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Choque cultural, notas sobre uma entrevista de Celso Furtado a Zelito Viana, 1975

“Choque cultural”, notes on an interview by Celso Furtado to Zelito Viana, 1975

RESUMO

Este artigo traz algumas notas sobre o curta-metragem Choque cultural, dirigido por Zelito Viana, cujo fio condutor é a histórica entrevista de Celso Furtado ao diretor no Rio de Janeiro em 1975. Contextualizamos a entrevista e as circunstâncias que os reuniram. Sem a pretensão de fazer crítica cinematográfica, conectamos a fala de Furtado e as imagens do filme de Zelito e relacionamos as reflexões de Furtado na entrevista a suas obras publicadas no período em torno da realização do curta-metragem e nas décadas de 1980 e 1990.

PALAVRAS-CHAVE
Celso Furtado; Zelito Viana; Choque cultural.

ABSTRACT

This article brings some notes about the short film Choque cultural, directed by Zelito Viana, whose thread is the historic interview by Celso Furtado to the director in Rio de Janeiro in 1975. We contextualize the interview and the circumstances that brought them together. Without intending to do cinematographic criticism, we connect Furtado’s speech and the images from Zelito’s film and we relate Furtado’s reflections in the interview with the works he published in the period around the making of the short film and in the 1980s and 1990s.

KEYWORDS
Celso Furtado; Zelito Viana; Choque cultural.

O MUNDO QUE RODEIA A ENTREVISTA

O filme Choque cultural3 3 É possível assistir a Choque cultural no canal YouTube da Mapa Filmes. (1977) tem como centro a entrevista proposta por Zelito Viana (1938) a Celso Furtado (1920-2004), que se encontrava pela primeira vez no Brasil por uma temporada mais longa de cinco meses, desde que fora para o exílio dez anos antes. A entrevista foi realizada no apartamento de Furtado no Rio de Janeiro. O ambiente é o da biblioteca, onde se encontra o entrevistado sentado, tendo, a sua frente, uma mesinha com suas obras. Zelito não aparece, vemos eventualmente suas mãos reagindo a alguma fala do entrevistado e ouvimos vozes imprecisas. Zelito estava acompanhado pelo fotógrafo Lauro Escorel.

Em 1974 Furtado readquiriu os direitos políticos cassados pela ditadura militar através do Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm. Acesso em: nov. 2021.
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. O AI-1, promulgado oito dias após o golpe militar, cassava o presidente da República deposto, João Goulart (1919-1976), Leonel Brizola (1922-2004), Miguel Arraes (1916-2005), Darcy Ribeiro (1922-1997), Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014) e mais 97 pessoas entre governadores, deputados, professores, intelectuais, militares. Como os demais, Furtado foi cassado política e economicamente, proibido de exercer atividade em instituições públicas ou privadas que recebessem recursos públicos, sendo ele funcionário público. Ameaçado de ser preso, optou pelo exílio. No ar espalhava-se o clima de perseguição aos que colaboraram com o governo deposto. Impedido de trabalhar no Brasil passou pelo Chile (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social da Comissão Econômica para a América Latina - Ilpes/Cepal), pelos Estados Unidos (Universidade de Yale) e finalmente se estabeleceu na França, como professor da Sorbonne.

Em 1975, Furtado voltou ao Brasil para atender ao convite feito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por meio de d. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, para integrar o quadro docente da instituição. Coube ao reitor da PUC-SP, Geraldo Ataliba Nogueira, providenciar os trâmites para a contratação. A ideia inicial era a contratação em caráter permanente, para além de um semestre. Tratava-se de convidar Furtado para estruturar e dirigir o Instituto de Economia daquela instituição. Na concretização do convite atuaram dois exilados, Pedro Calil Padis (1939-1980), professor da Universidade de Paris e diretor do Instituto de Estudos de Desenvolvimento Econômico e Social (Iedes) da mesma universidade, e Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014), funcionário da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (FAO-BID), sediado em Washington (FURTADO, 2021FURTADO, Celso. Correspondência intelectual: 1949-2004. Seleção, introdução e notas de Rosa Freire d’Aguiar; posfácio de Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 231-240).

Furtado ministrou o curso de Economia do Desenvolvimento4 4 O conteúdo do curso encontra-se em Arquivos Celso Furtado v. 2 (FURTADO, 2008). Em sua correspondência do período, o economista manifesta a ideia de passar a dividir seu tempo entre a França e o Brasil, fórmula que lhe permitiria tanto dedicar-se ao estudo dos problemas brasileiros quanto manter-se “alerta sobre o que vai pelo mundo” (FURTADO, 2021, p. 132). nos meses de junho a setembro de 1975 e aproveitava para avaliar a possibilidade de retorno em definitivo ao país. No ar pairava um clima de liberalização do regime ditatorial, com a promessa de restabelecimento do habeas corpus e de relaxamento da censura à imprensa, o que o estimulava a repensar no retorno. Eram os anos do quarto presidente da ditadura militar, general Ernesto Geisel, que prometia a “distensão”, a “abertura política lenta, gradual e segura”. Entretanto, os sinais de uma “distensão” fortemente controlada por alguns setores militares do governo se manifestaram nos primeiros momentos. Os preparativos para a vinda de Furtado já foram extremamente tumultuados. Os responsáveis pela instituição educacional tomavam todos os cuidados para não ferir as suscetibilidades dos agentes da ditadura, ainda em pleno vigor e que perduraria pelos dez anos seguintes. Foram feitas consultas a Brasília e às forças militares que disputavam o poder, as famigeradas linhas “dura”, radicais contrários à distensão, liderados pelo general Silvio Frota, e “moderada”, inclinada a liberar o regime ditatorial, liderados pelo general presidente. Brigas, intrigas e assassinatos envolviam os embates entre os grupos. A chegada foi postergada em um mês, enquanto se aguardava a decisão dos militares.

Finalmente sua vinda foi liberada, pois, afinal, Furtado já cumprira os dez anos de cassação dos seus direitos, era professor em uma conceituada universidade francesa e gozava de reconhecimento internacional. O tumulto da liberação serviu para que o sonho da volta fosse aos poucos se desfazendo. Ainda não era o momento do regresso. O clima da “distensão” era pesado, impiedoso e cruel. Um mês após o retorno de Furtado a Paris, Vladimir Herzog, jornalista, diretor da TV Cultura do Estado de São Paulo, era assassinado pelo comando do II Exército no Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), sediado em São Paulo.

O encontro no Alto da Boa Vista5 5 Localização do apartamento de Furtado no Rio de Janeiro. , Rio de Janeiro julho de 1975

A entrevista foi sugerida a Zelito por Darcy Ribeiro. Na época Zelito discutia com Darcy a realização de um filme sobre indígenas, mais tarde realizado: Terra dos índios (1979)6 6 Recebeu o prêmio da Federação Nacional de Cine Clubes do Brasil (1979). Um importante debate sobre o filme foi organizado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em 2021. Há um novo documentário de Zelito sobre a situação indígena no Brasil intitulado: Da terra dos índios aos índios sem terra. O documentário, lançado em 2022, exibe a leitura feita por Marcos Palmeira de uma entrevista de Zelito com Darcy Ribeiro e fotografias cedidas por Sebastião Salgado. . Aproveitando a estadia mais prolongada de Furtado no Brasil, Zelito marcou a entrevista para conversar sobre o último livro do economista, O mito do desenvolvimento econômico, lançado no ano anterior. Furtado propôs falar sobre cultura, um dos temas que o preocupava desde o começo dos anos de 1970.

Zelito Viana7 7 Zelito Viana nasceu em Fortaleza. É produtor e diretor de filmes e documentários para o cinema e para televisão. Sua importante filmografia está disponível no site Mapa Filmes do Brasil. A trajetória cinematográfica de Zelito pode ser lida no livro autobiográfico Os filmes e eu, editado pela Record em 2022. foi responsável pela produção de dois dos dez mais importantes filmes brasileiros de todos os tempos, segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema: Terra em transe, de Glauber Rocha, em 1966, e Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, em 1984 (DIB, 2015DIB, André. Abraccine organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros. 2015. Disponível em: https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/. Acesso em: 3 nov. 2021.
https://abraccine.org/2015/11/27/abracci...
).

No livro de correspondência intelectual de Furtado há um breve comentário sobre Terra em transe. Furtado compartilha (Paris, 1º de abril de 1968) com Antonio Callado (1917-1997) sua opinião sobre o filme de Glauber Rocha. Comenta: “Vi o Terra em transe do Glauber. Independentemente das qualidades de cineasta, que todos lhe reconhecem, esse rapaz tem faculdades excepcionais para captar os processos históricos” (FURTADO, 2021FURTADO, Celso. Correspondência intelectual: 1949-2004. Seleção, introdução e notas de Rosa Freire d’Aguiar; posfácio de Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 40).

Sobre Cabra marcado para morrer8 8 Uma rigorosa crítica cinematográfica encontra-se em Flores (2007). não há uma referência explícita ao filme, mas uma lembrança de Callado (Rio, 10 junho de 1995) sobre um episódio vivido por ambos. Callado relata: “Confesso a v. que tenho saudades enormes da energia que tinha quando, em sua companhia, corremos de uma vaca braba na Paraíba, a caminho de uma entrevista que fiz com Elizabeth Teixeira” (FURTADO, 2021FURTADO, Celso. Correspondência intelectual: 1949-2004. Seleção, introdução e notas de Rosa Freire d’Aguiar; posfácio de Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 41). Os dois amigos seguiam para a casa da viúva de João Pedro Teixeira, o “cabra marcado para morrer”. O assassinato de João Pedro foi encomendado por proprietários de terras de Sapé, na Paraíba, em abril de 1962. Callado preparava uma matéria sobre o líder camponês. Furtado, na época, era responsável pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).

Choque cultural foi produzido em 1976 e, lançado em 1977, recebeu o prêmio Candango de Ouro no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Restaurado em 2020, ganhou difusão junto ao público de estudantes universitários com a exibição no XIV Congresso Brasileiro de História Econômica e 15ª Conferência Internacional de História de Empresas da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE) em 17 de novembro de 20219 9 Na sessão do Congresso da ABPHE, o filme foi comentado pelas autoras do presente artigo. Anteriormente, foi exibido também em duas lives, ambas enriquecidas com a presença de Zelito Viana, que adicionou informações sobre a produção do filme: uma organizada por Hernani Heffner no Museu de Arte Moderna (MAM/Rio) e outra pelo Laboratório de Estudos Marxistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lema/UFRJ). .

DA ENTREVISTA À PRODUÇÃO DO CURTA-METRAGEM

Antes de tecer os comentários sobre as relações estabelecidas entre a fala de Furtado e o filme de Zelito, cabe esclarecer que não pretendemos fazer uma crítica cinematográfica, pois não temos formação e nem esse é o propósito deste artigo. Apenas buscamos ressaltar os temas abordados por Furtado e a tradução imagética feita pelo cineasta.

O filme-documentário reveste-se de uma importância especial, pois nele encontramos o registro histórico de um momento em que o pensador do Brasil, do subdesenvolvimento e do desenvolvimento revia suas concepções. Furtado lança um novo olhar sobre o Brasil e as realidades econômicas e sociais dos países do Terceiro Mundo. Incorpora novos elementos explicadores, centrados na dominação cultural da burguesia brasileira internacionalizada, na degradação do meio ambiente promovida pelo modelo de industrialização e na concentração da renda e aumento da desigualdade social. Assim, o filme capta Furtado envolvido com novas temáticas e mostra o pensador comprometido com a indagação, a investigação e a formulação de explicações para a realidade do mundo e, em especial, dos países pobres; o pensador crítico sem medo de reconhecer a necessidade de trazer novas explicações para aquelas realidades. Por fim, o pensador que não desiste de buscar as razões da existência de um mundo tão desigual, que reproduz permanentemente as estruturas do subdesenvolvimento.

Não é uma entrevista convencional, nem sabemos se podemos chamar de entrevista. Não se ouve a pergunta, se é que ela, de fato, tenha ocorrido. Escuta-se Furtado, que expõe de forma calma e didática seu pensamento. Como se estivesse numa sala de aula, explica que a formação da sociedade colonial portuguesa na América começou com a grande empresa açucareira nordestina. Como uma experiência única, distinta da de outros países, no Brasil a economia, a produção agroexportadora, construiu a sociedade e determinou a polarização da estrutura social e cultural - a casa grande, “a camada de cima”, e a senzala, “a camada de baixo”10 10 A transcrição integral da entrevista para utilização no artigo foi de responsabilidade das autoras. A minutagem indicada em citações refere-se à versão restaurada do filme, de 2020. . Desde seu nascedouro a sociedade é marcada por uma verdadeira cisão econômica e social que se manifesta na separação entre a “cultura dos de cima”, influenciada e totalmente voltada para a Europa e para os Estados Unidos, e a “cultura dos de baixo”, de raízes africanas.

O roteiro é escrito a partir da fala de Furtado e, segundo Zelito, praticamente toda a fita gravada foi utilizada11 11 Segundo depoimento de Zelito Viana na live promovida pelo Lema/UFRJ. .

DIÁLOGOS ENTRE CELSO E ZELITO: UMA FALA ENTRE AS IMAGENS E SONS

O filme foi baseado nas ideias de Furtado sobre a sociedade brasileira (1975) e sobre a concepção de dominação cultural e das várias formas que assume, dentre elas a dominação econômica.

Para realizar o caminho percorrido pelo pensamento de Furtado, o cineasta viaja literalmente com sua câmera por localidades, as mais pobres do país, no Nordeste e por aquelas urbanizadas caoticamente, como o Rio de Janeiro. Sua câmera capta imagens de um Brasil onde coabitam a pobreza e a “modernização” cultural e tecnológica importada pelo cinema, pela televisão, pelo processo de industrialização e urbanização.

Na montagem do filme-documentário, Zelito intercala as falas de Furtado com as imagens e sons que atravessam os acontecimentos e a paisagem. Furtado não comenta e nem dialoga com as imagens, que correspondem às escolhas do cineasta para interpretar o que foi dito. As linhas de comunicação são duas em momentos distintos: Furtado com Viana em meados de 1975 no Rio de Janeiro; e o cineasta na captura das imagens e sons e na montagem do documentário que melhor exprimissem as ideias enunciadas.

As primeiras cenas que surgem na tela são as da festa do padroeiro da cidade Sanharó, 15 mil habitantes, no agreste pernambucano, em fevereiro de 1976. Uma voz em off (Zelito Viana) explica o acontecimento, as imagens percorrem a festa de São Sebastião; em um salão, um grupo musical toca rock, a vocalista canta em inglês, enquanto jovens enamorados dançam. No lado de fora, a feira acontece nas barracas de aguardente marca Pitu; um grande anúncio colorido atrai as pessoas para a barraca da moça que “vira macaco”. Uma profusão de sons, músicas de estilos diversos, vozes abafadas e estridentes acompanham o percurso da câmera.

Ao fundo, ouve-se a fala de Furtado, que se sobrepõe àquela mixagem de sonoridades: rock, vozes, ruídos de moscas, passeando no tabuleiro da sorte, diálogos imprecisos. A câmera desloca-se pela festa, passa pelo parque de diversões/carrossel/ roda-gigante, chega à Igreja de São Sebastião iluminada na noite escura.

Pela primeira vez, a câmera foca em Furtado, que tem, atrás de si, a estante de livros.

Para se compreender o Brasil, o fenômeno cultural brasileiro, é importante partir dessa constatação de que o Brasil é um caso quase único de um país em que a economia de alguma maneira formou a sociedade. Historicamente, as sociedades iam se transformando, dando lugar a distintas formações econômicas e sociais. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 2:30-2:58).

Então, completa seu pensamento:

No Brasil, não. […] A partir da empresa agromercantil, da sua estrutura, se cria a partir daí um sistema evidentemente econômico, um sistema social e um sistema político e daí temos duas coisas. Primeiramente, uma distância enorme entre os que mandam e os que estão embaixo, o povo; em segundo lugar, o que é muito importante, um autoritarismo quase estrutural desse sistema, em que o econômico, toda a organização econômica, tem de ser de alguma forma autoritária. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 2:59; 3:31-4:05).

Para a “camada de cima”, a cultura significa, exclusivamente, o que vem de fora. A elite se nutria da cultura europeia dos livros, dos costumes, da maneira de se comportar e hábitos. Da “grande festa mimética”, conceituada por Furtado - mimetização da cultura de fora -, o povo estava distante. O povo, a “camada de baixo”, não foi à escola. Analfabeto, não teve acesso a livros, à imprensa e ficou imune às influências da cultura europeia, que se projetava na elite. Assim, o povo pôde usufruir da criatividade e desenvolver com originalidade a sua própria cultura de raízes africanas na religião, na música, na cozinha, nos hábitos etc. A “verdadeira cultura brasileira” está aí projetada. Acompanham a fala as imagens e o canto dos pescadores na pesca do xaréu na praia de Arembepe, Bahia, uma das cenas mais lindas do filme.

O que nós vamos ver progressivamente é que a verdadeira cultura brasileira, digamos a cultura erudita brasileira, ela será realizada em cima na medida em que aqueles que estão em cima são capazes de comunicar-se com os de baixo, de lançar uma sonda nas forças profundas que vêm de baixo. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 7:15-7:36).

Furtado não nomeia os escritores-eruditos capazes de captar a “verdadeira cultura brasileira”, porém, enquanto se escuta, vêm à mente alguns nomes daqueles que lançaram a “sonda” imaginária: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, entre outros.

Nos 26min38s de duração do filme, uma tensão se apossa do espectador: a contraposição entre a fala de Furtado e algumas cenas. É como se aquela cultura verdadeiramente brasileira, que vem do povo, estivesse morrendo pouco a pouco. Na tela, as imagens imprimem uma dimensão mais profunda da invasão e da dominação da “cultura de fora”. A “festa mimética” não é mais exclusiva da elite. Ela atinge o andar de baixo. As coisas de fora chegam, espalham-se e adaptam-se miseravelmente, como permite a miséria em que o povo vive.

A câmera se movimenta por dimensões distintas de como a “cultura de fora” invade os espaços da sociedade: rurais, periferias das cidades e centros urbanos. O locutor da rádio anuncia os últimos eletrodomésticos da loja em um lugarejo pobre, miserável, onde as poças de água da chuva se confundem com o esgoto a céu aberto, onde crianças semivestidas brincam.

A rádio informa a hora certa no “Maior povoado do Mundo. Pontualmente. 11h01” em Eunápolis. A voz em off do diretor informa: Eunápolis, 50 mil habitantes, povoado pertencente aos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, Sul da Bahia, dezembro de 1975. Realidades contrastadas, em um mesmo mundo. Locutores anunciam: “Chegou o melhor do frio. Philips refrigerador já está na cidade. Venha conhecer a última maravilha da engenharia do frio!”.

Figura 1
Cena do filme Choque cultural, Mapa Filmes do Brasil. Reprodução

Uma tropa de jegues carregada atravessa a periferia do povoado. Crianças descalças caminham entre o barro e as poças de água enquanto uma mulher lava as panelas na água barrenta.

Não só o anúncio da rádio serve ao cineasta para mostrar situações dissonantes. Zelito filma a tela da televisão, onde jovens com vestidos platinados bailam nos programas de auditório: é Fantástico ou é Silvio Santos vem aí? Outras imagens se sucedem. Reclames de filmes bang-bang se repetem, seja nas lonas dos circos mambembes no agreste pernambucano, seja no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro. Um cowboy hollywoodiano geme para se desvencilhar das cordas do bandido. Por toda parte se vê a “cultura de fora” penetrando na vida das “camadas de baixo”. O mimetismo se torna onipresente sob condições miseráveis.

Furtado continua sua exposição enquanto imagens do aparelho de televisão mostram chuvas de prata e jovens dançarinas cintilam ao som da música: “Listen to the rhythm of the falling rain”.

[...] reproduzir as formas de vida de uma sociedade rica não é possível se não se tem os mesmos recursos, a mesma acumulação de capital de uma sociedade rica. Quando uma sociedade pobre reproduz as formas de vida, os padrões culturais da sociedade rica, essa sociedade exige um sacrifício muito maior do povo. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 10:56-11:18).

Na zona urbana de Eunápolis, as imagens mostram o caos do engarrafamento de automóveis nas ruas estreitas. O som das buzinas confunde-se com o barulho da multidão nas calçadas e dos anúncios de alto-falantes.

Furtado conclui: “Em outras palavras, em uma sociedade subdesenvolvida, ela é por definição muito mais injusta socialmente que uma sociedade desenvolvida, na medida em que ela pretende reproduzir as formas de viver da sociedade desenvolvida” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 11:19-11:30)12 12 Vale lembrar que, para Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa anterior no processo histórico de desenvolvimento por que passariam todos os países. Um país subdesenvolvido não é, portanto, um país “jovem” ou “atrasado”, mas uma formação histórica específica, conformada no processo de difusão desigual do progresso técnico em escala mundial a partir da Revolução Industrial (FURTADO, 1961, 1974). .

Em cenas tomadas da geral de um estádio aparecem jovens e velhos, pretos, pardos e brancos assistindo em pé ao jogo de futebol. A câmera acompanha os olhares atentos aos lances para cada lado do campo. Um jogo imaginário para o espectador de Choque cultural, que não vê o campo de futebol. Furtado continua sua análise:

Em realidade essa camada de baixo, que é o povo brasileiro, manteve até hoje uma distância econômica muito grande com o andar superior da sociedade brasileira. Nas formas de viver, nos padrões de comportamento, nos contatos com o exterior, etc. Agora isso não impede que essa camada de baixo viva dentro do sistema econômico que está integrado globalmente com o exterior. Não existe fora do sistema. Não é outro sistema econômico. Essa é a mão de obra, é a força de trabalho do sistema econômico, controlado de cima para baixo. [...]

Na medida em que ele [povo] vai elevando seu nível de vida ou aquelas camadas que vão elevando seu nível de vida e vão tendo acesso a produtos mais sofisticados etc., eles vão sendo mais vulneráveis à cultura de fora, que é projetada de fora, portanto, um sistema de dominação cultural. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 9:20-9:57, 12:43-13:05).

Nas imagens tomadas - cuidadosamente escolhidas -, as “camadas de baixo” não elevam o nível de vida uniformemente. A maioria permanece na pobreza e adapta os produtos tecnologicamente sofisticados às circunstâncias em que vive.

Como não se pode evitar a entrada da cultura de fora, trata-se de preservar, de não permitir a destruição da cultura do povo. Nas palavras de Furtado:

[...] o importante é permitir que as outras forças criadoras, que já existem, que estão sedimentadas de um perfil cultural próprio do país, não sejam destruídas, que permaneçam e que o intercâmbio se faça de tal maneira que se possa enriquecer a cultura com o que vem permanentemente de fora. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 13:36-13:52).

Uma esperança parece brotar no pensamento do estudioso do subdesenvolvimento ao imaginar ser possível enriquecer a cultura brasileira com o que “vem de fora”, sem interromper “as linhas evolutivas, a força criadora que está na própria cultura brasileira, na verdadeira cultura brasileira”.

Diante das imagens bombardeadas pela televisão, a fala de Furtado soa como uma nova utopia. Como é possível evitar a destruição da cultura brasileira frente à avalanche de musas e de cascatas de prata permanentemente exibidas nas telas da TV?

Feira de Caruaru, 140 mil habitantes, agreste pernambucano, janeiro de 1976. A câmera movimenta-se pela feira. Passa pelas barracas de imagens de santos, de livretos de cordel expostos junto a objetos de couro e utilidades domésticas feitas com latinha da marca Peixe. Ouve-se o canto do cordel. Mais adiante, uma banda de tambores e pífanos toca. O espectador é envolvido pelas imagens e sons próprios da cultura brasileira: o povo, a feira, os produtos da terra, a banda de pífanos... “Só se é grande no Brasil se tem raiz popular. Só o povo no Brasil [tem] cultura. Isso é que importante, né?”. Furtado sorri com sua pergunta, que é, ao mesmo tempo, afirmação (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 14:06-14:13).

Qual o problema que surge quando se interrompe a “força criadora da cultura” de um povo? A resposta de Furtado remete ao conceito de cultura por ele formulado:

[...] como respostas que uma sociedade dá a problemas que ela se cria; [isso] é a verdadeira cultura. Cultura tem de ser uma forma como os homens resolvem os problemas que eles mesmos vão criando na medida em que eles enriquecem as suas relações uns com outros. Eles criam os meios materiais; eles criam os meios não materiais de se comunicar, de modificar, de transmitir o seu pensamento etc. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 15:31-15:56).

À medida que se absorve a “cultura de fora”, “as formas culturais, os recursos culturais não correspondem a problemas nossos”. Assim, necessariamente, a cultura passa a refletir tão somente os problemas de outra sociedade. As respostas daquela sociedade a seus próprios problemas!

Uma das imagens vai do céu à terra. É inusitada, surpreende e emociona. A câmera foca o céu e uma antena de televisão. Segue o cabo elétrico que passa pelas ramagens e folhas de um coqueiro, desce mais e se descobre que a antena está conectada a uma caixa de madeira pregada a um poste de luz. Um aparelho de televisão está instalado dentro da caixa. Na sequência, a câmera foca a assistência. Aparecem pessoas sentadas no chão de terra batida, que assistem a um programa musical. A imagem da tela da TV é bastante chuviscada, mas a plateia está com os olhos pregados no televisor. Cada vez mais pessoas chegam para assistir ao programa no aparelho improvisado no poste de luz ao lado de uma igreja estilo colonial. À noite, dezenas de pessoas assistem à TV em pé. Nessa sequência, o cineasta refletiu em imagens a forma como a cultura e a tecnologia de comunicação se espalham e se acomodam à pobreza.

Rodado em meados dos anos de 1970, o Choque cultural mostra a invasão da televisão pelo interior do país. O último produto da moderna comunicação se adapta às circunstâncias. Como documentário, o filme registra a penetração avassaladora da Rede Globo financiada pela ditadura militar. Antecipa a construção do monopólio. “A cultura é hoje em dia, de verdade, um grande negócio”. “Fabricar cultura para o mercado, para vender”.

Para quem a fala se destina? Para quem o filme se destina? A fala de Furtado é dirigida e é escutada diretamente pelo intelectual ligado às comunicações, pelo produtor e diretor de cinema. Furtado fala aos intelectuais, aos artistas, aos professores e estudantes universitários, para aqueles identificados pelo pensador como os responsáveis por preservar a verdadeira cultura brasileira, por conservar sua originalidade, por manter sua “força criadora”, que vem verdadeiramente do povo. Para tanto é preciso que “eles tenham autonomia, que eles pensem, que eles criem, que eles realizem a partir dos próprios problemas da cultura brasileira, quer dizer, que [venha] daqui, que isso não venha enlatado já ” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 17:21-17:32).

Outro tema caro a Furtado é a questão ecológica, os efeitos negativos do modelo de desenvolvimento no meio ambiente; dito de outro modo, as externalidades negativas produzidas pelo processo de acumulação de capital nos países centrais e, também, na periferia do capitalismo.

As imagens das queimadas e da destruição da mata atlântica tomadas ao longo da estrada Rio-Bahia, BR 101, em dezembro de 1975 são anunciadas em off e conectam-se com a fala de Furtado sobre a crise da civilização material que está em processo.

No Mito existe uma tese que eu creio que se pode quase, hoje em dia, demonstrar empiricamente: é que a civilização material criada no mundo ocidental, criada no mundo capitalista, mas que em grande parte está sendo também reproduzida no mundo socialista, a civilização material, essa civilização corresponde a um grau de acumulação de capital e a uma utilização intensiva de recursos não renováveis em tal escala ou em escala tal, que, se se pretendesse generalizar essa civilização, em escala planetária, teríamos evidentemente que enfrentar um colapso total, digamos ecológico. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 19:59-20:44).

Furtado empenhava-se em desmistificar a ideia de que todo o país subdesenvolvido caminhasse a passos firmes para se tornar desenvolvido (FURTADO, 1961FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.; 1974FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.). O pensador encontra outra razão para contestar o “mito”: o modelo de desenvolvimento capitalista apropria-se e destrói os recursos naturais não renováveis; logo, se todos os países seguirem o modelo, o colapso ecológico será inexorável.

A câmera foca a força afirmativa da gesticulação das mãos do expositor.

E a partir daí fazer quiçá a crítica mais profunda da civilização em que vivemos, de que ela é uma civilização que transforma de verdade, coloca tudo a serviço de um processo de acumulação que, em si mesmo, leva a um conflito com o mundo exterior, com a ecologia e leva também a transformar o homem, ele mesmo, e tudo aquilo que ele cria e tudo aquilo que ele produz em objeto que se compra e vende. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 21:05-21:39).

Furtado não antecipou a crise ecológica, a destruição da natureza, o esgotamento dos recursos não renováveis. Entretanto, há 46 anos, Furtado já mostrava que seria impossível a repetição do modelo de acumulação de capital em escala planetária sem a destruição total da natureza.

Chegamos ao último tema abordado na entrevista - o aprofundamento da desigualdade econômica e social. As linguagens de Furtado - a palavra falada - e a de Zelito - as imagens - conversam. Há uma convergência de pensamentos, de ideias, de palavras e de imagens em movimento, mas nem sempre isso ocorre. Quando o cineasta faz o percurso da difusão cultural e tecnológica da televisão e do cinema estadunidense, temos a impressão de que as lentes focam uma invasão muito mais profunda do que aquela que Furtado imagina. A “força criadora” da “verdadeira cultura brasileira” está se esvaindo. No documentário Zelito registrou a intensidade da propagação da televisão pelos grotões do Brasil, tema que seria retomado quatro anos depois em Bye bye Brasil por Carlos Diegues13 13 No filme de Cacá Diegues não é mais a propagação da televisão pelo Nordeste, senão a sua invasão e a destruição da floresta permitidas pela abertura da rodovia transamazônica na Região Norte pelo governo militar do general Médici (1969-1974). .

Quando a câmera foca o litoral nordestino, as imagens caminham pelas águas, pela paisagem, e se detêm no trabalho dos pescadores nos cuidados com os barcos e com as redes. A sequência de fotografias leva à compreensão das palavras do pensador do subdesenvolvimento com emoção e empatia.

Trata-se da região onde Furtado nasceu e à qual dedicou a maior parte do seu trabalho no Brasil. Ele a conhece profundamente. Ele sabe que é nessa região que as consequências da adoção do modelo de civilização material dos países centrais serão as mais danosas, as deformações as mais sentidas: “o Nordeste é a região mais pobre do mundo ocidental [...]. Em verdade não existe no hemisfério ocidental uma massa de 30 milhões de pessoas com um nível de vida tão baixo como o do Nordeste” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 23:16-23:36).

Da aula de Furtado uma lição pode ser extraída que, como ele próprio diz, não precisa de comprovação - a desigualdade econômica aumentou. É evidente aos nossos olhos.

Quando se pretende reproduzir formas de comportamento, reproduzir uma civilização material de um povo rico ou muito mais rico que o seu, se introduzem deformações que tendem a afastar, digamos assim, a concentrar a renda.

[...] Quanto mais pobre é uma região, maiores são as distorções que se introduzem com um tipo de civilização que corresponde a uma alta acumulação de capital. [Portanto] transplantar uma civilização material rica para uma região pobre é grave e tanto mais grave quanto mais pobre é a região. Dessa forma, por exemplo, que a civilização do automóvel se é grave no Sul do Brasil, mais grave é no Nordeste. (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 19:06-19:26; 23:43-24:08).

A fala de Furtado é sobreposta por imagens do centro da cidade construída sob o signo do automóvel. Uma captura fotográfica extraordinária sintetiza a ideia: por baixo de um viaduto de linhas geométricas arrojadas surge uma carrocinha puxada por um jegue...

Figura 2
Cena do filme Choque cultural, Mapa Filmes do Brasil. Reprodução

A cidade moderna do Nordeste e do resto do Brasil exige imensos investimentos públicos em infraestrutura urbana. Retirada dos bondes, que atrapalham a passagem do automóvel; desapropriações para alargar avenidas, asfalto e construção de viadutos. Assim, para atender a essas prioridades não sobram recursos para as necessidades básicas das “camadas de baixo”: educação, saúde, rede de água e de esgoto, habitação, mobilidade urbana.

A orientação seguida pela industrialização brasileira nos “anos dourados” e nos anos da ditadura militar aprofundou a dominação cultural, a destruição de recursos naturais não renováveis e a desigualdade econômica. A “camada de baixo” paga mais caro para que a “camada de cima” usufrua de seus privilégios. “A sociedade paga muito mais, digamos assim, pela riqueza dos novos ricos do que pagava no passado, quando os novos ricos, bem ou mal, andavam de bonde; as cidades eram feitas de outra forma, as casas estavam no centro da cidade etc.” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 24:41-24:53).

A ENTREVISTA DE 1975 E A OBRA DE FURTADO

A entrevista-depoimento de Furtado a Zelito Viana marca um momento crucial da evolução do pensamento do economista e oferece uma valiosa síntese de sua interpretação da formação econômica e sociocultural do Brasil, do processo de modernização por que passou o país e dos entraves à superação do subdesenvolvimento.

Furtado havia analisado as dificuldades do processo de industrialização latino-americano e os obstáculos que se interpunham a sua continuidade no início dos anos 1960 (FURTADO, 1966FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.). Nos anos 1970, ao se tornarem visíveis os efeitos sobre o crescimento econômico da política implementada pelo governo militar após o golpe de 1964, Furtado tornar-se-ia um crítico de primeira hora do “milagre econômico” em curso no Brasil, com a publicação, em 1972, de Análise do “modelo” brasileiro. Essa problemática estará subjacente a sua fala, que se estrutura em torno das raízes culturais que conformaram a sociedade brasileira, das desigualdades socioeconômicas e regionais e da dependência externa - tema esse fortemente presente, juntamente com os limites ecológicos do desenvolvimento econômico, no livro lançado no ano anterior à entrevista, O mito do desenvolvimento econômico (1974).

Como vimos, Furtado cogitava uma permanência mais duradoura no Brasil com a recuperação de seus direitos políticos, o que não se concretizou. No entanto, almejando transitar da “batalha” da vida de professor em Paris a uma dedicação à docência mais voltada para estudos doutorais (FURTADO, 2021FURTADO, Celso. Correspondência intelectual: 1949-2004. Seleção, introdução e notas de Rosa Freire d’Aguiar; posfácio de Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 234), ele passa o ano letivo de 1973-1974 em Cambridge. Momento de rearrumação de ideias, essa temporada teria sido de particular importância na evolução de seu pensamento e de sua produção intelectual no exílio, como relata na autobiografia (FURTADO, 1991FURTADO, Celso. Os ares do mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.).

Nessa volta a Cambridge - onde estivera como pesquisador em 1957-1958 e redigira Formação econômica do Brasil (1959FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.) - Furtado ocupa no King’s College a cátedra Simon Bolívar. Participa de seminários e expõe suas ideias sobre a problemática do desenvolvimento, insistindo “sobre a especificidade do subdesenvolvimento e a necessidade de partir de uma visão global das relações internacionais e do processo de propagação do progresso tecnológico” (FURTADO, 1991FURTADO, Celso. Os ares do mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 190). Os livros que Furtado publica nos anos seguintes resultam, segundo ele, do esforço intelectual e das reflexões realizadas nesse período: O mito do desenvolvimento econômico (1974), Prefácio a nova economia política (1976FURTADO, Celso. Prefácio a Nova Economia Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.), Criatividade e dependência na civilização industrial (1978) e Pequena introdução ao desenvolvimento (1980FURTADO, Celso. Pequena introdução ao desenvolvimento: enfoque interdisciplinar. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980.). No livro de 1974, Furtado incorpora os textos de dois seminários proferidos na Universidade de Cambridge, um datado de novembro de 1973, “Underdevelopment and dependence: the fundamental connections” (segundo capítulo do livro de 1974), o outro apresentado em março de 1974, “The myth of economic development and the future of the Third World” (que, com desenvolvimentos complementares, comporia o primeiro capítulo do livro).14 14 Os textos dos seminários, inicialmente publicados como working papers, foram republicados em 2020 em Review of Political Economy (FURTADO, 2020a; 2020b) acompanhados de um interessante artigo de Loureiro, Rugitsky e Saad-Filho (2020).

Se os meios para a superação do subdesenvolvimento são o problema central de toda a trajetória intelectual e de homem de Estado de Furtado, a partir dos anos 1970 sua obra indiscutivelmente adquire novos contornos, com maior ênfase às dimensões cultural e ambiental do desenvolvimento. Furtado sustenta, com efeito, a necessidade de um alargamento do campo de visão do economista no sentido da interdisciplinaridade. Essa proposta, já presente em O mito do desenvolvimento econômico (1974), consubstancia-se em seu “antilivro acadêmico”15 15 Assim caracterizado por Furtado ([1978] 2008, p. 33) por abordar problemas “demasiado amplos para caber nos tubos de ensaio das ciências sociais”. Alfredo Bosi (2008, p. 9-10), no prefácio à edição de 2008 de Criatividade e dependência na civilização industrial, destaca que Furtado manifesta “sua perplexidade em face de um mundo de sombras que as ciências sociais especializadas não conseguem aclarar”, “[fechadas] em seus modelos acadêmicos”. Crítico, portanto, de um “saber acadêmico atomizado”, Furtado propõe uma visão global dos processos sociais. , Criatividade e dependência na civilização industrial (1978) e está largamente presente em Cultura e desenvolvimento em época de crise (1984).

Em Choque cultural, além de apresentar suas reflexões mais recentes sobre os problemas do subdesenvolvimento, Furtado revisita suas teses e dá maior ênfase aos aspectos culturais da formação brasileira. Logo no início de sua fala, afirma que no Brasil “a economia de alguma maneira formou a sociedade”. Essa interpretação nos remete a seu primeiro trabalho de história econômica, a tese de doutorado sobre a economia colonial brasileira, defendida na Sorbonne, em 1948 (FURTADO, 2001FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII: elementos de história econômica aplicados à análise de problemas econômicos e sociais. São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001.), e à ideia - influenciada por Caio Prado Jr. - de que o Brasil surgiu como uma exploração comercial. Dizimadas ou desorganizadas as culturas preexistentes, a empresa agromercantil “passou a ser a verdadeira estrutura da sociedade”, dela derivando os sistemas econômico, social e político.

Conforma-se nesse espaço, portanto, desde suas origens, uma sociedade desigual e autoritária, voltada para o exterior ou culturalmente dependente. Nossa dependência, diz Furtado na entrevista, “é inicialmente cultural”. No entanto, ao mesmo tempo que as camadas superiores dessa sociedade comportavam-se como uma “projeção do sistema de cultura europeu” e estavam expostas às transformações culturais vindas do exterior, a massa da população conservava suas influências culturais não europeias, essencialmente africanas. Como o autor explicaria em Cultura e desenvolvimento em época de crise:

Assim desprezado pelas elites, o povo continua seu processo formativo com considerável autonomia, o que permitirá que as raízes não europeias de sua cultura se consolidem e que sua força criativa se expanda menos inibida, em face da cultura da classe dominante. (FURTADO, 1984FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984., p. 23).

Ao mesmo tempo, um crescente distanciamento entre a elite - influenciada pela cultura forânea em permanente transformação - e o povo se estabelece no Brasil. Nas palavras de Furtado:

As elites, como que hipnotizadas, voltam-se para os centros da cultura europeia, de onde brotava o fluxo de bens de consumo que o excedente do comércio exterior permitia adquirir. […] O povo era reduzido a uma referência negativa, símbolo do atraso, atribuindo-se significado nulo à sua herança cultural não europeia e recusando-se valia à sua criatividade artística. (FURTADO, 1984FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984., p. 23).

No entanto, como Furtado afirma no Choque cultural, a “verdadeira cultura brasileira” não se manifestaria sem a captação das influências culturais conservadas pelo povo. Em texto de 1987, Furtado (2012FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Organização de Rosa Freire d’Aguiar Furtado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2012. (Arquivos Celso Furtado, v. 5)., p. 78) salienta: “Menos visível na formação da cultura brasileira foi o fato de que os povos oprimidos constituíram-se naqueles que mais contribuíram para a configuração do modo de ser brasileiro”. Lembra também que um primeiro momento de afloramento da “consciência de que havíamos vivido de costas para nossa herança cultural” foi a Semana de Arte Moderna de 1922, movimento que fez emergir a percepção da “necessidade de afirmação de nossa identidade nacional”: “O negro real passou a substituir o negro idealizado, o índio real, o silvícola criado pelos indigenistas. O interesse pelos problemas reais do país passou ao primeiro plano das preocupações de intelectuais de prestígio” (FURTADO, 2012FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Organização de Rosa Freire d’Aguiar Furtado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2012. (Arquivos Celso Furtado, v. 5)., p. 78).

As camadas populares, apesar de distantes economicamente das formas de viver da elite, não estariam imunes às influências vindas dessas camadas “de cima” da sociedade ou do exterior. Parte integrante do mesmo sistema econômico, o povo seria continuamente influenciado, estando sujeito a esse “sistema de dominação cultural” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 13:04) à medida que seu nível de vida se eleva e que tem acesso a bens de consumo mais sofisticados e recebe mais influências do exterior.

As imagens do Choque cultural são bastante eloquentes ao contrastarem as habitações extremamente pobres, sem infraestrutura básica, e ao fundo o som de anúncios de bens de consumo. Em sociedades como a brasileira, a inevitável difusão de padrões de consumo e comportamento engendrava “uma contrafação de sociedade de massas em que convivem formas sofisticadas de consumo supérfluo com carências essenciais no mesmo estrato social senão na mesma família” (FURTADO, 1984FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984., p. 30).

Não seria possível, no entanto, evitar essa influência cultural no que concerne às formas de viver e de consumir. Tampouco seria desejável isolar-se dessas transformações que ocorrem em nível mundial: o “desenvolvimento da cultura mundial”, que inclui o progresso técnico, “pertence a toda a humanidade” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 13:26-13:30). É importante, sustenta Furtado, viabilizar a sobrevivência do “perfil cultural próprio do país”; os intercâmbios culturais deveriam, dessa forma, promover um enriquecimento mútuo entre a “verdadeira cultura brasileira” e o que vem de fora (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 13:42-14:05).

Longe de restringir a ideia de cultura a “algo que se fabrica e se vende”, o que Furtado propõe é uma visão abrangente da cultura, que engloba os meios materiais e não materiais de que a humanidade se utiliza para a resolução dos problemas criados “à medida que [os homens] enriquecem as suas relações uns com os outros” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 15:25-15:47). Nesse sentido, ressalta que os recursos culturais assimilados do exterior correspondem a problemas de outras realidades. Para a solução dos problemas próprios da cultura brasileira, impõe-se que “a sociedade conserve a sua originalidade” e mantenha “contato com sua própria força criadora”, com o povo (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 17:04-17:14). Destaca, ademais, a importância da autonomia de pensamento e de criação, alertando para os riscos à cultura brasileira da mera absorção de recursos culturais prontos.

Na entrevista de 1975, portanto, Furtado avança ideias sobre as relações entre cultura, criatividade e desenvolvimento, que serão apresentadas de modo mais sistemático no livro Criatividade e dependência na civilização industrial (1978) e nos ensaios publicados em Cultura e desenvolvimento em época de crise (1984). Essas reflexões se consubstanciariam em sua atuação como ministro da Cultura (1986-1988), como ilustram seus discursos e textos preparados no período, reunidos no quinto volume da coleção Arquivos Celso Furtado (FURTADO, 2012FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Organização de Rosa Freire d’Aguiar Furtado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2012. (Arquivos Celso Furtado, v. 5).). Em um desses textos, datado de 1987, Furtado ressalta a importância da compreensão das relações entre cultura e desenvolvimento no momento da redemocratização:

Se a política de desenvolvimento objetiva enriquecer a vida dos homens, seu ponto de partida terá de ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e a comunidade. [...] O debate sobre as opções do desenvolvimento, no Brasil, exigirá cada vez mais uma reflexão prévia sobre nossa cultura, relacionando a lógica dos fins, que a ordena, à lógica dos meios, que é a razão instrumental inerente à acumulação. Devemos ter sempre em mente o objetivo de preservar o gênio inventivo da cultura brasileira diante da assimilação de técnicas que, se aumentam nossa eficácia, são por vezes vetores de valores que podem mutilar nossa identidade cultural. Em síntese, em uma sociedade democrática, na qual se amplia o horizonte de aspirações da cidadania, tornando-se mais complexo o processo de desenvolvimento, já não basta intensificar a acumulação; mais importante ainda é abrir espaço à participação e ativar a criatividade; é possibilitar o desenvolvimento cultural partindo do pressuposto da própria identidade e do nutrir-se de raízes próprias. (FURTADO, 2012FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Organização de Rosa Freire d’Aguiar Furtado. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2012. (Arquivos Celso Furtado, v. 5)., p. 76 e 77).

Furtado expõe sinteticamente em Choque cultural reflexões que desenvolvia sobre as origens e a forma de expansão da civilização industrial. Em sua fala, chama a atenção para o dinamismo da cultura que é assimilada, marcada pela “explosão da revolução mercantil que criou o sistema econômico mundial” e pela “explosão do progresso técnico no século XIX” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 5:26-5:37). Em seu livro de 1978, avança afirmando que “na civilização industrial [a tecnologia constitui] a expressão final da criatividade humana”, e “todas as demais formas de criatividade foram progressivamente postas a seu serviço” (FURTADO, ([1978] 2008FURTADO, Celso. Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC-SP em 1975. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2008. (Arquivos Celso Furtado, v. 2)., p. 151).

Em países como o Brasil, a inserção no sistema econômico mundial por meio da exportação de produtos primários gerou recursos que permitiram acesso aos bens de consumo industrializados nos quais se incorporava a tecnologia moderna. A parcela do excedente apropriada pelas classes dominantes locais operava, assim, como instrumento de sua aculturação. Nesse “acesso indireto” à civilização industrial estaria a origem do processo de modernização dependente, de adoção mimética, por minorias privilegiadas, de padrões de consumo característicos de economias com mais elevado nível de acumulação de capital, tão bem descrito por Furtado em suas obras (1972; 1974; 1978; 1984), como ilustra a seguinte passagem:

Transplantavam-se, assim, os padrões de comportamento surgidos da civilização industrial para sociedades em que não haviam penetrado as técnicas produtivas em que assenta essa civilização. […] modernizavam-se certos padrões de consumo e acumulava-se de preferência fora do sistema produtivo: na infraestrutura urbana e em bens de consumo duráveis importados. (FURTADO, [1978] 2008FURTADO, Celso. Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC-SP em 1975. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2008. (Arquivos Celso Furtado, v. 2)., p. 70-71).

Se Furtado não tece comentário na entrevista sobre a política econômica brasileira em curso, vale lembrar que o autor apresenta uma interpretação bastante crítica do processo de industrialização no Brasil e do modelo de crescimento com concentração de renda viabilizado pela ditadura. Os novos obstáculos à superação do subdesenvolvimento que despontavam com o avanço no processo de industrialização são temas recorrentes em seus textos (FURTADO, 1966FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.; 1972FURTADO, Celso. Análise do “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.; 1974FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.). São destacados o crescente controle de empresas transnacionais sobre o processo de industrialização - correspondente à perda de autonomia de decisões sobre os fins desse processo - e o decorrente aprofundamento da dependência tecnológica, relacionado por Furtado à incorporação de padrões de consumo em renovação permanente nos países de industrialização mais avançada. A contrapartida desse processo, num país subdesenvolvido, seria a concentração de renda, com consequente exacerbação das desigualdades sociais, tema já abordado no livro Análise do “modelo” brasileiro de 1972.

Portanto, como insiste em sua fala, a reprodução dos padrões culturais, da “civilização material de um povo rico” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 19:12), em países com baixos níveis de renda per capita e de acumulação de capital será restrita a minorias privilegiadas, engendrando as deformações características do subdesenvolvimento. Sacrifícios serão exigidos da massa da população, que, como ilustrado no filme, permanecerá sem a satisfação de suas necessidades básicas de vida.

Furtado reitera, assim, na entrevista de 1975 a centralidade do problema da dependência para a compreensão do subdesenvolvimento, insistindo em temas explorados particularmente em O mito do desenvolvimento econômico (1974) e Criatividade e dependência na civilização industrial (1978). A dependência e a dominação são fenômenos “inicialmente culturais”, decorrentes da busca, pelas camadas superiores, da reprodução de formas de viver de outros países, de industrialização mais avançada. “Portanto, existe primeiramente uma dominação cultural que abarca, que assume várias formas e uma dessas formas é a dominação econômica”, explica Furtado na entrevista (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 19:48-19:57).

A essa ênfase à dimensão cultural do desenvolvimento, própria de sua teorização, Furtado acrescenta, no início dos anos 1970, a percepção dos limites ambientais ou ecológicos ao crescimento econômico. O relatório The limits to growth, elaborado para o Clube de Roma (MEADOWS et al., 1972MEADOWS, Donella H. et al. The limits to growth. New York: Universe Books, 1972.), apresentava evidências empíricas sobre o problema do crescimento ilimitado em um sistema finito, que indicavam a impossibilidade de generalização do modo de vida ocidental para todo o planeta. Atento às implicações desse relatório, Furtado cedo se inseriria nos debates decorrentes, avançando a ideia de mito do desenvolvimento econômico. A ideia de mito seria fruto, portanto, da constatação de que “a civilização material criada no mundo ocidental” - e ele precisa: “criada no mundo capitalista, mas que em grande parte está sendo também reproduzida no mundo socialista” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 20:09-20-18) - corresponde a tal grau de acumulação de capital e de uso de recursos não renováveis que torna impeditiva sua generalização em escala planetária, sob pena de um colapso ecológico16 16 Vale lembrar que Furtado destaca os méritos desse relatório, mas discorda de suas premissas, que conteriam uma visão etapista do desenvolvimento ao assumir que todos os países seguiriam o padrão de consumo ou de uso de recursos dos Estados Unidos à medida que se desenvolvessem economicamente. Para Furtado (1961; 1974), ao contrário, o sistema capitalista evoluiria no sentido do aumento das desigualdades que separam países cêntricos e periféricos (e, dentro destes, a massa da população e minorias privilegiadas). .

Nos países subdesenvolvidos, esse mito tinha o efeito de aumentar as desigualdades socioeconômicas ao legitimar um desenvolvimento imitativo, apontando como caminho para o “desenvolvimento” a canalização de recursos escassos para a adoção de estilos de vida “modernos”. As imagens que entremeiam a fala de Furtado - a cidade moderna e a “civilização do automóvel”, com suas exigências em termos de infraestrutura, contrapostas a condições de vida extremamente precárias - ilustram de modo inconteste seus propósitos: a adoção de uma civilização material que corresponde a uma elevada acumulação de capital tem um alto custo social, introduz enormes distorções e irracionalidade no uso de recursos, sobretudo em regiões pobres, como o Nordeste retratado em Choque cultural.

Como Furtado salienta no próprio Mito e posteriormente, em Criatividade e dependência, a necessária consciência dos problemas ecológicos seria, contudo, obstada por poderosos interesses, empenhados em manter “a ilusão de que a tecnologia por si só resolve todos os problemas que ela mesma cria” (FURTADO, [1978] 2008FURTADO, Celso. Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC-SP em 1975. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2008. (Arquivos Celso Furtado, v. 2)., p. 157). Dessa forma, mantinham-se o desperdício de recursos não renováveis no conjunto do sistema e a ilusão de um caminho de desenvolvimento à semelhança do trilhado pelos países mais desenvolvidos.

Considerados os mitos envolvidos na noção de desenvolvimento econômico, fazia-se premente uma profunda crítica da própria civilização contemporânea, que transforma o homem e o que ele cria “em objeto que se compra e vende”, como Furtado aponta em sua fala (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 21:33-21:39). Ou, conforme elaboraria posteriormente, na civilização industrial, “todas as formas de atividade criadora” foram progressivamente subordinadas à racionalidade instrumental - ligada aos meios, à técnica - com o objetivo de aumentar a eficiência do trabalho e de promover a diversificação dos padrões de consumo (FURTADO, [1978] 2008FURTADO, Celso. Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC-SP em 1975. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2008. (Arquivos Celso Furtado, v. 2)., p. 113).

Figura 3
Celso Furtado em Choque cultural, Mapa Filmes do Brasil. Reprodução

Conclamando, portanto, a reflexões sobre os próprios fins da humanidade nas discussões sobre o desenvolvimento, Furtado colocaria crescentemente em destaque em sua obra as dimensões cultural e ecológica do desenvolvimento, como ilustra a histórica entrevista registrada em 1975. Consequentemente, em sua obra de maturidade intelectual, Furtado estabelecerá um diálogo cada vez mais profícuo com outras disciplinas, em sua defesa de uma nova concepção de desenvolvimento que, além de “preservar o patrimônio natural”, libere “a criatividade da lógica dos meios (acumulação econômica e poder militar) a fim de que ela possa servir ao pleno desenvolvimento de seres humanos concebidos como um fim, portadores de valores inalienáveis” (FURTADO, 1998FURTADO, Celso. O capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra, 1998., p. 66).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após uma breve introdução na qual foram contextualizadas, no tempo e espaço, as condições da realização da entrevista proposta por Zelito Viana a Celso Furtado, o artigo procurou abordar duas dimensões suscitadas pelo curta-metragem Choque cultural, cujo roteiro é baseado na entrevista histórica que marcou o encontro entre o economista e o cineasta em 1975.

Na primeira dimensão - Diálogos entre Celso e Zelito: uma fala entre imagens e sons - buscamos ressaltar os temas abordados por Furtado e a tradução imagética feita pelo cineasta. O tema central proposto pelo entrevistado foi a questão cultural, ou melhor, a dominação cultural da burguesia brasileira internacionalizada. Na perspectiva de Furtado, a cultura da “camada de cima”, da elite econômica e política, teleguiada pela “cultura de fora”, europeia e estadunidense, torna-se o elemento catalisador central do modelo de desenvolvimento industrial e urbano que promove a degradação do meio ambiente e o aumento da concentração da renda e consequentemente da desigualdade econômica e social. Em poucas palavras, a dominação cultural cria e reproduz a deformação da sociedade brasileira. Após o encontro no Alto da Boa Vista, Zelito partiu para uma excursão na qual captou as imagens e os sons nas festas, nas feiras, na tela da televisão, nos cinemas improvisados ao longo da viagem ao Nordeste, ao agreste pernambucano e aos centros urbanos periféricos e da grande cidade, Rio de Janeiro. Zelito interpretou as ideias lançadas por Furtado e produziu um documentário cujo efeito extrapola em força a palavra falada do economista. O que Zelito nos mostra é um verdadeiro Choque cultural, como assinalado pelo cineasta. A invasão da “cultura de fora” penetra de forma avassaladora por meio da televisão, do cinema, dos modos de comportamento, do padrão de consumo, com um poder não imaginado pelo pensador do subdesenvolvimento. A “força criadora” da “verdadeira cultura brasileira” que está no povo brasileiro parece estar se esvaindo (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 13:57-14:01). Quanto mais o modelo de desenvolvimento se expande, por meio da dominação cultural no plano econômico, maior a destruição da verdadeira cultura brasileira, maior a desigualdade social e maior a degradação dos recursos naturais e, consequentemente, maiores as deformações que se projetam na sociedade. O povo, “camada de baixo” (CHOQUE..., [1977] 2020CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)]., 9:22), paga mais caro para que a elite econômica e política usufrua de seus privilégios.

Na segunda dimensão - A entrevista de 1975 e a obra de Furtado - procuramos estabelecer uma conexão entre as ideias e os conceitos expostos por ele na entrevista e sua obra. A análise bibliográfica percorreu a evolução de seu pensamento e sua produção intelectual no exílio, quando aprofunda seu enfoque interdisciplinar, enfatizando novas dimensões do processo de desenvolvimento. Buscamos, portanto, relacionar a fala de Furtado a suas elaborações teóricas sobre cultura, dependência, desigualdades socioeconômicas e regionais e meio ambiente. Nesse sentido, destacamos as obras de Furtado dos anos de 1970 e 1980, insistindo na importância de O mito do desenvolvimento econômico, obra que ensejou a entrevista, e também de obras como Criatividade e dependência na civilização industrial e Cultura e desenvolvimento em época de crise. Procuramos mostrar que as questões que emergiram da entrevista inserem-se num processo de evolução do pensamento de Furtado: sua teorização do subdesenvolvimento inicia-se já nos anos 1950, com a explicação do subdesenvolvimento como uma deformação estrutural do próprio desenvolvimento e não como uma etapa a ser superada para atingir o desenvolvimento dos países centrais; refina-se e adquire novos contornos nos anos de seu exílio e posteriores.

A entrevista permite observar o cuidado do pensador em esculpir com maior precisão e detalhe seus conceitos. Esclarece pontos já amplamente trabalhados em seus textos, bem como esboça elementos que seriam desenvolvidos em trabalhos publicados posteriormente. Choque cultural apresenta-se, assim, como uma ocasião ímpar para a compreensão do pensamento do autor e de sua evolução.

Sem a pretensão de ter esgotado o potencial do filme de Zelito e da entrevista de Furtado, esperamos ter contribuído para a divulgação das ideias e concepções de Furtado e do filme-documentário de Zelito. Considerando a preciosidade desse filme, esperamos que o artigo estimule sua utilização como ferramenta auxiliar para cursos de formação econômica e social e de desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

  • 3
    É possível assistir a Choque cultural no canal YouTube da Mapa Filmes.
  • 4
    O conteúdo do curso encontra-se em Arquivos Celso Furtado v. 2 (FURTADO, 2008FURTADO, Celso. (1978). Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.). Em sua correspondência do período, o economista manifesta a ideia de passar a dividir seu tempo entre a França e o Brasil, fórmula que lhe permitiria tanto dedicar-se ao estudo dos problemas brasileiros quanto manter-se “alerta sobre o que vai pelo mundo” (FURTADO, 2021FURTADO, Celso. Correspondência intelectual: 1949-2004. Seleção, introdução e notas de Rosa Freire d’Aguiar; posfácio de Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 132).
  • 5
    Localização do apartamento de Furtado no Rio de Janeiro.
  • 6
    Recebeu o prêmio da Federação Nacional de Cine Clubes do Brasil (1979). Um importante debate sobre o filme foi organizado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em 2021. Há um novo documentário de Zelito sobre a situação indígena no Brasil intitulado: Da terra dos índios aos índios sem terra. O documentário, lançado em 2022, exibe a leitura feita por Marcos Palmeira de uma entrevista de Zelito com Darcy Ribeiro e fotografias cedidas por Sebastião Salgado.
  • 7
    Zelito Viana nasceu em Fortaleza. É produtor e diretor de filmes e documentários para o cinema e para televisão. Sua importante filmografia está disponível no site Mapa Filmes do Brasil. A trajetória cinematográfica de Zelito pode ser lida no livro autobiográfico Os filmes e eu, editado pela Record em 2022VIANA, Zelito. Os filmes e eu. Rio de Janeiro: Record, 2022..
  • 8
    Uma rigorosa crítica cinematográfica encontra-se em Flores (2007)FLORES, Silvana. El documental y la memoria de las luchas campesinas: Cabra, marcado para morir. In: CAMPO, Javier; DODARO, Christian. Cine documental, memoria y derechos humanos. Buenos Aires: Nuestra América, 2007, p. 197-210..
  • 9
    Na sessão do Congresso da ABPHE, o filme foi comentado pelas autoras do presente artigo. Anteriormente, foi exibido também em duas lives, ambas enriquecidas com a presença de Zelito Viana, que adicionou informações sobre a produção do filme: uma organizada por Hernani Heffner no Museu de Arte Moderna (MAM/Rio) e outra pelo Laboratório de Estudos Marxistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lema/UFRJ).
  • 10
    A transcrição integral da entrevista para utilização no artigo foi de responsabilidade das autoras. A minutagem indicada em citações refere-se à versão restaurada do filme, de 2020.
  • 11
    Segundo depoimento de Zelito Viana na live promovida pelo Lema/UFRJ.
  • 12
    Vale lembrar que, para Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa anterior no processo histórico de desenvolvimento por que passariam todos os países. Um país subdesenvolvido não é, portanto, um país “jovem” ou “atrasado”, mas uma formação histórica específica, conformada no processo de difusão desigual do progresso técnico em escala mundial a partir da Revolução Industrial (FURTADO, 1961FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961., 1974FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.).
  • 13
    No filme de Cacá Diegues não é mais a propagação da televisão pelo Nordeste, senão a sua invasão e a destruição da floresta permitidas pela abertura da rodovia transamazônica na Região Norte pelo governo militar do general Médici (1969-1974).
  • 14
    Os textos dos seminários, inicialmente publicados como working papers, foram republicados em 2020 em Review of Political Economy (FURTADO, 2020aFURTADO, Celso. Underdevelopment and dependence: the fundamental connections. Review of Political Economy, v. 33, n. 1, 2020a, p. 7-15. https://doi.org/10.1080/09538259.2020.1827549.
    https://doi.org/10.1080/09538259.2020.18...
    ; 2020bFURTADO, Celso. The myth of economic development and the future of the Third World. Review of Political Economy, v. 33, n. 1, 2020b, p. 16-27. https://doi.org/10.1080/09538259.2020.1827552.
    https://doi.org/10.1080/09538259.2020.18...
    ) acompanhados de um interessante artigo de Loureiro, Rugitsky e Saad-Filho (2020)LOUREIRO, Pedro; RUGITSKY, Fernando; SAAD-FILHO, Alfredo. Celso Furtado and the myth of economic development: rethinking development from exile. Review of Political Economy, v. 33, n. 1, 2020, p. 28-43. https://doi.org/10.1080/09538259.2020.1827546.
    https://doi.org/10.1080/09538259.2020.18...
    .
  • 15
    Assim caracterizado por Furtado ([1978] 2008FURTADO, Celso. Economia do desenvolvimento: curso ministrado na PUC-SP em 1975. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2008. (Arquivos Celso Furtado, v. 2)., p. 33) por abordar problemas “demasiado amplos para caber nos tubos de ensaio das ciências sociais”. Alfredo Bosi (2008BOSI, Alfredo. Prefácio. Celso Furtado: rumo a uma visão holística. In: FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 9-31., p. 9-10), no prefácio à edição de 2008 de Criatividade e dependência na civilização industrial, destaca que Furtado manifesta “sua perplexidade em face de um mundo de sombras que as ciências sociais especializadas não conseguem aclarar”, “[fechadas] em seus modelos acadêmicos”. Crítico, portanto, de um “saber acadêmico atomizado”, Furtado propõe uma visão global dos processos sociais.
  • 16
    Vale lembrar que Furtado destaca os méritos desse relatório, mas discorda de suas premissas, que conteriam uma visão etapista do desenvolvimento ao assumir que todos os países seguiriam o padrão de consumo ou de uso de recursos dos Estados Unidos à medida que se desenvolvessem economicamente. Para Furtado (1961FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.; 1974FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.), ao contrário, o sistema capitalista evoluiria no sentido do aumento das desigualdades que separam países cêntricos e periféricos (e, dentro destes, a massa da população e minorias privilegiadas).

REFERÊNCIAS

  • BOSI, Alfredo. Prefácio. Celso Furtado: rumo a uma visão holística. In: FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 9-31.
  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm Acesso em: nov. 2021.
    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm
  • CHOQUE cultural. (1977). Direção de Zelito Viana. Rio de Janeiro: Mapa Filmes do Brasil, 2020. [Cópia da versão digitalizada e restaurada do filme disponibilizada pela Mapa Filmes do Brasil (26 min38s)].
  • CHOQUE Cultural. 2018. Vídeo (25min09). Publicado por Mapa Filmes. Disponível em: https://youtu.be/TW1ghDYEJQA Acesso em: 1o out. 2020.
    » https://youtu.be/TW1ghDYEJQA
  • CHOQUE cultural com o diretor Zelito Viana. 2020. Vídeo (1h38min14). Publicado por Canal IE [UFRJ]. Disponível em: https://youtu.be/SQDftM5bh8E Acesso em: 26 out. 2021.
    » https://youtu.be/SQDftM5bh8E
  • CINE Macunaíma: Terra dos índios, um filme de Zelito Viana [debate]. 2021. Vídeo (1h21min44). Publicado por ABI TV. Disponível em: https://youtu.be/ZYTp0Th0TXY Acesso em: 9 nov. 2021.
    » https://youtu.be/ZYTp0Th0TXY
  • DIB, André. Abraccine organiza ranking dos 100 melhores filmes brasileiros. 2015. Disponível em: https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/ Acesso em: 3 nov. 2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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