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A tripla transformação da vida humana

The triple transformation of human life

RESUMO

O texto faz uma avaliação crítica do livro lançado em 2021 pelo geógrafo Jacques Lévy (L’humanité: un commencement. Le tournant éthique de la société-Monde). Trata-se de uma edição francesa, mas de acesso ao público brasileiro, que de forma ensaística, rigorosa e criativa procura descrever mudanças vistas como fundamentais pelo autor no mundo contemporâneo, a saber: o processo de formação de uma sociedade-Mundo; a inexorabilidade da emergência da sociedade de indivíduos; e a virada ética. Na resenha, verticalizamos a análise tratando do capítulo 9 (“Rendre le futur habitable”) como um exemplo do tom geral da obra.

PALAVRAS-CHAVE
Sociedade-Mundo; sociedade de indivíduos; virada ética.

ABSTRACT

This essay makes a critical evaluation from the book launched in 2021 by the geographer Jacques Lévy (L’humanité: un commencement. Le tournant éthique de la société-Monde). It is a French edition, but accessible to the Brazilian public, which in a creative, essayistic and rigorous way seeks to describe changes seen as fundamental by the author in the contemporary world, namely: the formation process of a World society; the inexorability from the emergence of the society of individuals; and the ethical turn. In the review, we verticalize the analysis by treating chapter 9 (“Rendre le futur habitable”) as an example of the general tone of the work.

KEYWORDS
World society; society of individuals; ethical turn

Em L’humanité: un commencement. Le tournant éthique de la société-Monde, do geógrafo Jacques Lévy, ficamos expostos ao pensamento de um autor que atingiu sua maturidade intelectual. Nada mais distante da geografia convencional que o livro agora publicado. Observa-se, em especial, nos seus trabalhos recentes a consolidação de um projeto intelectual que articula um repertório impressionante. Em sua trajetória uma das marcas principais é a reflexão epistemológica, o que não chega a ser uma postura comum na história dessa ciência. Milton Santos, um dos precursores da reflexão epistemológica na geografia gostava de dizer que os praticantes das áreas disciplinares devem ser seus próprios filósofos. Jacques Lévy corresponde a essa postura advogada pelo geógrafo brasileiro. Nos anos 1990 (antes mesmo) ele já fazia problematizações críticas sobre os “recortes” disciplinares que parcelavam a realidade de forma insensível, logo a desfigurando. As disciplinas deveriam evoluir para abordagens dimensionais, e nesse empenho ele argumenta a pertinência renovadora da geografia, pois para ele uma das dimensões constituidoras da realidade social, ao mesmo tempo presente em todas as outras dimensões assim como é em si atravessada pelas outras dimensões, é a dimensão espacial.

A partir dessa abordagem suas reflexões foram se alimentando do conjunto dos saberes das ciências sociais e da filosofia, ultrapassando a dimensão espacial, sem deixar de incluí-la na avaliação conjunta das realidades sociais. Nesse percurso Lévy evoluiu e incorporou o slogan da revista Espaces Temps: uma revista indisciplinar das ciências sociais (Revue indisciplinaire de sciences sociales, fundada em 1975). Quem acompanhou (e acompanha) suas intervenções na revista, nos editoriais, nas pesquisas, nos diversos artigos em parceria e individuais viu sua visão de mundo se construindo e sendo aplicada em diversos temas. E viu também sua ousadia epistemológica se superar com a publicação de um livro que resulta de um projeto coletivo, cujo título é Pour une science du social (DULAC, 2022DULAC. Pour une science du social. Paris: CNRS Editions, 2022.), ou melhor: por uma única ciência do social. Seu antigo companheiro de jornada Christian Grataloup (2018)GRATALOUP, Christian. Jacques Lévy, Nobel de la géographie 2018. EspacesTemps.net [En ligne]. In the air, 2018 | Mis en ligne le 26 July 2018. Disponível em: https://www.espacestemps.net/articles/jacques-levy-nobel-de-la-geographie-201. Acessado em: 13 fev. 2023.
https://www.espacestemps.net/articles/ja...
testemunha tudo o que ressaltamos num belo artigo que evoca o momento em que Jacques Lévy foi agraciado com o prêmio Vautrin-Lud (2018), que é considerado o Nobel da geografia.

Para quem não conhece Jacques Lévy, as teses que orientam L’humanité: un commencement. Le tournant éthique de la société-Monde podem espantar. Elas extrapolam as fronteiras de sua disciplina e descrevem a partir de vasta argumentação teórica, bem ancorada empiricamente, uma tripla transformação social, em andamento, do humano no planeta. O que ele nota está longe de ser consensual, mas desde logo se pode louvar o quanto é instigante.

Resumindo de forma bem objetiva as três transformações: a primeira delas é a emergência de uma sociedade de indivíduos e com ela a figura do indivíduo/ator-social. A abordagem de Norbert Elias em A sociedade dos indivíduos (1994ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.) que percebia uma conciliação entre dois termos aparentemente contraditórios (indivíduo e sociedade) adquire atualmente uma concretude que não pode mais ser negada. A ascensão do indivíduo ao status de realidade sociológica incontornável implica diretamente na dinâmica política, assim como, anteriormente, a sociedade de classes correspondia a uma dinâmica política específica marcada tanto positivamente, com base num ideário a ser alcançado por meio da consciência de classe, quanto negativamente, por “ideologias de classe” criadoras de ilusões. Ora, na era da sociedade dos indivíduos é a psique individual que conta substancialmente nas representações políticas do indivíduo, mesmo considerando que ela não se constitui numa redoma e sim num solo social pleno de influências, mas ainda assim é uma psique individual. Daí a psicopolítica. Ela é o encontro entre o agir pessoal e o agir político no seio de um mesmo indivíduo. Como se vê, é um tanto diferente do filósofo Byung-Chul Han (2020)HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020. que percebe a proeminência do indivíduo e sua psique na sua própria e voluntária dominação. E, a isso, ele denomina psicopolítica. Para Lévy, sem diminuir a complexidade do fenômeno e sem deixar de perceber as contradições perturbadoras que Han percebe, a psicopolítica é um dado da emancipação do indivíduo. Emancipação, porque a psicopolítica é parte do capital social do indivíduo, e Lévy opõe essa metáfora à ideia de habitus, que, sabemos, indica a incorporação constrangedora e involuntária de mecanismos e normas nas práticas dos indivíduos. O habitus pertence ao modelo teórico do agente, enquanto o capital social, ao modelo do ator social. A condição de ator-social não é óbvia, afinal esse status jamais foi concedido ao indivíduo. E essa é uma das transformações notadas.

A segunda transformação é a marcha consistente, mesmo que não linear, em direção a uma sociedade-Mundo. Os indivíduos não emergem em contextos rígidos marcados por comunitarismos nacionalistas estreitos, exacerbados por outros “comunitarismos civilizatórios”. Logo, a emergência do indivíduo reflete mudanças na escala das organizações sociais que ultrapassam as fronteiras nacionais e que são também “moldes morais” que cerceiam os indivíduos. Novos laços de solidariedade surgem na escala mundial em contraposição às relações internacionais marcadas pela geopolítica. Jacques Lévy desenvolve uma argumentação inovadora nesse campo e contraintuitiva, ao menos em relação a um senso comum (muito rígido, por sinal) que é aquele que assevera que a mundialização (a “globalização”) seria uma vitória do capitalismo. Segundo ele, não é! É impertinente colocar na conta exclusiva da supremacia do capitalismo não só a emergência dos indivíduos face às comunidades, mas também “os desenvolvimentos espetaculares da pesquisa, da educação, da comunicação e, de modo geral, a reflexividade ou ainda a dinâmica dos valores do viver-juntos, coisas essas que conhecem um crescimento incontestável”3 3 A tradução de todos os trechos do livro aqui citados é de nossa responsabilidade. (p. 41). Também podem ser incluídas nesses desenvolvimentos citados as novas relações estabelecidas não só do ponto de vista econômico, mas principalmente do ponto de vista intelectual e político, as novas modalidades de relações das sociedades contemporâneas com os ambientes naturais. A emergência das contestações ao produtivismo predador dos ambientes naturais é ela própria um elemento constitutivo na sociedade-Mundo. É discutível que tudo isso possa ser considerado como capitalista, eliminando a contribuição e os interesses surgidos no complexo social não subordinados à dinâmica do capitalismo. Assim, a sociedade-Mundo não é uma derivação automática do capitalismo e deve ser observada no seu conteúdo para além desse reducionismo.

A terceira transformação é o que ele designa como uma “virada ética” (uma verdadeira revolução nesse campo), que não está, obviamente, descolada das outras duas transformações assinaladas. A emergência da sociedade dos indivíduos em direção a uma sociedade-Mundo não poderia sobreviver com os “modelos morais circunscritos” reinantes. É preciso transitar da moral para a ética, pois a moral circunscrita é um constrangimento para as relações entre indivíduos diversos. É por meio de uma virada ética que o singular do indivíduo pode adquirir uma condição de respeito e reconhecimento universal e que de fato possa se fundar a política como processo de entendimento num mundo desejavelmente plural. A argumentação de Lévy sobre essa terceira transformação é notável (inclusive em termos de erudição filosófica), percorrendo, por exemplo, a ética da produção científica como um campo indispensável da liberdade humana.

Dada essa visão panorâmica do livro de Lévy, vale a pena uma visão mais vertical dessa interpretação do mundo contemporâneo trabalhada num dos capítulos, “Rendre le futur habitable” (p. 319)4 4 A avaliação sobre esse capítulo já foi realizada de forma mais extensa e detalhada num artigo específico denominado “O futuro como recurso, mas aberto à historicidade” (FONSECA; OLIVA, 2022). . Uma das facetas do estilo desse autor aparece de forma destacada nesse capítulo. Trata-se dos recursos discursivos que ele vem mobilizando e aperfeiçoando ao longo de sua carreira em praticamente todas as publicações que realiza. Ele é um exímio cultor da forma ensaística com forte componente autoral, como deve ser um ensaio. No entanto, isso não significa tomar liberdades indevidas em relação ao universo empírico. A marca que fica é a de uma abordagem trabalhada teoricamente de forma bastante controlada e criativa. Vale esse comentário, pois em nossa paisagem intelectual a escrita ensaística, por vezes, é percebida como uma criação sobre aquilo que não se sabe de verdade, e que será substituída assim que a verdade aparecer no corpo de uma tese sustentada em pesquisa e enunciada num texto controlado metodologicamente e normatizado. Assim, na tese, o autor é quase apenas o veículo da verdade metodológica que surgiu.

Algo que mostra a consistência desse rigoroso estilo ensaístico é a capacidade que esse autor demonstra em organizar o seu pensamento, assim como os de outros. Para quem conhece sua obra, isso é visível no seu percurso. Nesse capítulo, ele mais uma vez comprova essa potência organizadora traduzindo seu pensamento em gráficos, quadros e tabelas. Assim, como estão presentes ao longo do livro mapas inovadores e criativos. Talvez, sua forte relação com as questões espaciais implique a necessidade que ele sente de dar visualidade às relações, às transversalidades e às influências que operam na malha complexa do pensamento teórico. A figura 9 (p. 323), na verdade um quadro, denominado “Les futurs impensés”5 5 “Futuros impensados” é uma tradução imediata. , exemplifica bem essa potência esclarecedora e criativa sobre o encaixe teórico das ideias sobre o futuro nas diversas formas de pensamento. O que resulta é que essa complexidade fica inteiramente evidente diante de todos como se assim fosse o normal, mas não é assim, já que o comum é cercar o pensamento teórico de obscuridades.

No livro, de um modo geral, há um conjunto de pontos de vista que são desenvolvidos, cujas referências principais encontram-se na paisagem intelectual europeia, zona de maior controle empírico do autor. Mas isso não tem força para ser um óbice no desenrolar dos capítulos e nesse também. É possível ao bom leitor modular e aclimatar as elaborações para nosso contexto sem nenhum problema. Um exemplo interessante que mostra a proximidade dos contextos europeu e brasileiro, e que as necessárias aclimatações não precisam ser de monta, é quando ele diz que “na cena intelectual europeia é frequente julgar suspeita qualquer análise que conclua que as coisas estão melhorando” (p. 322). Não podíamos apenas substituir cena intelectual europeia por cena intelectual brasileira?

Para descrever a originalidade do pensamento de Lévy sobre a questão do futuro, dos futuros que estão impensados, vale indicar alguns pontos-chave de sua abordagem teórica, que, aliás, percorrem a integralidade do livro. O primeiro deles é seu posicionamento ao lado da historicidade da vida social. Ele recusa qualquer viés naturalista na composiação do conteúdo do humano social. O humano social é a principal consequência da historicidade humana. A isso se soma, o que já foi destacado anteriormente nesse texto, a percepção da emergência do indivíduo/ator-social que supera sua condição de apenas agente. Agora, o indíviduo/ator-social ascende porque suas ações se efetivam diferencialmente, é certo, mas se efetivam segundo intenções, o que faz com que a dinâmica social não seja mais descrita sem a consideração dessa força social emergente. Uma derivação lógica (e óbvia) no pensamento de alguém que é convicto sobre a historicidade humana e que também percebe que em meio a essa historicidade estão se gestando novas forças relevantes (os indíviduos/atores-sociais) é a recusa em admitir uma história imóvel. Para Jacques Lévy a história é móvel, há movimentos relevantes e os séculos que nos antecederam são plenos de transformação. Consequentemente, há lugar lógico para o futuro nessa dinâmica. E isso não é óbvio para boa parte das escolas de pensamento.

Para aqueles que entendem e percebem que as realidades sociais contemporâneas são o resultado completo do “modo de produção capitalista”, portanto função dessa condição hierárquica, a historicidade humana e seu futuro estão bloqueados e no máximo variam no interior das margens e das crises que atingem esse sistema. Jacques Lévy identifica nessa posição uma forma de estruturalismo. Contudo, a reação dos adeptos a essa percepção da dinâmica social subordinada à “lógica cega” do sistema capitalista será, certamente, de negação quanto ao seu estruturalismo, pois nessa elaboração a argumentação sobre a história (afinal, trata-se do materialismo histórico) e sua transformação é central. E aí, naturalmente, cabe menção ao futuro, o que é inegável. Mas então por que um estruturalismo com o futuro bloqueado? Porque no materialismo histórico mais ortodoxo o futuro é único. Já está inscrito numa lógica etapista da história. Esse futuro não é automático, pois cabe à ação política centrada nas classes sociais destravá-lo e fazer a “natureza” da história se realizar. Logo, a ação política não cria, não inventa, não delibera; apenas abre caminho para uma transcendência quase que milenarista. Dito de outra maneira: o futuro como uma fantasia em desconexão radical com esse presente, tal como é o ideário da substituição total (em todos os sentidos) de nosso mundo por uma outra vida social tomando uma via revolucionária, única capaz de desbloquear a emancipação humana.

A cena intelectual brasileira (e também a diretamente política), em boa medida, não escapa desse entendimento. Para Jacques Lévy esse não é o único tipo de visão estruturalista. Há outros tipos de pensamento estruturalista que também não observam movimentos substanciais na história. Isso pode parecer estranho a muitos leitores habituados a uma visão nominalista das correntes de pensamento, e nesse caso só existiria um estruturalismo que é aquele que assim ficou conhecido, o estruturalismo da antropologia de Lévi-Strauss. Ora, diferentes estruturas sociais/culturais, mais explícitas ou mais implícitas, porém possuidoras da mesma rigidez e inflexibilidade e que estariam no fundo das diversas constituições sociais, compõem algumas correntes de pensamento que além dos nomes mais conhecidos podem ser incluídas na “grande família estruturalista”.

O que Jacques Lévy sugere nesse capítulo é uma inflexão que tem como mérito abrir uma nova discussão para o futuro para além dos estruturalismos. de liberar a discussão sobre o futuro. Na figura 9 (p. 323), já mencionada, há uma orientação para a ampliação dessa discussão. Lévy indica, segundo as escolas de pensamento destacadas no quadro, duas famílias básicas de visões sobre o futuro: da primeira já tratamos, trata-se dos estruturalismos com algumas variações contemporâneas, tais como um neoestruturalismo e um neonaturalismo. Em acréscimo ao que já foi apontado, diz-se no quadro citado que, além do futuro desconectado com o presente (o futuro teleológico do materialismo histórico), temos o fim da história definido pela visão catastrofista do destino do planeta (neonaturalismo), numa espécie de distopia de terra arrasada. Uma segunda família de visões sobre o futuro, ainda não mencionada aqui, se constitui daquelas visões naturalizadas, tal como o entendimento de que o tempo vai passando, e essa acumulação é o futuro, ou então aquela de que o futuro existe como fruto de avanços incontroláveis do meio científico/tecnológico, como gostava de dizer o geógrafo Milton Santos. O que também pode desembocar em distopias de regimes de dominação do humano pela inteligência artificial, como fantasia a ficção científica. A indiferença com a historicidade humana, pelo menos a historicidade movida pelo indíviduo/ator-social, dá o tom de todas essas visões.

Um comentário adicional. Não deixa de ser curioso que, se por um lado Lévy argumenta que a descrença na historicidade humana bloqueia ao mesmo tempo o futuro e a discussão sobre ele, as visões estruturalistas geram simplismos que condenam a própria historicidade humana e os mundos sociais que ela produz como os responsáveis pela impossibilidade do futuro. Por isso, a ideia do futuro que resta ao materialismo histórico é aquela que tem que se desligar do presente, abolindo todos os aspectos dos mundos sociais existentes para que, quando não houver mais pluralidade, interesses divergentes e diversas morais, possamos criar, aí assim, um futuro verdadeiro.

Dito tudo isso, como na discussão proposta por Lévy o futuro se torna uma questão pertinente e pode ser um projeto social, um projeto da historicidade humana? Aí o autor introduz uma figura maltratada em termos teóricos, mas de valor heurístico inegável, que é o tema do progresso, que, aliás, tem a condição de elucidar o enigma do futuro. Afinal, como limpar a área e salvar a questão do progresso do estigma de ser meramente uma figura ideológica (logo, ilusória) do avanço do capitalismo. É sabido que os movimentos ambientalistas em geral associam o progresso à degradação sem limites do meio natural. Denuncia-se que pensar que o progresso é a melhor encarnação da historicidade humana, de um futuro melhor é a pior armadilha ideológica armada na dinâmica do capitalismo. Embora, nem sempre de forma explícita, os chamados progressistas sejam vistos, por vezes, como adversários da esquerda, da “verdadeira esquerda”, aquela que é revolucionária e que está encarregada de destravar a história.

Afinal, há avanços no “interior de uma sociedade capitalista”, quer dizer: progresso? A ideia de progresso pode ser instrumentalizada pelas dinâmicas reprodutivas do capitalismo? Respondendo a última questão: a ideia de progresso está em disputa, mas o que resolve essa contenda é a capacidade dos procedimentos democráticos instalarem dinâmicas de busca pela justiça social com base em discussões que se renovem constantemente. E, para responder a primeira indagação, seria grosseiro ignorar certas transformações históricas recentes como avanços. As já citadas lutas ambientalistas e principalmente as lutas antirracistas, a emancipação feminina e de outros segmentos de gênero oprimidos são exemplos consistentes de que se saiu do ponto zero e que isso não é meramente o aperfeiçoamento que mascara de forma mais sofisticada a opressão capitalista.

Nesse ponto cruzamos a argumentação da emergência de uma sociedade que conhece a ascensão do indivíduo/ator social com os protagonistas do progresso, exemplificado pelas lutas e conquistas emancipatórias e ambientais. Foram os atores sociais (individuais e coletivos) que promoveram as inflexões nas estruturas outrora invulneráveis. Um exemplo brasileiro para dar concretude a esse entendimento: a onda política de extrema-direita, de tipo libertarianista6 6 Um neoliberalismo ideologizado, com traços e “ganas” de fascismo, que vai para além da esfera econômica. , que se instalou no Brasil, atuou para desmontar os direitos trabalhistas. Não foi uma revisão, e sim um desmonte. Para os partidos políticos, para os sindicatos de trabalhadores e para certos setores intelectuais tratou-se de uma derrota. Derrota por quê? Removeram-se “direitos naturais” do mundo do trabalho, ou visaram destruir conquistas que expressaram vitórias políticas de outros momentos históricos? Se essas conquistas anteriores não eram um avanço (um “progresso”), por que lamentar-se agora? Lamenta-se porque pode haver reação (e regressão) às mudanças surgidas no interior de várias sociedades e que tiveram como protagonistas os novos indíviduos/atores-sociais e são eles que dão pertinência teórica para a discussão do futuro.

Outro cruzamento que se pode fazer é entre a “virada ética”, uma das grandes transformações na vida social contemporânea e a própria discussão do futuro. Segundo Jacques Lévy, a discussão do futuro se inscreve na virada ética. Descartando as visões simplistas e naturalizadas sobre o futuro, resta refletir sobre um futuro que projeta a complexidade social e uma historicidade real, o que exige mais em termos teóricos do que as utopias que precisam da simplificação social (e irreal) para a construção de um futuro perfeito. Como ressaltado antes, a instalação de valores morais homogêneos e dominantes é uma ilusão infantil e não sustentará um futuro com organizações sociais democráticas e plurais, com sociedades complexas reais.

O exemplo desse capítulo pode ser estendido ao conjunto do livro. São discussões densas, sempre permeadas pela tese da tripla transformação da vida humana, que também nos exporão a outras discussões e a argumentos incomuns no cenário intelectual e político brasileiro. A abordagem ousada de Lévy, com todos os riscos do pensamento autoral, resulta da obra de uma vida, não acompanha modismos e até os enfrenta (o que sempre tem um custo) e, pela sua consistência, honra o seu projeto de praticar, com qualidade, uma ciência social que é única.

  • 3
    A tradução de todos os trechos do livro aqui citados é de nossa responsabilidade.
  • 4
    A avaliação sobre esse capítulo já foi realizada de forma mais extensa e detalhada num artigo específico denominado “O futuro como recurso, mas aberto à historicidade” (FONSECA; OLIVA, 2022FONSECA, Fernanda Padovesi; OLIVA, Jaime. O futuro como recurso, mas aberto à historicidade. Punto Sur, v. 6, 2022, p. 218-222.).
  • 5
    “Futuros impensados” é uma tradução imediata.
  • 6
    Um neoliberalismo ideologizado, com traços e “ganas” de fascismo, que vai para além da esfera econômica.

Referências

  • DULAC. Pour une science du social Paris: CNRS Editions, 2022.
  • ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
  • FONSECA, Fernanda Padovesi; OLIVA, Jaime. O futuro como recurso, mas aberto à historicidade. Punto Sur, v. 6, 2022, p. 218-222.
  • GRATALOUP, Christian. Jacques Lévy, Nobel de la géographie 2018. EspacesTemps.net [En ligne]. In the air, 2018 | Mis en ligne le 26 July 2018. Disponível em: https://www.espacestemps.net/articles/jacques-levy-nobel-de-la-geographie-201 Acessado em: 13 fev. 2023.
    » https://www.espacestemps.net/articles/jacques-levy-nobel-de-la-geographie-201
  • HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2023
  • Aceito
    15 Fev 2023
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