antropofonia em A selva, de Ferreira de Castro”, Luca Bacchini (Sapienza Università di Roma) volta ao romance de Ferreira de Castro, publicado em 1930, tendo a floresta amazônica como cenário das mazelas enfrentadas pelos povos seringueiros. Tomando as descrições da mata como testemunhos de uma experiência real vivenciada pelo escritor, Bacchini busca entender como o romance pode ser pensado também como uma caixa de ressonância (e amplificação) dos sons da natureza, biológicos e não biológicos, encarecendo o efeito patético no eventual leitor atual de Ferreira de Castro.

Por sua vez, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (UFRJ), em “Dois cancioneiros inacabados: os caminhos cruzados de Amadeu Amaral e Mário de Andrade”, busca traçar elementos comuns na comparação entre o Cancioneiro caipira”, de Amaral, e “Na pancada do ganzá”, de Mário de Andrade, refletindo sobre o interesse pela cultura popular dos dois autores citadinos dentro do ambiente cultural demarcado pelo desenvolvimento do modernismo.

Flávio Oscar Nunes Bragança (UVA) e Priscila Faulhaber (MAST) buscam recompor a história de Eufrásia Teixeira Leite em “Eufrásia Teixeira Leite entre as finanças e a moda”, tendo-a como exemplo de emancipação econômica que alteraria o tradicional papel de submissão imposto à mulher em nosso meio (em muitos casos, até os dias atuais). Eufrásia encontrou na moda, segundo o autor e a autora, os meios adequados para a explicitação de sua identidade como mulher e como persona social inserida na sociedade burguesa no início do século passado.

Em “Paisagens brasileiras do século XIX: cotidiano e desafios dos viajantes naturalistas”, Fernando de Morais (UFT), Marina Haizenreder Ertzogue (UFT) e Reuvia de Oliveira Ribeiro (IFTO) analisam os diários de Johan Emanuel Pohl, George Gardner, Francis Castelnau, Louis Van Houtte e Auguste Biard, lendo-os sempre como documentos primários nos quais se expõem as dificuldades das expedições científicas feitas no Brasil no século XIX. Enfrentando toda sorte ou infortúnio de ocorrências, esses viajantes só podiam contar com o alento pelo auxílio inconstante da população nos locais pelos quais passavam, no mais das vezes se abrigando sob o céu do Brasil, com seu clima instável e a sua natureza inclemente.

Recuando mais no tempo, para o século XVIII, Aziz José de Oliveira Pedrosa (UEMG), em “Notas sobre a história da igreja Matriz de Santo Antônio, no distrito de Glaura, em Ouro Preto”, busca demonstrar, a partir de uma reconstituição histórico-arqueológica, as diversas fases da igreja de Glaura, exemplificando através dela o desenvolvimento acelerado da arquitetura setecentista local pari passu com o incremento da exploração mineral nas Minas Gerais.

A seção Criação convidou para este número o ator, diretor, dramaturgo e escritor Jé Oliveira, fundador do Coletivo Negro, que nos traz dois poemas em prosa inéditos: “Zoom nos ouvidos e nos olhos” e “As águas e os olhos”. Convidamos também a escritora e professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP Ana Paula Pacheco, que nos brinda com dois instigantes textos sobre o feminino, em seu “Grades e caixas”.

Na seção Documentação, o atual número conta com um excelente exercício de leitura filológica, a “Edição de carta autógrafa de Diogo da Sylveyra Vellozo ao governador da capitania de Pernambuco, Henrique Luiz Pereyra Freyre”, feito por Vanessa Martins do Monte (USP) e Phablo Roberto Marchis Fachin (USP), que versa especialmente sobre a dinâmica dos transportes naquela capitania em fins da década de 1730. A carta em questão, objeto desta edição, encontra-se na Coleção Alberto Lamego, no Arquivo do IEB.

Por fim, o número traz duas resenhas de publicações atuais que devem ser merecedoras de toda a nossa atenção. Em “Entre liberdade e prisão, estratégias para lidar com o regionalismo na arte moderna pernambucana”, Pedro Ernesto Freitas Lima (Unespar) se debruça sobre o livro Regional como opção, regional como prisão: trajetórias artísticas no modernismo pernambucano, de Eduardo Dimitrov, para evidenciar a relação de mão dupla (positiva e negativa) entre o trânsito dos conceitos de “periférico” ou “regional” e de “busca de identidade”, amplamente trabalhados pelo modernismo naquele momento de seu desenvolvimento histórico. Em “A tripla transformação da vida humana”, de Jaime Tadeu Oliva (USP) e Fernanda Padovesi Fonseca (USP), é analisado o livro L’Humanité: un commencement. Le tournant éthique de la societé-Monde, de Jacques Levy, no qual o autor expõe um tríplice conceito para entender as mudanças no mundo contemporâneo: “a formação de uma sociedade-Mundo, a emergência de uma sociedade de indivíduos e a virada ética”.

O atual número conta, como incursões visuais ao longo do volume, capa e contracapa, com gravuras do acervo do IEB, de autoria da artista Mariana Quito (Alentejo, Portugal, 1928-Santos, SP, Brasil, 2003). Esse acervo, composto ao todo de 188 gravuras (calcografias, relevos e colografias) foi gentilmente doado ao Instituto pela própria artista em duas remessas, em 1992 e em 1994, tornando-se objeto de uma pesquisa atenciosa da professora e pesquisadora Mayra Laudanna, que resultou na publicação do livro Mariana Quito, Portugal-África-Brasil: uma trajetória artística (LAUDANNA, 2013LAUDANNA, Mayra. Mariana Quito, Portugal-África-Brasil: uma trajetória artística. São Paulo: Edusp, 2013.) e em uma exposição nas antigas dependências do Instituto, com curadoria da referida professora.

Referências

  • DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
  • LAUDANNA, Mayra. Mariana Quito, Portugal-África-Brasil: uma trajetória artística. São Paulo: Edusp, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2023
  • Aceito
    20 Mar 2023
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