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A branquitude em discussão: formas de exclusão e de manutenção de privilégios

Whiteness under discussion: forms of exclusion and maintenance of privileges

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. . São Paulo: Companhia das Letras, 2022

RESUMO

O livro apresenta as evidências do funcionamento de um acordo tácito não declarado de preservação das pessoas brancas em lugares de poder. O pacto da branquitude desmistifica qualquer discurso meritocrático e revela as profundas raízes do racismo nas corporações, universidades e organizações.

PALAVRAS-CHAVE
Racismo; branquitude; desigualdade racial

ABSTRACT

The book presents the evidence of the workings of an unstated tacit agreement to preserve white people in places of power. The pact of whiteness debunks any meritocratic discourse and reveals the deep roots of racism in corporations, universities, and organizations.

KEYWORDS
Racism; whiteness; racial inequality

Maria Aparecida da Silva Bento, ou Cida Bento, é psicóloga dedicada à área de recursos humanos. Sua tese de doutorado, defendida em 2002BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2002. no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), intitulada Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público, é a principal fonte das problematizações contidas no livro O pacto da branquitude. Profissional com mais de três décadas de experiência no mundo corporativo, a autora também é fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert). Essa larga experiência fundamentou a observação do racismo e foi terreno para a elaboração de intervenções antirracistas.

“Não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos” (p. 14). Com essa colocação inicial a autora desconcerta opiniões estabelecidas e propõe um outro olhar sobre o problema racial no Brasil. Em dez capítulos curtos e um epílogo, a autora atualiza a questão do enfrentamento da discriminação racial jogando luzes para a branquitude. Faz isso partindo do diálogo entre a análise empírica e a literatura especializada no tema, especialmente dos campos da psicologia e da sociologia, utilizando-se de uma escrita direta e objetiva como exige todo assunto urgente.

Interessada em desvendar como se dava a operacionalização das discriminações dentro das empresas, a autora encontrou nas falas de profissionais do setor de recursos humanos o uso recorrente da noção de mérito como justificativa para as desigualdades no corpo de funcionários. O argumento era de que as pessoas brancas mereciam estar nos lugares de comando porque estavam mais bem preparadas; quanto à ausência de diversidade, ela era explicada pelo simples despreparo dos demais.

As evidências de que há uma prática disseminada em processos seletivos que dão preferência (quando não exclusividade) a pessoas brancas para cargos de maior remuneração foram um dos motes para a construção da tese do pacto da branquitude. Trata-se de um “pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios” e que possui um componente “narcísico, de autopreservação como se o ‘diferente’ ameaçasse o ‘normal’” (p. 18). A premissa embutida nesse pacto é a de que o padrão racial universal é o branco, embora o termo raça tenha se distanciado do ser branco. Ou seja, a branquitude não se vê racializada porque considera o branco como o padrão. Portanto, o pacto da branquitude possui um componente narcísico que tem permitido às pessoas brancas manter seus privilégios através do silêncio sobre a racialização de si mesmas.

No processo de colonização das Américas, da África e de parte da Ásia realizado pela Europa, o olhar colonizador transformou os não europeus em um outro ameaçador. Sendo a cor da pele o distintivo para aqueles considerados selvagens, pagãos ou primitivos, a branquitude foi então constituída como a referência universal. No Brasil, as populações indígena e negra foram escravizadas e tratadas com brutalidade, e, no entanto, quando houve reparação, ela se deu em benefício dos escravistas: a Lei de Terras, de 1850, impôs obstáculos para que a população liberta ou pobre pudesse ter a propriedade da terra; a Lei do Ventre Livre, de 1871, garantiu a indenização aos senhores das mães de crianças nascidas a partir de então; o Decreto de Imigração de 1890 estimulou a entrada de europeus, mas proibiu a imigração de africanos e asiáticos, que seriam admitidos somente com autorização e de acordo com condições estipuladas pelo Congresso Nacional. Assim, um sistema meritocrático foi sendo formado, no qual as pessoas brancas foram acumulando mais e melhores recursos políticos, econômicos, sociais e de poder, garantindo aos seus herdeiros posição de privilégio.

As hierarquias de raça e gênero construídas durante a colonização foram mantidas na república e sustentaram a consolidação do capitalismo no Brasil pós-abolição. Contudo, a ausência de um discurso racializado sobre os brancos na história do Brasil e o silêncio em relação à herança positiva da escravidão sobre essa fatia da população conformaram-se em fatores importantes do racismo e do pacto da branquitude. Não por acaso, a reação a esse capitalismo racial se deu pelo movimento negro e sua luta decolonial. Nesse ponto a autora tece uma crítica à “historiografia oficial” (p. 39) por, supostamente, omitir a história da resistência negra.

Não obstante, os estudos sobre a escravidão e o pós-abolição são dos mais profícuos da historiografia brasileira. Há pelo menos quatro décadas os conhecimentos históricos da escravidão começaram a ganhar impulso com o uso de metodologia centrada no sujeito escravizado e nas suas ações de resistência, fossem elas pela via do rompimento sistêmico (fugas, crimes) fossem por meio da negociação. As produções historiográficas sobre diferentes ângulos da escravidão no Brasil, incluindo as ações dos sujeitos escravizados relativas à justiça, ao poder senhorial, à comunidade escrava, continuam revelando as nuanças da resistência escrava e da centralidade da população negra na história brasileira. Esse acúmulo de informações desafia antigas interpretações sobre a passividade negra na história e desconstrói qualquer aproximação com a tese da democracia racial. Ainda que lentamente, esses conhecimentos têm sido agregados à produção de material didático, em especial aqueles para o ensino de história. Há, contudo, muito a ser feito em relação ao alcance desse conhecimento transversalmente às demais disciplinas escolares.

A crítica de Cida Bento não recai apenas sobre o que chama de omissão com relação à memória negra, mas também sobre a falta de estudos a respeito da amnésia branca, ou seja, sobre o esquecimento da condescendência branca com a escravidão e com o sofrimento negro. Se, por um lado, o passado escravista e suas consequências no tempo continuam a ser escrutinados, por outro, há a necessidade premente desse conhecimento transbordar os muros da universidade para alcançar a todos. O parecer da autora é pertinente porque, ainda que os livros escolares sejam reformulados e que a universidade continue com as linhas de pesquisa, grupos de estudo e congressos para debates sobre as pesquisas da escravidão e do pós-abolição, essas medidas ainda são insuficientes para o justo reconhecimento da resistência negra e do seu papel na nossa história.

Como caminho diverso, a autora propõe conectar as lutas dos movimentos sociais contra a colonialidade (mulheres negras, quilombolas, indígenas) com a crítica ao pensamento liberal ou capitalismo racial. Em outras palavras, a aliança entre as elites políticas, culturais e econômicas e o pacto da branquitude dela decorrente precisa ser rompida porque, além de oprimir, provoca a disseminação da mentalidade fascista em cidadãos comuns, a exemplo dos recentes movimentos armamentistas e antidemocráticos nos Estados Unidos e no Brasil.

Além de fazer o diagnóstico de como o racismo está entranhado nas corporações, Cida Bento apresenta breve histórico dos estudos sobre a branquitude nos Estados Unidos a partir do final do século XIX. Dessa primeira onda de trabalhos acadêmicos e engajados, o destaque está no sociólogo estadunidense Du Bois, que percebeu a branquitude no centro do esfacelamento da união da classe trabalhadora e da visão dos trabalhadores brancos. Ao conseguir desviar a identificação de classe destes últimos em direção à elite patronal, a supremacia branca ofereceu os “prazeres da branquitude” (p. 56) como recompensa pela pobreza daqueles trabalhadores não negros.

Sem romper com as propostas de Du Bois, uma segunda onda de estudos foi marcada por trabalhos que explicitaram o funcionamento da branquitude e seus privilégios, com destaque para Franklin Frazier, James Baldwin e Toni Morrison. Por fim, a terceira onda, já na década de 1980, destacou uma narrativa do ressentimento branco diante do aumento de pessoas negras em lugares antes ocupados apenas com brancos. No caso dos Estados Unidos, a vitimização da branquitude e o receio da perda de privilégios foram capitalizados pelo Partido Republicano em suas críticas aos gastos sociais, às políticas de ação afirmativa e no discurso dos valores tradicionais e do nacionalismo.

Nas suas pesquisas sobre desigualdades de gênero e de raça no interior de instituições brasileiras, públicas e privadas, desde os anos 1990, a autora constata o caráter rotineiro e contínuo das discriminações nesses espaços. Partindo dos princípios da psicologia organizacional, a autora entrevistou trabalhadores, trabalhadoras e profissionais dos recursos humanos para elucidar como o racismo funciona nas organizações. Uma das revelações obtidas foi a falácia da neutralidade e objetividade na seleção de pessoas pelo RH. Em sociedades onde preconceito e discriminação são praxe, é mito a ideia de neutralidade dos selecionadores. Essa constatação dá a medida dos desafios para a inserção de pessoas negras no mercado de trabalho e de sua ascensão para cargos de melhor remuneração, uma vez que elas não dependem da sua qualificação, mas de como são vistas por aqueles que as contratam.

A opinião preconcebida de que as pessoas negras não podem pertencer a determinados lugares (como os postos de maior destaque em uma organização), quando associada ao medo provocado pela presença de negros em espaços considerados inquestionavelmente dos brancos, acirra os preconceitos e favorece a discriminação. Contudo, não é apenas através de práticas discriminatórias que o racismo institucional pode ser conferido. As desigualdades presentes em uma empresa estão escancaradas, também, nas suas estatísticas. Basta conferi-las para verificar que, quanto mais monolítico for o perfil das lideranças e parceiros, mais a branquitude se manifestará, ensina Cida Bento.

Um trabalho importante desenvolvido por Bento tem sido à frente do Ceert, cujos estudos são resumidamente descritos no livro. A produção de conhecimento e o desenvolvimento de projetos voltados à promoção da equidade de raça e gênero, especialmente nas relações de trabalho, partem da premissa de que não basta não discriminar, mas de que é preciso agir contra o racismo. Uma política de equidade pressupõe gestão democrática com uso de metodologias e ferramentas modernas para identificação da discriminação - entre elas a realização de diagnósticos de comparação de salários e de trajetórias dentro da instituição - e que promovam ações afirmativas.

A alta resistência às ações afirmativas encontrada no interior das corporações é explicada pelo medo de queda de qualidade dos serviços ou da formação acadêmica (no caso de universidades que implementaram as cotas). Embora sejam argumentos que já foram combatidos com resultados concretos, parte dessa resistência está relacionada à “fragilidade branca” (p. 112). Bento descreve o estresse de pessoas brancas quando diante das seguintes situações: quando têm que questionar a meritocracia; quando se deparam com pessoas negras em posição de liderança; quando ouvem pessoas negras falando abertamente do racismo sofrido e expondo a branquitude; e por fim, quando as pessoas brancas são racializadas, já que elas são vistas e se veem como “universais”.

O pacto da branquitude trata de um problema estrutural, mas ainda muito atual. Ao escolher a branquitude para discutir o racismo, a autora está interessada em demonstrar onde estão fincadas e como são alimentadas, no presente, as estruturas da discriminação racial. A precarização das relações de trabalho através da eliminação de direitos trabalhistas, o esvaziamento de órgãos públicos e os ataques à democracia são alguns exemplos explícitos dos efeitos da branquitude.

Essa exposição escancarada da violência contra pessoas negras tornou insustentável o pacto narcísico da branquitude, decorrendo daí que cada vez mais pessoas brancas questionem o que elas podem fazer para acabar com a perversidade da desigualdade racial. Embora o movimento feminista negro esteja atuante desde os anos 1970 com os trabalhos, entre outras, de Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. e Sueli Carneiro (2023)CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023., a insurgência das mulheres negras ganhou outro patamar com a morte de Marielle Franco, em 2018, porque com esse fato o país conseguiu se ver como violento, conservador e leniente com a brutalidade das elites dirigentes, estas, por definição, compactuadas pela branquitude.

No epílogo, intitulado “Exercitando a mudança - vidas negras importam”, Bento relembra que o pacto da branquitude não pode ser quebrado de forma individualizada, senão através de ações coletivas e estruturais. A autora cobra o posicionamento da branquitude sobre a sua responsabilidade social e sobre a herança recebida da violência e usurpação contra pessoas negras ao longo da história. Estar ciente de que o pacto da branquitude foi mobilizado para silenciar as desigualdades é um primeiro passo para sua suplantação, e desta depende o futuro da democracia.

Essa tarefa o livro cumpre com mérito. O ponto alto da obra está justamente em trazer à luz algo que sempre foi escamoteado ou tido como inexistente. Ao fundamentar a problemática da branquitude e seu papel na preservação da discriminação racial, Cida Bento aponta caminhos possíveis para o combate ao racismo, o que faz dessa uma obra fundamental e de leitura obrigatória para todas as pessoas, em especial para as brancas. O desconforto, por vezes sentido na leitura, pode ser aplacado pela certeza de que a exposição do pacto da branquitude é condição para a superação do racismo e para a justiça social.

Referências

  • BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2002.
  • CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
  • GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2023
  • Aceito
    13 Abr 2023
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