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Eufrásia Teixeira Leite entre as finanças e a moda

Eufrásia Teixeira Leite between finance and fashion

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apontar na biografia de Eufrásia Teixeira Leite sua condição de mulher celibatária, e o estigma que esse estado representava no contexto do século XIX. Busca interpretar o papel da moda no processo de autonomização vivenciado por Eufrásia. Sua história perpassa questões sobre individualidade e coletividade, independência financeira e amor romântico, conformidade e insubmissão. A investigação baseia-se na interpretação de dois de seus retratos e na análise de sua coleção de trajes pertencentes ao Museu Casa da Hera para demonstrar que Eufrásia utilizou a moda como instrumento de distinção, não obstante a sua situação de mulher celibatária.

PALAVRAS-CHAVE
Eufrásia Teixeira Leite; celibato feminino; autonomização; moda.

ABSTRACT

This article aims to point out in the biography of Eufrásia Teixeira Leite her condition as a celibate woman, and the stigma that this state represented in the context of the 19th century. It seeks to interpret the role of fashion in the process of empowerment experienced by Eufrásia. Her story permeates questions about individuality and collectivity, financial independence and romantic love, conformity and insubmission. The investigation is based on the interpretation of two of her portraits and on the analysis of her collection of costumes belonging to the Casa da Hera Museum, to demonstrate that Eufrásia used fashion as an instrument of distinction, despite her situation as a celibate woman.

KEYWORDS
António Hespanha; political centralization; juridical pluralism.

FATORES CONDICIONANTES

Quando nos aproximamos da história de Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), percebemos a ausência de muitas informações que justifiquem suas escolhas diante dos panoramas a ela apresentados. Um aspecto ainda não explorado em suas biografias foi o fato dela ser uma mulher celibatária que utilizou a moda em seu processo de autonomização. Eufrásia nasceu e cresceu na cidade de Vassouras, no Vale do Paraíba fluminense, cercada pelos barões cafeicultores. Seu pai, Joaquim José Teixeira Leite (1812-1872), era capitalista, um importante comissário do café e político; sua mãe, Ana Esméria Correia e Castro (1827-1871), era filha do barão de Campo Belo. Habitaram uma residência urbana que posteriormente seria conhecida como Casa da Hera, transformada em museu-casa desde 1968.

Consta que o casal Teixeira Leite teve um filho, que faleceu quando criança, e teria educado as filhas Francisca Bernardina (1845-1899) e Eufrásia com os conhecimentos que um gestor deveria ter, com capacidade para administração e competência para exercer a autoridade diante dos negócios. Os biógrafos sublinham que Eufrásia recebeu instrução distinta da maioria, já que a educação oitocentista não oferecia expectativas de autonomia às mulheres. A princípio foi instruída nos padrões de jovens abonadas na época, estudou num internato para moças de famílias ricas da região dirigido pela francesa Madame Grivet, situado num distrito de Vassouras. Tratava-se de privilégio para poucas, visto que, segundo os dados do Censo Geral de 1872, apenas 37% das mulheres que integravam a população livre do Rio de Janeiro eram alfabetizadas (RAINHO, 2002RAINHO, Maria do Carmo. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções - Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002., p. 83). Todavia, essa formação teria lhe conferido o refinamento para desempenhar o papel de mulher de elite na vida da corte, mas não capacidade de se autodeterminar e agir com liberdade intelectual. A vasta biblioteca da Casa da Hera transmite a impressão do ambiente intelectualizado em que Eufrásia viveu durante a infância e juventude. Poucas pessoas no Brasil tinham uma biblioteca tão selecionada numa época com raras livrarias localizadas na corte.

É possível examinar em diversas publicações sobre Eufrásia a afirmação de que a competência que demonstrou futuramente nas finanças estaria associada à influência do pai. Em livreto dedicado ao Museu Casa da Hera (MCH), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) assegura: “muito da genialidade e do inusitado da vida de Eufrásia se deve à atitude do pai, o qual contrariando o hábito da época teria ensinado matemática financeira às filhas como se filhos homens fossem” (IBRAM, 2014IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus. Museu Casa da Hera/ Eneida Queiroz, Daniele de Sá Alves, Cinthia Rocha. Coleção Museus dos Ibram. Museu Casa da Hera / Brasília, DF: Ibram, 2014., p. 41). A historiadora e museóloga Neusa Fernandes (2012FERNANDES, Neusa. Eufrásia e Nabuco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012., p. 64) também afirma que “Eufrásia herdara o espírito empresarial do pai, que, descobrindo as aptidões da filha, preparou-a para um novo mundo. Tornando-se ela uma grande investidora profissional, uma esperta financista e uma mulher do mundo”. Uma hipótese que aponta para outra direção é da pesquisadora de indumentária Ana Carolina Umbelino (2016UMBELINO, Ana Carolina de Freitas. O acervo de indumentária do Museu Casa da Hera: proposta de catálogo. 2016. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais). Escola de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Rio de Janeiro, 2016., p. 16), que afirma: “É possível que a dedicação de Eufrásia aos negócios tenha tido uma influência não só da ação do pai como negociante e político, mas igualmente da avó materna, também chamada Eufrásia, a baronesa de Campo Belo”. Sua avó, Eufrásia Joaquina do Sacramento Andrade (1799-1873), havia casado com o próprio tio, Laureano Correia e Castro (1790-1861), próspero fazendeiro, proprietário de 352 escravizados, milhares de pés de café e da fazenda conhecida como Secretário, com sua fabulosa sede, considerada um dos mais belos palacetes do Vale do Paraíba. Com a morte de Laureano, em 1861, a avó de Eufrásia “não abriu inventário e deu continuidade à exploração agrícola de suas fazendas” (FALCI; MELO, 2012FALCI, Miridan Britto; MELO, Hildete Pereira de. A sinhazinha emancipada: Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930) - A paixão e os negócios na vida de uma ousada mulher do século XIX. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2012., p. 38). Quando a baronesa de Campo Belo faleceu, em 1873, seus netos fizeram a partilha dos seus bens, sendo possível notar que, nos 12 anos em que geriu as fazendas, demonstrou competência na administração da produção cafeeira. Podemos depreender que, nesse período - entre seus 11 e 23 anos de idade -, Eufrásia recebeu influência de sua avó materna na formação da autoimagem acima das pressões sociais que recaíam sobre as mulheres.

Em 1873, Francisca, com 28 anos, e Eufrásia, com 23 anos, ficaram órfãs após o falecimento repentino dos seus pais em menos de um ano, herdando, assim, uma grande fortuna, valor que correspondia a 5% das exportações brasileiras na ocasião. Em seguida, faleceu sua avó materna, aumentando ainda mais a rica herança (FERNANDES, 2012FERNANDES, Neusa. Eufrásia e Nabuco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012., p. 57). Estavam solteiras e gerindo um patrimônio milionário, uma exceção aos padrões do século XIX, visto que autonomia financeira não compunha o quadro das mulheres. Se ficassem no Brasil, estariam sob a proteção e controle do tio, o barão de Vassouras, e seriam encaminhadas para casamentos indesejados (ALONSO, 2007ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões a as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 54). Assim sendo, as irmãs decidiram partir para Paris. Venderam o palacete da família situado no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, ações e títulos, e assim romperam com os códigos habituais de uma família patriarcal tradicional. Fernandes (2012FERNANDES, Neusa. Eufrásia e Nabuco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012., p. 57) aponta que possivelmente Eufrásia “intuiu que, ficando na sua cidade, poderia perder sua fortuna, uma vez que vivenciara a crise do café e vislumbrava o fortalecimento das novas ideias abolicionistas e republicanas”. Podemos reconhecer que, se assim foi, mais que intuição, a decisão racional teve como base a vivência da conjuntura econômica e social.

Em sua viagem rumo à Europa em agosto de 1873, Eufrásia encontrou-se com Joaquim Nabuco (1849-1910). Com 24 anos, recém-formado em direito, ele já atuava na defesa da abolição e viria a ser político e notório diplomata. Nas três semanas que ficaram a bordo do vapor Chimborazo, estabeleceram compromisso e chegaram noivos ao destino. Eufrásia entregara sua mão por iniciativa própria, visto que não há registro de que tenha sido feito pedido formal ao tio, que era contrário ao enlace por causa da filiação liberal do jovem e do desnível econômico dos noivos (ALONSO, 2007ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões a as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 55). Além dos entraves dos interesses familiares, as aspirações pessoais alimentavam as divergências entre os noivos. Joaquim Nabuco tinha um estilo jovial, valorizava os prazeres da vida. Já Eufrásia dava seus primeiros passos rumo a uma vida de êxito como mulher de negócios. O casamento sujeitaria ambos a uma situação de subordinação e controle. Esse dilema provocou inúmeras vezes a interrupção do noivado. E assim que os anos que se seguiram testemunharam uma série de imbróglios, o casal continuou a trocar correspondências, promessas de casamento permeadas por indecisões e desencontros. No final de 1885, encontraram-se no Rio de Janeiro. Eufrásia se hospedou no Hotel White, no Alto da Boa Vista, onde puderam desfrutar do isolamento da Floresta da Tijuca durante um mês. Ainda estavam apaixonados. No último dia ela lhe enviou um bilhete onde se lê “Eu te amo de todo o coração” (apud FERNANDES, 2012FERNANDES, Neusa. Eufrásia e Nabuco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012., p. 132). Eufrásia voltou à Europa por influência da irmã, enquanto Nabuco envolveu-se cada vez mais nos seus projetos políticos.

O ano seguinte foi marcado por períodos de silêncio e troca de cartas que anunciaram o desfecho. Em abril de 1887, Nabuco foi a Paris, resistiu por alguns dias, até que a visitou e fizeram as pazes. Por fim, Eufrásia escreve para ele no mesmo mês. “Eu tenho algum dinheiro e não sei o que fazer dele; compreendo que me é muito mais agradável emprestar a si que a um desconhecido” (apud FERNANDES, 2012FERNANDES, Neusa. Eufrásia e Nabuco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012., p. 135). Nabuco ficou ofendido com a oferta e rompeu definitivamente o relacionamento. Quatorze anos após a viagem no vapor Chimborazo, um intercurso marcado por muitos desencontros sem chegar a uma decisão definitiva, oscilaram sucessivamente entre atitudes e posições pessoais, além de ser pressionados por interesses políticos e influências familiares. “Na juventude, supôs que poderia conciliar duas forças motrizes de seu tempo: o capitalismo e o romantismo” (FALCCI; MELO, 2012, p. 12).

As irmãs Teixeira Leite não constituíram casamentos, foram celibatárias por toda a vida e não tiveram filhos, assim, resistiram aos mecanismos de controle sobre as mulheres e aos privilégios sociais do vínculo conjugal. Foram favorecidas pela emancipação financeira, todavia ainda precisavam encarar o preconceito que sofria o celibato feminino.

Eufrásia tinha 37 anos quando aconteceu o rompimento definitivo com Nabuco, e podemos examinar que o compromisso não foi constante no longo período de relacionamento. Assim, seu status era de solteira, constituindo um desprestígio social numa época na qual as mulheres se casavam antes dos 20 anos. Podemos identificar o estigma sofrido por mulheres que passaram da idade habitual de se casar e comumente não tinham como instituir patrimônio numa estrutura econômica patriarcal. Segundo Michelle Perrot, no século XIX, a compreensão cristã do celibato como via de perfeição é modificada através da apologia da maternidade e da utilidade. “O celibato é considerado a situação das ‘desprezadas’, das ‘solteironas’, que serão boas tias (deixando herança) ou intrigantes temíveis (La Cousine Bette de Balzac3 3 A autora faz referência ao romance A prima Bette, de Honoré de Balzac, publicado em 1846. A personagem título é uma solteirona de meia-idade amargurada que por inveja busca destruir a família de sua prima. ). O celibato é uma escolha difícil que supõe uma certa independência econômica” (PERROT, 2007PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007., p. 46). A literatura brasileira oitocentista apresentou algumas personagens nessa situação - por exemplo, nos primeiros romances de Machado de Assis (1839-1908), na obra de Aluísio Azevedo (1857-1913)4 4 Esta pesquisa identificou na obra machadiana a tia Úrsula, do romance Helena (1876), a ama Maria das Dores, de Iaiá Garcia (1878), e a tia Camila, do romance O homem (1887), de Aluísio Azevedo. -, mulheres comumente retratadas como conservadoras, protetoras dos valores da família e agregadas em casa de parentes, colocadas numa posição marginal de desprestígio social.

A manutenção da subserviência da mulher ao sistema patriarcal foi identificada por Gilberto Freyre no meado do século XIX. Da casa-grande rural ao sobrado na área urbana, a mulher continuava subjugada pelo pai e pelo marido, todavia, como os senhores urbanos já não estavam dispostos a gastar tanto com as filhas solteiras quanto antes, a celibatária sofreu muitas pressões. As restrições de ordem jurídica e social faziam com que “as solteironas, principalmente, fossem pouco mais que escravas na economia dos sobrados” (FREYRE, 2021FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento urbano. São Paulo: Global, 2004. (4ª reimpressão, 2021)., p. 244). Eram menosprezadas não só por homens, mas pelas mulheres que correspondiam à estrutura patriarcal. Ocupavam funções na casa como governantas, no cuidado com as crianças, em atividades domésticas repetitivas, circulavam nas áreas voltadas para o serviço, auxiliavam na rotina devocional da família. “Sua situação de dependência econômica absoluta fazia dela a criatura mais obediente da casa” (FREYRE, 2021FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento urbano. São Paulo: Global, 2004. (4ª reimpressão, 2021)., p. 244).

Esse contexto de submissão das mulheres solteiras não correspondia à situação das irmãs Teixeira Leite devido à emancipação de ambas em decorrência da independência financeira e jurídica alcançada. A escolha pela mudança do interior fluminense para Paris corresponderia também à convergência de migração de mulheres solteiras para as cidades nas últimas décadas do século XIX, onde adquiriam maior visibilidade e autonomização. No novo cenário, Eufrásia não só rompeu com o estigma, como imprimiu uma imagem segura de mulher de negócios emancipada, distante da figura de uma mulher madura desolada, abandonada para viver uma vida frustrada. O casamento não era sua prioridade.

DISTINÇÕES SOCIAIS

Quando Eufrásia chegou à Europa, em 1873, a França estruturava sua Terceira República, iniciando-se um período de prosperidade econômica, acesso aos bens de consumo e transformações culturais. Nos 50 anos em que viveu em Paris, demonstrou educação requintada e autodiscernimento no trato social em uma cidade em ebulição, assim como iniciativa e eficiência com a área financeira. Dizer que era a pessoa certa no momento certo seria reduzir sua habilidade em identificar a oportunidade adequada para agir, aptidão que comprovou ter como investidora. Operou na Bolsa de Valores numa época de restrições de acesso às mulheres. Comprovou sua aptidão e enorme capacidade de trabalho ao centralizar os negócios em si própria. Na ocasião de sua morte, seus bens somavam 30 mil ações de 297 empresas em inúmeros países, “foram encontrados bens na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Mônaco, Egito, Romênia, Estados Unidos da América do Norte, Canadá, Chile e Rússia” (CATHARINO, 1992CATHARlNO, Ernesto José Coelho Rodrigues. Eufrásia Teixeira Leite 1850-1930: fragmentos de uma existência. Compilação e notas. 2. ed. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1992., p. 136).

Eufrásia e Francisca adquiriram uma habitação de luxo com cinco andares na rue de Bassano, próxima ao Arco do Triunfo. O seu inventário francês descreve a casa e todos os objetos contidos em seu interior, tapetes, sofás, quadros, piano, lustres, que compunham o cenário de recepções e jantares. A vida social das irmãs Teixeira Leite ainda necessita, em grande parte, ser decifrada. Trechos das cartas de Eufrásia e os diários de Joaquim Nabuco “deixam a impressão que concertos, óperas, teatros, viagens à Itália e à Espanha, por exemplo, fossem cotidianos presentes na vida das irmãs” (FALCI; MELO, 2012FALCI, Miridan Britto; MELO, Hildete Pereira de. A sinhazinha emancipada: Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930) - A paixão e os negócios na vida de uma ousada mulher do século XIX. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2012., p. 91). Na intenção de averiguar se as celibatárias tinham uma vida recatada, esta pesquisa investigou inúmeros jornais franceses do período em que viviam em Paris, e encontramos a menção das irmãs Teixeira Leite em listas de eventos da alta sociedade parisiense: são vários jantares, festas privadas, lanches, apresentações musicais e teatrais, turfe e viagens. Em 14 de julho de 1887, o diário francês de perfil conservador Le Gaulois desmente as notícias de outros jornais que haviam anunciado o casamento de Eufrásia Teixeira Leite com o Duque de Montmoreney. Citando o primeiro nome no diminutivo em português, chama-a de Euphrasinha, descrevendo-a tomando por referências seus ascendentes brasileiros: “Senhorita Teixeira é bem conhecida em Paris por sua distinção e beleza, e muito apreciada na alta sociedade” (ECHOS..., 1887ECHOS de Paris. Le Gaulois : littéraire et politique, Vigésimo primeiro ano. Terceira série, número 1773, Paris, 7 de julho de 1887, p. 1. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5261853/f1.image.r=Teixeira%20leite?rk=21459;2 . Acesso em: 22 jan. 2022.
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- tradução nossa5 5 “Mlle Teixeira est bien connue à Paris pour sa distinction et sa beauté, et fort appréciée dans le monde” (ECHOS..., 1887). ). Essas pistas nos indicam que as irmãs tinham uma vida ocupada e não se enquadravam numa suposta vida monótona de celibatária.

Após o falecimento da irmã, em 1899, Eufrásia continuou a ter destaque nos jornais franceses, como nas recepções da família imperial. Segundo La Revue Mondaine, edição de 25 janeiro de 1903, ela esteve num evento beneficente com a princesa Isabel, identificada como condessa d’Eu, organizado em favor da missão Pères du Saint Esprit du Brésil (CHARITE, 1903CHARITE. La Revue Mondaine: Politique, Littéraire, Artistique, Paris, Le Monde, 25 de janeiro de 1903. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6229336p/f143.image.r=Teixeira%20leite?rk=21459;2. Acesso em: 23 jan. 2022.
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). Um dado curioso identificado nesta pesquisa é que Eufrásia tornou-se membro da Société de Géographie, em 1906, a associação francesa que promove a geografia (TEIXEIRA-LEITE, 1907TEIXEIRA-LEITE (Mlle. de), rue de Basano, 40 (VIII). La Géographie bulletin, Paris, 15 de janeiro de 1907, p. 46. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k96596208/f62.item. Acesso em: 23 jan. 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9...
, p. 46). Em 1908, seu nome aparece duas vezes na lista anual do Grand Monde Parisien et de la Colonie Étrangère editada pelo jornal Paris-Mondain com a relação nominal dos membros da alta sociedade e seus respectivos endereços em Paris, das casas de campo e na Riviera Francesa (TEIXEIRA-LEITE, 1908TEIXEIRA-LEITE (Mlle. E.), 40 rue de Basano (VIII). Paris-mondain : annuaire du grand monde parisien et de la colonie étrangère, Paris, 1908, p. 317. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k205233j/f428.image.r=Teixeira%20Leite?rk=42918;4 . Acesso em: 23 jan. 2022.
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, p. 317). Aparece também como membro associado do anuário, de 1904, da Societé des amis du Louvre, organização que buscava recursos da iniciativa privada na aquisição de obras para o museu. Era também notada como elegante nos camarotes dos hipódromos, e continuou a atuar na maturidade: em 1919, já com 69 anos, foi vista usando um vestido charmoso verde-cinza e preto, com um grande chapéu nas corridas de cavalo no Bois-de-Boulogne, como constatou a coluna La vie Sportive do jornal Le Figaro (LA VIE..., 1919LA VIE sportive: les courses. Le Figaro : journal non politique. Paris, 65º ano, 3ª série, nº152, 2 de junho 1919, p. 2. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2921551/f2.image.r=%22Mlle%20%20Teixeira%20Leite%22?rk=751076;4 . Acesso em: 22 jan. 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2...
).

Eufrásia regressou ao Brasil em 1922, voltou à Europa e esteve mais uma vez no Rio de Janeiro, em 1924, para retornar definitivamente em 1926. Passou a viver entre a capital, onde se hospedava no Hotel dos Estrangeiros, no atual bairro do Flamengo, estrategicamente posicionada próxima ao centro do poder político e econômico, e em Vassouras, na antiga residência. Durante todo o período em que residiu em Paris, Eufrásia foi determinada em suas ações para manter a Casa da Hera praticamente intacta.

Em 1929, Eufrásia foi diagnosticada com desequilíbrio funcional em uma lesão cardíaca e uma nefrite crônica que se agravava. Suas cartas revelam que, mesmo doente, continuou firme na gestão de seus negócios e tinha esperança de que restabeleceria a saúde para voltar à França. Manteve-se atuante contrariando a inatividade que a sociedade impõe aos idosos. Faleceu em 13 de setembro de 1930 num apartamento alugado meses antes por temporada na Ladeira da Glória, no Rio de Janeiro. O testamento que foi aberto dois dias após beneficiava os deserdados da sorte de Vassouras. Celibatária, sem herdeiros ascendentes, como avós e pais, e do mesmo modo sem descendentes, como filhos e netos, Eufrásia poderia escolher a quem beneficiar. Dessa forma, optou pela filantropia, visando equipar sua cidade de nascença com benfeitorias, como escolas e hospital. Eufrásia construiu sua postura altiva adotando posições pautadas em sua individualidade até em seu último momento ao optar por deixar sua herança para os menos afortunados, contrariando os interesses da família.

PADRÕES DESAFIADOS

A preservação da Casa da Hera é resultado, em primeiro lugar, da vontade de Eufrásia Teixeira Leite de conservar a casa do pai como a tinha vivenciado na juventude - assim o fez em vida e ao deixar em seu testamento a exigência de que não fosse habitada e nem modificada. A residência foi tombada em 1952 e transformada em museu na década seguinte6 6 O herdeiro responsável pela Casa da Hera foi o Instituto das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus. Um convênio de caráter permanente foi estabelecido com a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), em 1965, que passou a assumir sua administração. Em 1988, as irmãs do Instituto declararam-se impossibilitadas de continuar na administração do legado, transferindo-se, assim, à segunda herdeira, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Vassouras (FALCCI; MELO, 2012, p. 127). Desde 2009, o acordo é mantido com o recém-criado Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). . Nesse longo processo, deixou de ser uma residência e entrou na esfera pública, conservando mobiliário, elementos decorativos, utensílios domésticos e pessoais, quadros e um acervo de trajes.

De certa maneira, o propósito de Eufrásia se mantém até os dias atuais, visto que, embora a filha usufruísse de maior fama, é a narrativa do pai que é explorada através do circuito expositivo do museu. Há o discurso relacionado à própria casa e aos objetos que a constituem, esse indissociável da figura de Joaquim José Teixeira Leite, e sua atuação como comissário do café. Outro atribui à Eufrásia poder e domínio sobre as situações que enfrentou. Esse discurso eclode pontualmente através dos monitores no circuito expositivo, principalmente quando diante de seus retratos e eventualmente quando um de seus vestidos é exposto. Podemos identificar nesses objetos de museu a influência da moda, no sentido psicologicamente atraente dado por Gilberto Freyre (2009, p. 27): “a moda como uma expressão ou como um complemento de beleza, de elegância, de físico, de característico antropológico, de personalidade, mais de mulher do que de homem”. A sedução da moda nos leva a pensar em seu caráter efêmero, sua ênfase nas vaidades, atributos que para grande parte dos indivíduos não estariam associados a uma bem-sucedida mulher de negócios. Todavia, a moda não é avessa à lógica racional: para Gilles Lipovetsky (1989LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 17), a sedução é nela integrada ao cálculo e à razão produtiva, “onde a racionalidade funciona na efemeridade e na frivolidade, onde a objetividade se institui como espetáculo, onde o domínio técnico se reconcilia com o lúdico, e o domínio político, com a sedução”. É possível reivindicar autoridade e excelência na gestão dos negócios, manter-se disciplinado e estrategista, ao mesmo tempo que se postula o devaneio da moda.

Dentre os objetos preservados no MCH encontram-se dois retratos de Eufrásia, um quadro em pastel, em que aparece jovem, e outro em óleo, que a representa na meia-idade. Neles é possível observar sua aparência, notar seus trajes e sua postura firme. A nossa análise dos retratos articulará a identificação das linhas, cores e composição das formas com assuntos e conceitos, reconhecendo-os como elementos portadores de significados na identificação iconográfica. Todavia procuraremos nas imagens princípios subjacentes que revelem atitudes e intenções. Esse nível da investigação, que buscará compreender o retrato como um documento da personalidade de Eufrásia Teixeira Leite, reconhece no quadro algo a mais que a iconografia. Tal interpretação foi denominada pelo historiador da arte Erwin Panofsky (1892-1968) como “iconologia”. Neste caso a iconografia é integrada a outros métodos e procedimentos: “se o sufixo ‘grafia’ denota algo descritivo, assim também o sufixo ‘logia’ - derivado de logos, que quer dizer ‘pensamento’, ‘razão’ - denota algo interpretativo” (PANOFSKY, 1991PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991., p. 54). Assim, Panofsky concebeu a iconologia como uma iconografia interpretativa que requer o elemento histórico para que possa ser alcançada, posto que os métodos de abordagem de pesquisa se fundam num mesmo processo. Os historiadores do vestuário utilizam fontes visuais como ferramentas de análise da moda em sua complexidade, pois revelam características de tecido, modelagem e corte, mas também interpretações de diversos aspectos relacionados aos estilos das roupas, dos cabelos, da maquiagem, da postura corporal, dos acessórios. As fontes visuais, como a pintura, podem indicar sutilezas da codificação de gênero e idade, aspirações sociais, diferenças locais (TAYLOR, 2002TAYLOR, Lou. The study of dress history. Manchester: Manchester University Press, 2002.).

Um ensaio sociológico norteador no Brasil nas discussões sobre comportamento feminino imbricado com moda e estética foi publicado por Gilda de Mello e Souza (1919-2005) na Revista do Museu Paulista, em 19517 7 Como resultado de sua tese de doutorado, A moda no século XIX: ensaio de sociologia estética, defendida no ano anterior no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) sob a orientação do sociólogo francês Roger Bastide. A tese foi publicada em livro em 1987, 37 anos após a defesa, com o título O espírito das roupas: a moda no século dezenove, sendo regularmente reeditada. Utilizaremos neste artigo a 6ª reimpressão da 1ª edição publicada em 2009 pela editora Companhia das Letras. . A autora buscou interpretar as significações sociais da moda do século XIX a partir da análise de fotografias, pinturas, ilustrações e trechos literários de autores brasileiros como José de Alencar (1829-1877) e Machado de Assis (1839-1908), e franceses como Honoré de Balzac (1799-1850) e Marcel Proust (1871-1922). Analisou a diferença marcada pelas configurações existentes entre os sexos. Todavia se afastou da abordagem biológica ao considerar que a roupa acentua um conjunto de diferenças que modula a voz, os movimentos, a postura, e reforçou ser difícil separar os efeitos provocados pela natureza daqueles acrescentados por séculos pela mútua segregação da distinção de tarefas. A autora enfatizou que em sociedades de passado patriarcal, como a brasileira, o isolamento da mulher se manifesta nas atitudes tolhidas e na falta de naturalidade no convívio com o sexo oposto (SOUZA, 2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 58).

O antagonismo entre os “gêneros”, identificados como “sexos”8 8 De modo geral, diferencia-se sexo, que é biológico, de gênero, que é social, cultural (PERROT, 2007). no texto, é marcado por duas configurações morais: a masculina, regida por um “código de honra originado nos contatos da vida pública, comercial, política e das atividades profissionais”, que se diferencia da moral feminina, essa “relacionada com a pessoa e os hábitos do corpo e ditada por um único objetivo, agradar aos homens” (SOUZA, 2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 58). A vestimenta do século XIX reforçou de maneira categórica essas diferenças em formas, cores e tecidos mais do que em épocas anteriores. A moda conferiu a cada gênero um conjunto diferente de características marcado por princípios de restrição para homens e de exuberância para a mulher. A sociedade estratificada entre plebeus e aristocratas passou para uma sociedade de classes na qual as distinções seriam menos expressas por sinais exteriores e sim pelas qualidades pessoais de cada um. A individualidade não deve desaparecer nos adornos, “sumir debaixo dos brocados, formando com a roupa um todo indissolúvel, mas destacar-se dela, reduzindo-a a um cenário discreto e amortecido no qual se exibe o brilho pleno da personalidade” (SOUZA, 2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 81). A historiadora do vestuário Diana De Marly constata que no século XIX o dinheiro novo das indústrias e das finanças permitiram que as classes médias desafiassem a aristocracia. “O que era incomum nessa nova classe era que os homens concentravam suas energias em ganhar mais dinheiro e não gastavam tanto em seus guarda-roupas pessoais como a aristocracia havia feito” (DE MARLY, 1886, p. 24 - tradução nossa9 9 “What was unusual about this new class was that the men concentrated their energies on making more money and did not spend so much of it on their personal wardrobes as the aristocracy had done” (DE MARLY, 1886, p. 24). ). O homem abastado deixa de demonstrar status em si mesmo e concentra as evidências de seu poder monetário na vida elegante da esposa.

Num dos quartos da Casa da Hera, onde possivelmente dormiam as irmãs Teixeira Leite, atualmente destaca-se o quadro em pastel (Figura 1) no qual a filha caçula aparece jovem, na obra sem data, seu rosto aparenta entre 16 e 18 anos, suas maçãs são proeminentes, mas o maxilar mais estreito e a boca pequena ainda lhes dão um ar púbere. Seus olhos amendoados são acentuados por sobrancelhas arcadas, e seus cabelos estão tão presos para trás que aparentam ser curtos. Michelle Perrot (2007PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007., p. 55) aponta que, sobretudo no século XIX, há uma erotização dos cabelos das mulheres, época do esconder/mostrar, e que a sugestão de as “tosquiar” libertaria o homem “da obsessão de suas cabeleiras e talvez da culpabilidade de desejá-las”. Segundo a historiadora, as primeiras mulheres a cortar os cabelos foram estudantes russas dos anos 1870-1880, ao entrarem para as faculdades de medicina. Só a partir de então que se esboçaria uma silhueta de mulher jovem de cabelos curtos (PERROT, 2007PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p. 59). Cabelos raramente eram deixados soltos em público, entretanto, comumente os retratos femininos deixavam entrever que estavam presos num coque, o que não é visto em Eufrásia. Representada sentada num sofá sem encosto em postura ereta, seu corpo está em perfil para direita enquanto seu rosto frontal encara o espectador à medida que seu braço direito apoia-se numa almofada. O vestido de baile preto acinturado, com amplo decote com alças, exibe os braços desnudos e um imenso leque de plumas pende do seu lado esquerdo. O jogo da vestimenta feminina no século XIX indica um equilíbrio harmonioso entre o traje e a nudez. Entretanto, “o vestido da mocinha era, é verdade, paradoxalmente mais modesto que o da senhora casada” (SOUZA, 2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 152). A jovem Eufrásia parece desafiar o código definidor de que jovens sem marido deveriam demonstrar recato, permitindo maior concessão às casadas. Utiliza sua postura e descobre parte do seu corpo revelando sua individualidade, demonstrando já ter descoberto sua fisionomia pessoal. O leque em linha radial a partir da cintura contorna de maneira provocante sua silhueta.

Figura 1
Autor desconhecido, Eufrásia Teixeira Leite, pastel sobre tela 1,49 m x 1,51 m, s/d. Fonte: Ibram, Museu Casa da Hera, 2015

A figura de Eufrásia revela-nos um interesse pela moda, mas o faz com equilíbrio surpreendente, sabe jogar entre a ousadia do decote e a parcimônia do preto e dos quase imperceptíveis brincos. A coquetterie10 10 Atitude de quem busca admiração pelos cuidados excessivos com a aparência. é resultado de uma entrega apaixonada pelos adornos. A ausência de ornamentos no vestido é inusitada visto que, principalmente na segunda metade do século, era abundante o uso de babados, fitas, rendas e flores artificiais que tornavam um vestido diferente do outro. “E na diferença do modelo do vestuário inseriam-se, ainda que timidamente, as diferenças das individualidades, por mais que as mulheres da elite formassem um grupo homogêneo” (RODRIGUES, 2010RODRIGUES, Mariana Tavares. Mancebos e mocinhas: moda na literatura brasileira do século XIX. São Paulo: Estação Letras e Cores, 2010., p. 116). A jovem Eufrásia economiza-os num exercício de inteligência que não é fruto de ócio, mas da destreza dum espírito amadurecido. Parecer austero e simples era atributo masculino, uma vez que a mulher era símbolo de excesso, a possibilidade de escolher o que vestir também era um meio de se expressar. “A moda permitiu que a mulher se expressasse socialmente, não somente quando usava o que estava na ordem do dia, mas, em especial, quando conseguia dar às suas vestimentas a marca da sua individualidade” (RAINHO, 2002RAINHO, Maria do Carmo. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções - Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002., p. 145).

Os ambientes luxuosos da Casa da Hera indicam que as jovens irmãs Teixeira Leite viveram intensamente frequentando muitos bailes e saraus. Para tanto “as senhoras e moças compravam e mandavam vir por parentes ou através de caixeiros viajantes vestidos dos melhores costureiros da Corte, ou mesmo encomendavam da Europa” (TELLES, 1968TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras: estudo da construção residencial urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 16, Rio de Janeiro, 1968, p. 9-135. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=reviphan&pagfis=3866. Acesso em: jan. 2022.
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, p. 58). Não se sabe a procedência do vestido de Eufrásia Teixeira Leite retratado no pastel. Todavia, a indumentária está em sintonia com a silhueta da moda francesa do período, o que sugere uma referência com a Rua do Ouvidor, local que centralizava o melhor da moda no país. O desenvolvimento de Vassouras em meados do século impulsionou a preocupação com o luxo. Em 1864, instala-se na vila “o primeiro atelier de modas femininas, de Madame Masson, tendo, como diretora, a artista Madame Simon, e na mesma ocasião, abrem-se as joalherias de João Joaquim Calhois e de José Calazãs” (TELLES, 1968TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras: estudo da construção residencial urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 16, Rio de Janeiro, 1968, p. 9-135. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=reviphan&pagfis=3866. Acesso em: jan. 2022.
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, p. 58). Assim, os salões da família também se tornaram cenários para a moda. Os saraus e bailes eram frequentes, como indica Silva Telles a partir de uma carta escrita por Joaquim José Teixeira Leite, em 1865, endereçada ao conselheiro Belizário, que era casado com uma de suas sobrinhas. Na mensagem, o proprietário da Casa da Hera afirma que não é só em Botafogo que eles se divertiam, que as moças se regalavam em saraus que não pareciam terminar (TELLES, 1968TELLES, Augusto C. da Silva. Vassouras: estudo da construção residencial urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 16, Rio de Janeiro, 1968, p. 9-135. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=reviphan&pagfis=3866. Acesso em: jan. 2022.
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, p. 57).

No Brasil oitocentista, onde se multiplicaram títulos nobiliárquicos com o pagamento de altas taxas, os grupos não estavam caracterizados o bastante pela tradição dos costumes. Sendo assim, a posse de riquezas era a grande modificadora social. Souza identifica no romance romântico brasileiro a consideração do dinheiro como força da existência. Afirma, contudo, que, em sociedades em que as classes estavam separadas e conservadas pela tradição, o sentimento de classe seria mais forte (SOUZA, 2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 115). Assim sendo, Eufrásia deixou para trás uma sociedade de formação recente na qual a sua fortuna lhe daria garantias de privilégio bem maiores do que as que encontrou na alta sociedade francesa, na qual a riqueza seria apenas um dos elementos.

O retrato mais conhecido de Eufrásia se encontra no salão vermelho da Casa da Hera e a representa enquanto vivia em Paris (Figura 2). É uma pintura a óleo de autoria do francês Carolus-Duran (1837-1917), que assinou e datou 1887, mesmo ano do rompimento com Joaquim Nabuco11 11 Em carta número 218, do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, mas sem data, apenas com indicação de “Domingo”, Eufrásia escreve para Nabuco: “Passei a semana a mais triste possível, como era absolutamente necessário distrair-me, comecei o meu retrato, o Carolus prometeu-me fazer um chef-d’oeuvre e disse-me que quer perder a reputação que tem, se não for este um dos seus melhores retratos como pintura se entende”. Carta fac-símile reproduzida por Fernandes (2012, p. 198-199). . Eufrásia ostenta seus 37 anos com altivez e postura ereta. Sua figura de pele alva destaca-se do fundo vermelho em superfície lisa e sua face frontal firme no centro equilibra-se no tronco em perfil. Apesar da pouca maquiagem, seus olhos amendoados e expressivos são ampliados por sobrancelhas arqueadas, boca rubra, mas delicada, e queixo pouco proeminente, cabelos presos. O vestido de baile em cetim branco com decote generoso revela o volume do busto, pescoço alongado, sem joias, a alça pende provocantemente de seu ombro na direção do casaco de pele solto em seus braços12 12 Sobre a ousadia, podemos comparar com a repercussão de uma obra do aluno célebre de Carolus-Duran, John Singer Sargent (1856-1925), o quadro intitulado Madame X, pintado entre 1883-1884, que se encontra no acervo do Metropolitam Museum, de Nova York. Retrata Madame Pierre Gautreau num vestido preto com um generoso decote, a mão esquerda apresentando o anel de casamento. Na versão original, Sargent colocou uma das alças do vestido caída sobre o braço direito, semelhante à maneira como Carolus-Duran representou Eufrásia. O efeito sensual causou polêmica, obrigando o artista a repintar a alça no ombro e manter o título da obra num pseudônimo. . Como em seu retrato da juventude, Eufrásia utiliza os artifícios da moda a seu favor para realçar seu colo e olhos marcantes de maneira sedutora, mas igualmente destemida. Os anos vindouros constatarão que o casamento não era sua prioridade e pouco menos seria sua única oportunidade de realização social e econômica. Dessa maneira, se Eufrásia busca a arte de seduzir, ela a utiliza com outros propósitos.

Figura 2
Carolus-Duran, Eufrásia Teixeira Leite, pintura a óleo, 81,5 cm x 63,3 cm, 1887. Fonte: Ibram, Museu Casa da Hera, 2015

A mulher do século XIX, ao equilibrar as regras da etiqueta e a arte da sedução, combinava a oferta e a negação (SOUZA, 2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 93). No retrato, Carolus-Duran destaca seus encantos anatômicos com o vestido enfatizando seu decote, parte do braço desnudo e sua silhueta vigorosa, enquanto preenche o campo abaixo com o casaco de pele criando uma base firme para a composição triangular da figura. A segurança que a vassourense exibe vai além da simples elegância, imprime uma figura desafiadora. Sua experiência a legitima no momento econômico em que a riqueza se concentra na produção industrial e em outros veículos de investimento. Os industriais e banqueiros optavam por um visual austero, deixando para a sua esposa o caráter de exibição do status social através da suntuosidade dos vestidos e da beleza das joias. “A aparência das mulheres de um núcleo familiar constituía-se em um capital simbólico para seus homens, que ficavam na dependência da imagem que elas traduzissem para o seu grupo de convívio. E isso não custava pouco” (RODRIGUES, 2010RODRIGUES, Mariana Tavares. Mancebos e mocinhas: moda na literatura brasileira do século XIX. São Paulo: Estação Letras e Cores, 2010., p. 119). A posição central na composição desse núcleo social era ocupada por duas irmãs celibatárias que exerciam sua autonomização econômica. No quadro, a mulher de negócios encontra o equilíbrio entre a exuberância de seus atributos femininos expostos no vestido de baile e o rigor consigo mesma, seu caráter severo e sobriedade. Caberia uma observação do espaço em que o quadro se encontra atualmente no MCH, o salão vermelho, ambiente cuja função era recepcionar os homens após um jantar ou sarau para conversas ditas masculinas, onde fumavam enquanto discutiam política e economia (IBRAM, 2014IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus. Museu Casa da Hera/ Eneida Queiroz, Daniele de Sá Alves, Cinthia Rocha. Coleção Museus dos Ibram. Museu Casa da Hera / Brasília, DF: Ibram, 2014., p. 73).

Eufrásia demonstrou sua capacidade de trabalho ao atuar numa época em que a grande maioria das mulheres eram restritas ao âmbito doméstico mantendo-se firme numa invejável agenda social que dificilmente poderia ser associada ao ócio. Desse modo, afastou-se do perfil da mulher oitocentista, assumindo o que, na época, seria considerado um papel masculino, a realização da sua individualidade na profissão. Ocupou o espaço público onde mulheres eram menos vistas, onde o silêncio e a invisibilidade eram impostos a elas. Acreditamos que a gerência que imprimiu nos negócios, na forma de pensar, agir e acontecer, também estampou na maneira pela qual era vista. Antes de se submeter à conformidade da opressão da imagem da moda, Eufrásia a utilizou modelando sua aparência e abarcando suas ambiguidades. Sua imagem estabelece uma ligação entre a razão e o sentimento, sem excluir as contradições, sobriedade e ostentação, decoro e sensualidade, revelar e esconder.

TRAJES DE EUFRÁSIA

A coleção de trajes de Eufrásia Teixeira Leite apresenta em sua maioria peças de alta-costura francesa num recorte temporal do fim do século XIX ao início do XX e corresponde à época em que em vivia em Paris. Assim sendo, esta pesquisa buscou investigar indícios de quando esses trajes vieram para o Brasil. O inventário de Eufrásia datado de 18 de novembro de 1930, tendo como inventariante dr. Antônio José Fernandes Jr., apresenta a lista de bens do espólio existentes na propriedade Chácara da Hera. Na descrição dos objetos encontrados em seus respectivos cômodos é possível identificar inúmeras vezes a menção de “roupas antigas” (INVENTÁRIO..., 1930INVENTÁRIO de Eufrásia Teixeira Leite. Inventariante Dr. Antônio José Fernandes. Museu Casa da Hera (Cópia). Volume 1, Comarca de Vassouras, RJ, Brasil, 11 de outubro de 1930, p. 98-127. ). O inventário não descreve os trajes, porém podemos presumir, pelo volume encontrado entre gavetas e guarda vestidos, que as roupas já estavam na Casa da Hera quando do falecimento da proprietária. A descrição, mesmo que superficial, das peças, com indicação da tipologia e tecido, ocorreu em 1952 por conta do tombamento realizado pelo DPHAN solicitado pela madre Rachel Marchesi, do Instituto de Missionárias do Sagrado Coração de Jesus (UMBELINO, 2016UMBELINO, Ana Carolina de Freitas. O acervo de indumentária do Museu Casa da Hera: proposta de catálogo. 2016. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais). Escola de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Rio de Janeiro, 2016., p. 56-57). As herdeiras fizeram uma relação dos objetos, onde são listadas 54 peças entre trajes de diferentes tipologias, calçados, luvas, leques, chapéus e sombrinha, organizadas por salas e mostruários de peroba (RELAÇÃO..., 1952RELAÇÃO do Museu Histórico da “Casa da Hera” da finada Eufrasia Teixeira Leite. Processo de Tombamento, n. 459-T-52, p. 22-49. Arquivo Central do Iphan/Seção RJ, julho de 1952. In: A Casa Senhorial, Portugal, Brasil e Goa. Anatomia dos Interiores. Relação de móveis e objetos da Casa da Hera, 1952. Coordenação: Ana Pessoa (FCRB). Edição: Francesca Martinelli (PCTCC/FCRB), 2020. Disponível em: http://acasasenhorial.org/acs/index.php/pt/fontes-documentais/documenta-varia/548-relacao-de-moveis-e-objetos-da-casa-da-hera-1952. Acesso em: 26 jul. 2022.
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). Conseguimos coletar dados que indicam que a coleção foi exposta durante as primeiras décadas do museu, todavia, atualmente, esses trajes raramente são exibidos por motivo de conservação e permanecem acondicionados na reserva técnica. Esta pesquisa teve acesso à coleção em visitas técnicas orientadas pela equipe do museu.

A capacidade de agir no momento oportuno que Eufrásia imprimiu com maestria nos negócios pode ser corroborada pela contemporaneidade de seus trajes. Na coleção estão representados grandes nomes da alta-costura francesa da Belle Époque. Como um peignoir etiquetado Jacques Doucet (1853-1929), que converteu a loja de lingerie de luxo herdada do seu avô numa respeitável casa de alta-costura. Partes de uma fantasia de madame Paquin (1869-1936), primeira mulher a abrir uma maison de alta-costura, em 1891. Um casaco e uma saia da Maison Rouff, fundada em 1884, na qual madame Paquin havia sido treinada (DE MARLY, 1986DE MARLY, Diana. The history of haute couture 1850-1950. New York: Holmes & Meier Publishers, 1986.).

O destaque da coleção fica por conta das dez peças grifadas com a etiqueta da Maison Worth. O inglês Charles Frederick Worth (1825-1895) é considerado o pai da alta-costura por, ao fundar sua maison em 1857, ter atribuído a si mesmo o status de criador e não somente de fornecedor, como acontecia com os seus antecessores. Assumiu a condição de artista e promoveu a distinção entre as roupas produzidas pelas confecções e aquelas criadas sob o prestígio das casas de alta-costura. Sua grife foi mantida mesmo após a sua morte, sucedido por seu filho Jean-Philippe Worth (1856-1926), só encerrando as atividades 100 anos após ser fundada (DE MARLY, 1986DE MARLY, Diana. The history of haute couture 1850-1950. New York: Holmes & Meier Publishers, 1986.). Charles Worth assegurou a assinatura nas suas criações ao colocar uma etiqueta com seu nome nos trajes. No período em que esteve à frente da maison, empregou três modelos de etiquetas em suas criações - a última utilizada a partir de 1887 apresenta a inscrição “C Worth” em letras cursivas pretas simulando a assinatura do costureiro. Todos os trajes da Maison Worth pertencentes ao acervo do MCH apresentam essa tipologia de etiqueta, o que indica que foram adquiridas na transição entre o fundador e seus descendentes. Representam o momento de consolidação da alta-costura, uma transformação organizacional que daria conta da grande demanda da produção regular de vestuários inéditos sob medida. A alta-costura teve como base o individualismo na medida em que pregou vestir uma mulher de maneira singular a partir da autonomia criativa do costureiro. Suas criações representaram distinção de classe, mas principalmente foram sustentadas pela ideologia individualista, que reforçou gostos para a originalidade, a fantasia, a personalidade incomparável (LIPOVETSKY, 1989LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 103). Eufrásia usou em seu guarda-roupa as grandes maisons francesas de seu tempo, aquelas que vestiam princesas, duquesas, mulheres de banqueiros, mas também grandes atrizes, cantoras de ópera e cortesãs. O acervo de trajes no MCH forma uma importante evidência sobre esse momento definidor da organização do trabalho dentro dessa indústria. Podemos supor que dificilmente Eufrásia estaria desatenta a esse fenômeno de transformação na produção, distribuição e consumo de bens e serviços do mercado de moda. Embora os registros sobre seus negócios sejam escassos, é possível identificar o seu portfólio de investimentos no mercado financeiro internacional através de seu inventário. Entre ações de grandes empresas de diferentes setores encontram-se manufaturas têxteis, como linho e algodão (FALCCI; MELO, 2012, p. 97).

A coleção de trajes é uma evidência tangível do seu sucesso. Não só pela representação de grandes nomes da alta-costura, mas pela maneira sofisticada na qual equilibra roupas simples com suntuosas. Se a moda do final do século XIX distanciou os tipos de vestuário entre trajes discretos para o dia e faustosos para a noite, no guarda-roupa de Eufrásia Teixeira Leite esses códigos se misturam. Um conjunto para o dia em tafetá marrom tem aplicações em predarias e recortes no tecido formando folhas de café (Tombo 1117) . Por outro lado, um elegante vestido de baile de veludo preto enfatiza somente os drapeados em forma de grande laço que acompanham o decote (Tombo 1130). No conjunto, os trajes apresentam diversidade de estilos que acompanham tanto as atualizações das silhuetas da moda quanto a adequação em diferentes ocasiões: vestidos de baile (Tombo 1134), trajes de montaria (Tombo 1140), saídas de teatro (Tombo 1150), tailleurs tradicionalmente associados às atividades esportivas e ao trabalho (Tombo 1243) e sobrepostos utilizados para cobrir os decotes nas intempéries (Tombo 1149). Os conjuntos esporte eram utilizados em passeios pela cidade, em cafés e restaurantes, eram versáteis e demonstram o ganho de autonomia que certas mulheres exigiram nas últimas décadas do século.

O vínculo religioso de Eufrásia é incontestável, basta observar algumas de suas atividades e o destino de sua herança às instituições católicas, todavia seus trajes também revelam seu gosto pelas fantasias decorativas e excessos da moda, considerados um desvio da moral cristã tradicional. Para uma mulher celibatária de meia-idade, representava a busca de uma vida mais livre e cheia de alegria, demonstrando que o enobrecimento do trabalho não significava o descarte das frivolidades, das belezas temporárias e do prazer. Bastante diferente da imagem da solteirona descrita por Gilda de Mello e Souza (2009SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 90), de mulher fracassada entregue aos bordados infindáveis que tinha de se conformar à vida cinzenta.

Como uma mulher de negócios, Eufrásia utilizou a moda como um instrumento de integração individual à alta sociedade. Mas também o fez como meio de expressão, embora não fosse seu único meio, exerceu sua sintonia com o tempo presente e reconheceu a importância da estética que não é apenas herdada naturalmente, mas criada. Se levarmos em consideração a exuberância de alguns de seus trajes seja na forma dos vestidos, na ousadia do decote, seja na escolha dos tecidos e uso de ornamentos, podemos perceber que Eufrásia procurou utilizar a moda como instrumento de afirmação de sua individualidade.

As escolhas estéticas da vassourense desviam das proposições sisudas associadas às mulheres celibatárias. Mesmo atuando como uma mulher de negócios, não demonstrou desinteresse completo pelo adorno, como fizeram os políticos e homens de carreira profissional, ou mesmo as mulheres que assumiam funções como governantas, e como fizeram as feministas das primeiras ondas. A análise dos retratos e a investigação de sua coleção de trajes apontam para a habilidade de Eufrásia em equilibrar os valores estéticos convencionados como femininos e os relacionados à eficiência masculina. Roupas, acessórios e adornos foram instrumentos que utilizou na afirmação de sua individualidade e como artifício socializador empregado nos ambientes em que circulou.

Podemos concluir que Eufrásia enfrentou as configurações morais que marcavam o antagonismo de gênero de maneira a demonstrar controle da própria imagem. Nos quadros analisados, seu olhar não é vago, nem é dirigido para fora da cena, ela encara o observador, desafiando-o. Seus retratos e sua coleção de trajes sugerem que, mesmo como solteira e mulher de negócios, não optou pelas formas contidas e aparência parcimoniosa. Utilizando decotes, braços desnudos, evidenciando pescoço e nuca, cintura marcada, seus trajes bem talhados eram ornamentos com bordados e aplicações diversas. Empregou tais artifícios numa atitude que não indica passividade visto que, ao utilizar os recursos da moda, operou com as convenções identificadas com a feminilidade hegemônica sem demonstrar submissão. Suas cartas e testamento reforçam seu controle sobre si, seu juízo diante das situações, e que não se enquadrava ao papel de subordinação que era imposto às mulheres. Os documentos apontam para um comportamento que desafiava as demarcações masculinas de autoridade. Suas escolhas demonstraram ruptura com os padrões sociais impostos a uma mulher celibatária, dessa maneira a moda serviu-lhe como meio de expressão, de busca da própria individualidade, na afirmação de sua autonomização em ambientes de circulação masculina.

  • 3
    A autora faz referência ao romance A prima Bette, de Honoré de Balzac, publicado em 1846. A personagem título é uma solteirona de meia-idade amargurada que por inveja busca destruir a família de sua prima.
  • 4
    Esta pesquisa identificou na obra machadiana a tia Úrsula, do romance Helena (1876ASSIS, Machado de. Helena. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4827/1/002049_COMPLETO.pdf. Acesso em: dez. 2022.
    https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm...
    ), a ama Maria das Dores, de Iaiá Garcia (1878ASSIS, Machado de. Yaiá Yaiá Garcia. Rio de Janeiro: G. Vianna & C. Editores, 1878. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4775/1/002147_COMPLETO.pdf. Acesso em: dez. 2022.
    https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm...
    ), e a tia Camila, do romance O homem (1887AZEVEDO, Aluísio. O homem. 3. ed. Rio de Janeiro: Typ. De Adolpho de Castro Silva & C., 1887. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4893/1/002293_COMPLETO.pdf. Acesso em: dez. 2022.
    https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm...
    ), de Aluísio Azevedo.
  • 5
    Mlle Teixeira est bien connue à Paris pour sa distinction et sa beauté, et fort appréciée dans le monde” (ECHOS..., 1887ECHOS de Paris. Le Gaulois : littéraire et politique, Vigésimo primeiro ano. Terceira série, número 1773, Paris, 7 de julho de 1887, p. 1. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5261853/f1.image.r=Teixeira%20leite?rk=21459;2 . Acesso em: 22 jan. 2022.
    https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5...
    ).
  • 6
    O herdeiro responsável pela Casa da Hera foi o Instituto das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus. Um convênio de caráter permanente foi estabelecido com a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), em 1965, que passou a assumir sua administração. Em 1988, as irmãs do Instituto declararam-se impossibilitadas de continuar na administração do legado, transferindo-se, assim, à segunda herdeira, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Vassouras (FALCCI; MELO, 2012, p. 127). Desde 2009, o acordo é mantido com o recém-criado Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).
  • 7
    Como resultado de sua tese de doutorado, A moda no século XIX: ensaio de sociologia estética, defendida no ano anterior no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) sob a orientação do sociólogo francês Roger Bastide. A tese foi publicada em livro em 1987, 37 anos após a defesa, com o título O espírito das roupas: a moda no século dezenove, sendo regularmente reeditada. Utilizaremos neste artigo a 6ª reimpressão da 1ª edição publicada em 2009 pela editora Companhia das Letras.
  • 8
    De modo geral, diferencia-se sexo, que é biológico, de gênero, que é social, cultural (PERROT, 2007PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.).
  • 9
    What was unusual about this new class was that the men concentrated their energies on making more money and did not spend so much of it on their personal wardrobes as the aristocracy had done” (DE MARLY, 1886, p. 24).
  • 10
    Atitude de quem busca admiração pelos cuidados excessivos com a aparência.
  • 11
    Em carta número 218, do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, mas sem data, apenas com indicação de “Domingo”, Eufrásia escreve para Nabuco: “Passei a semana a mais triste possível, como era absolutamente necessário distrair-me, comecei o meu retrato, o Carolus prometeu-me fazer um chef-d’oeuvre e disse-me que quer perder a reputação que tem, se não for este um dos seus melhores retratos como pintura se entende”. Carta fac-símile reproduzida por Fernandes (2012FERNANDES, Neusa. Eufrásia e Nabuco. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012., p. 198-199).
  • 12
    Sobre a ousadia, podemos comparar com a repercussão de uma obra do aluno célebre de Carolus-Duran, John Singer Sargent (1856-1925), o quadro intitulado Madame X, pintado entre 1883-1884MADAME X (Madame Pierre Gautreau), 1883-84. John Singer Sargent. The MET - The Metropolitam Museum. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/12127. Acesso em: 11 jan. 2022.
    https://www.metmuseum.org/art/collection...
    , que se encontra no acervo do Metropolitam Museum, de Nova York. Retrata Madame Pierre Gautreau num vestido preto com um generoso decote, a mão esquerda apresentando o anel de casamento. Na versão original, Sargent colocou uma das alças do vestido caída sobre o braço direito, semelhante à maneira como Carolus-Duran representou Eufrásia. O efeito sensual causou polêmica, obrigando o artista a repintar a alça no ombro e manter o título da obra num pseudônimo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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