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Zonas de articulação, refazimento e refúgio nas poéticas emancipatórias de Beatriz Nascimento, Rancière, Mondzain e Touam Bona

Zones of articulation, remaking and refuge in the emancipatory poetics of Beatriz Nascimento, Rancière, Mondzain and Touam Bona

RESUMO

O objetivo deste artigo é iniciar a elaboração de uma interseção entre as perspectivas de Beatriz Nascimento (quilombo), Rancière (superfície e borda), Mondzain (zona e radicalidade) e Touam Bona (refúgio, fuga, marronagem) de modo a iluminar a superfície da cena de dissenso como espaço intervalar de criação de poéticas emancipatórias e hospitaleiras. A superfície, a zona e o refúgio nos oferecem elementos importantes para compor um imaginário potente e mostrar como as artes da fuga se articulam à invenção das operações imageantes que produzem dissenso (e descolonização do olhar) reconfigurando a superfície do mundo comum e as retóricas da inospitalidade.

PALAVRAS-CHAVE
Cena; refúgio; bordas emancipatórias.

ABSTRACT

The aim of this article is to start the elaboration of an intersection between the perspectives of Beatriz Nascimento (quilombo), Rancière (surface and edge), Mondzain (zone and radicality) and Touam Bona (refuge, escape, marronage) in order to illuminate the surface of the scene of dissent as an interval space for the creation of emancipatory and hospitable poetics. The surface, the zone and the refuge offer us important elements to compose a powerful imagery to show how the arts of escape are articulated with the invention of imaging operations that produce dissent (and decolonization of the gaze) reconfiguring the surface of the common world and the rhetorics of inhospitality.

KEYWORDS
Scene; refuge; emancipatory edges.

Em agosto de 1976, a pesquisadora Beatriz Nascimento concedeu uma entrevista a Eloí Calage, publicada na revista Manchete, na qual argumentou que a criação dos quilombos não pode ser entendida como uma rebelião espontânea contra o sistema escravocrata. Fruto de um trabalho de organização política e social que exigiu grande articulação dos escravizados para dar início a uma forma de vida insurgente, o quilombo não expressava uma suposta fragilidade que, na incapacidade de lutar contra o opressor, fazia da fuga sinônimo de covardia. Contudo, Nascimento (2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 127) destaca que “o quilombo não foi reduto de negros fugidos: foi a sociedade alternativa que o negro criou”.

O processo de criação dos quilombos envolveu articulações inusitadas, operações de redisposição constante de gestos, corpos, palavras e espaços, que precisaram ser rearranjados em uma composição capaz de permitir a fuga e, junto com ela, a produção de um refúgio. “Estaríamos falando de um outro sistema de construção vindo de um território de origem africana, não mais de um lugar do passado, mas moderno - não mais o escravo, mas o aquilombado, num novo esforço de guerra e estruturação” (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 104). Tal esforço, segundo a pesquisadora, demanda também a possibilidade de habitar uma zona de variação contínua, fora da ordem das determinações.

Ler sobre a “tática quilombola” a partir do olhar de Beatriz Nascimento (2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 152) é descobrir um léxico que dialoga muito com autores que vêm buscando, nas artes do salto, os impulsos otimistas (mas nunca ingênuos) para fazer vazar uma governamentalidade controladora, que deseja dispor cada coisa e cada ser em um lugar determinado, sem deixar brechas, sem permitir excessos. A fuga é esse transbordamento, essa abertura de uma zona de indeterminação, “motivada pela necessidade de resistência e não para a acomodação, para o encontro de uma liberdade romantizada no meio da floresta que lembra a África” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 129). A zona, a superfície, o intervalo, o refúgio e a borda são metáforas espaçotemporais que nos auxiliam a estabelecer interseções entre autores que atualmente recorrem, como afirma Mondzain (2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 13), “à coragem das rupturas constitutivas e à mais criativa imaginação”. Acreditamos ser possível aproximar as propostas de transformação das formas de existência elaboradas por Nascimento, Rancière, Mondzain e Touam Bona, uma vez que que todos reivindicam a potência da indeterminação, da hospitalidades e da poética da política que articula um mundo comum a ser construído coletivamente.

Assim, em uma primeira parte do texto, trazemos as reflexões de Beatriz Nascimento acerca de como a fuga de pessoas negras escravizadas articulou saberes, fazeres, corpos e astúcias para a fundação da sociedade quilombola. Esses agenciamentos insurgentes revelam o quanto a fuga é produtora de um imaginário político emancipatório, que sustenta espaços, tempos e gestos corporificados através de “valores próprios, diferentes dos valores dominantes na sociedade em que os negros foram integrados à força” (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 124). A autoafirmação e a construção da autonomia relacional e política dessa sociedade baseiam-se no entendimento da fuga como arte de criação de um refúgio, que não pode ser confundido com um idílio, mas como processo de articulação entre conflitos e a paz quilombola.

Em um segundo momento, traçamos um diálogo entre Nascimento e Dénètem Touam Bona (2016BONA, Dénètem Touam. Fugitif, où cours-tu?. Paris: PUF, 2016.; 2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.; 2021aBONA, Dénètem Touam. Arte da fuga. Piseagrama, n. 15, 2021a, p. 18-27. Disponível em: https://piseagrama.org/artigos/arte-da-fuga. Acesso em: out. 2023.
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; 2021bBONA, Dénètem Touam. Sagesse des lianes. Paris: Post-éditions, 2021b.) a partir da noção de refúgio e artes da fuga. Para Bona (2021a)BONA, Dénètem Touam. Arte da fuga. Piseagrama, n. 15, 2021a, p. 18-27. Disponível em: https://piseagrama.org/artigos/arte-da-fuga. Acesso em: out. 2023.
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, a fuga é criativa, ela produz vazamentos em circuitos antes muito bem vedados, ela cria um excesso que sabota as hierarquias e orienta os guerreiros marrons na elaboração de uma cosmopoética do espaço, da oralidade e da música, cuja cartografia política imaginária dirigia os passos daquelas e daqueles que recuperavam a liberdade.

Na sequência, buscamos explorar as potencialidades da compreensão da cena de dissenso como superfície capaz de produzir dissensos através de metáforas espaciais como borda, zona e refúgio. Para tanto, exploramos as obras mais recentes de Rancière (2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., 2018aRANCIÈRE, J. O desmedido momento. Serrote, n. 28, 2018a, p. 77-97.; 2018bRANCIÈRE, J. La méthode de la scène. Paris: Éditions Lignes, 2018b.; 2018c; 2019a; 2019b; 2019c; 2020, 2022) de modo a entender como as bordas da ficção fornecem “uma maneira de reenquadrar e de redesenhar continuamente o espaço de vida das pessoas” em um “trabalho de invenção coletiva ligado a uma forma de vida” (RANCIÈRE, 2022RANCIÈRE, J. Pedro Costa: les chambres du cinéaste. Paris, Montreuil: Les éditions de l’œil, 2022., p. 122). Percebemos que há uma forte presença do espaço, dos intervalos, bordas e zonas no trabalho de montagem da cena como elementos centrais de um método que tenta retraçar as rotas e coordenadas que nos permitem produzir sentido acerca de eventos, suas temporalidades, legibilidades e refúgios para a articulação de demandas por justiça (RANCIÈRE, 2009aRANCIÈRE, Jacques. The method of equality: an answer to some questions. In: ROCKHILL, Gabriel; WATTS, Philip (Ed.). Jacques Rancière: history, politics, aesthetics. Durham: Duke University Press, 2009a, p. 273-288.; 2018aRANCIÈRE, J. O desmedido momento. Serrote, n. 28, 2018a, p. 77-97.; 2018bRANCIÈRE, J. La méthode de la scène. Paris: Éditions Lignes, 2018b.; 2020; 2021; 2022).

Em outro momento, aproximamos os pensamentos de Rancière e Marie-José Mondzain (2021; 2022), explorando a superfície da cena como “zona imageante”, ou seja, uma potência de radicalidade para fluxos de transformação, compartilhamento e elaboração do comum. É na “zona de pertencimento de todo vivente a um espaço de liberdade e invenção [...] que se inscrevem nossos gestos inventivos e nossas resistências” (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 144). A zona imageante não se reduz às operações visuais, mas abrange “os gestos notáveis que combatem as ideologias de ódio e racismo, as formas de fazer com que a cultura se reduza a indicadores territoriais e identitários” (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 35).

Por fim, em um último momento, reafirmamos que a interseção entre as perspectivas de Nascimento (quilombo), Rancière (superfície e borda), Mondzain (zona e radicalidade) e Touam Bona (refúgio, fuga, marronagem), que guia a produção deste artigo, traz resultados que apontam para a importância de uma poética da política que considere a emancipação como um processo relacional de afirmação da interdependência em espaços e tempos nos quais o aparecimento e o desaparecimento produzem uma atividade política que investe em uma “comunidade de partilha” (RANCIÈRE, 2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.), de arranjos e alianças (BUTLER, 2022BUTLER, Judith. Que mundo é esse?:uma fenomenologia pandêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.) feitas de linguagens e línguas que se manifestam nos ritmos, paisagens, abrigos (MACÉ, 2019MACÉ, Marielle. Nos cabanes. Paris: Verdier, 2019.), respirações, gestos, posturas que tomam corpo entre o visível e o invisível.

O quilombo como tática, zona e refúgio

Os estudos realizados por Beatriz Nascimento (2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 129) acerca das artes da fuga nos revelam que “longe de ser espontaneísmo ou movida por incapacidade para lutar”, a fuga resulta de um complexo processo de preparo, reunião e combinação de saberes, astúcias e inventividades que tem início ainda nas fazendas, nos espaços de trabalho que reuniam grupos de homens e mulheres escravizados. Em suas limitadas e vigiadas interações, eram tramadas rotas, possibilidades para escapar de um regime a partir de um rompimento que implicava luta, desvio e vários “saltos” em direção a uma outra forma de vida. Essas articulações e alianças se tornam evidentes “com o exemplo de Palmares, onde os homens saem primeiro para organizar a resistência, operando com astúcia as artes da luta” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 131). Havia uma cuidadosa elaboração da fuga e de todas as suas etapas: primeiro, era necessário forjar uma “organização militar para o enfrentamento da ordem oficial e defesa da nova sociedade. Só após os homens se armarem, aglutinando-se em práticas definitivamente sociais, buscam então suas mulheres e filhos” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 132).

Contudo, mesmo antes da evasão das fazendas para a construção coletiva dos quilombos, as táticas de resistência já encontravam lugar nas propriedades rurais e lavouras, pois as danças, cantos, gestos e sonhos posicionavam os negros escravizados em espaços e tempos que não estavam mapeados a priori pelo aparato opressor do homem branco. Assim como Beatriz Nascimento, a pesquisadora Leda Maria Martins (2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 23) fala da potência da música e das coreografias das danças para produzir operações de fuga que se definem por meio da “inscrição corporal como grafias performadas na dinâmica do movimento e na experimentação da temporalidade como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade do passado, presente futuro”. As temporalidades curvas do canto e da dança trazem a ancestralidade para o presente, para o gesto sobrevivente de grafar o saber no corpo, criar repertórios nos quais “dança-se a palavra, canta-se o gesto, em todo movimento ressoa uma coreografia da voz, uma partitura da dicção, uma pigmentação grafitada da pele, uma sonoridade de cores” (MARTINS, 2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 36).

Sem dúvida, o repertório de saberes corporificados produz resistências e sobrevivências que se aproximam de uma definição de fuga que se aproxima daquela existente na música. Nas obras musicais, a fuga é um estilo de composição de origem barroca que opera pelo contraponto, pela polifonia e pela imitação de um tema principal. Tal tema é repetido por outras vozes que entram sucessivamente e continuam de maneira entrelaçada para elaborar uma resposta ao tema. Sob esse aspecto, Beatriz Nascimento menciona que é possível fugir dentro de um mesmo espaço, performando deslocamentos e mudanças de orientação: “A fuga no sentido quase musical da palavra. O momento em que você se sente com total controle, em que não necessariamente você precisa fugir para outro espaço, foge dentro daquele espaço, para entrar talvez, vamos dizer, numa légua adiante ou numa dádiva adiante” (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 157).

A tática quilombola é assim descrita como uma coreografia que marca as possibilidades de posicionamento do corpo, de ginga, de desvio e produção de posicionalidades que combinam avanço, recuo, camuflagem e lateralidade. “Estar ao lado, estar atrás e só estar na frente no momento em que as coisas realmente se tornem difíceis e haja necessidade da nossa presença na frente.” (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 152). Na fuga performada pela música opera uma grafia da vocalidade que cria espaços de “desaparecimento” e desvio. Porém essa criação da fuga não significa falta de atividade política: a fuga produz uma comunidade de afetos que se autodefine em diálogos, arranjos e alianças feitas de linguagens e línguas que se manifestam nos ritmos, paisagens, respirações, gestos, posturas, enfim, em tudo o que vive e abre passagens entre o visível e o invisível.

A grafia da vocalidade salienta também o encontro entre temporalidades distintas, em um movimento espiralar, no qual os eventos não seguem uma linearidade, mas se organizam e se escrevem no gesto, no movimento, na coreografia, nos solfejos da vocalidade. Assim, uma das formas de ativar a memória é produzir com a voz, as linhas, as tintas, as materialidades que trarão a possibilidade de grafar, de inscrever o acontecimento nas hélices de uma fenda temporal aberta pelo relato. (MARTINS, 2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 130).

Toda criação de fuga exige uma arte do salto, uma ruptura das repetições, uma experiência arriscada de indefinição, mas também de definição constante dos laços, das relações que sustem cotidianamente as formas de vida que orientam a dinâmica da fuga. Beatriz Nascimento (2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 158) associa essa dinâmica ao trabalho feminino, ao cuidado que não se confunde com um papel de gênero, mas que traça uma cartografia dos deslocamentos na tática da resistência: “ficar na frente e dizer que tem milhões e só ter cinco. Ficar atrás e dizer que só tem cinco, e ter milhões. Sempre essa dinâmica da fuga, que é muito da concepção da mulher”, da tática das mulheres guerreiras e seu “devir quilomba”2 2 Mariléa de Almeida (2022, p. 30) explica essa expressão da seguinte maneira: “Devir, conceito que pressupõe mudança, acrescido da palavra ‘quilomba’, evoca as condições históricas que produziram a feminização da ideia de quilombo, possibilitando a visibilidade contemporânea das mulheres quilombolas na luta pela terra. [...] Devir quilomba diz respeito à necessidade de construirmos um vir a ser que se opõe à naturalização do modelo masculinista de fazer política e de viver orientado por violência, individualismo e competição”. (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Mariléa. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante, 2022., p. 30). Assim, uma das primeiras interseções entre a fuga como agência transformadora e a elaboração coletiva de um novo espaço social é o entendimento do quilombo enquanto território de afeto

[...] o que denomino de território de afeto, entendido como um campo de ação política que se exprime pela manutenção, criação ou redefinição de espaços potencializados para aqueles que vivem nos territórios quilombolas. Territórios de afetos não são definidos pela identidade jurídica quilombola, mas pela relação que se estabelece com o lugar e com aqueles que nele vivem. Trata-se de uma atitude política, que privilegia o uso de saberes como forma de ampliar espaços de subjetivação, constituídos por meio dos deslocamentos de sentidos que essas mulheres realizam em relação aos efeitos das exclusões de raça, de classe ou de gênero que afetam seus corpos e os territórios de suas comunidades. (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Mariléa. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante, 2022., p. 39).

A construção coletiva de territórios de afeto marron mobiliza um grande empenho para o fortalecimento das fronteiras do quilombo, que só podem ser mantidas no apagamento por meio do permanente embaralhamento dos aparelhos de captura. Forma coletiva da fuga, a secessão marron constitui um processo metamórfico: a dobra florestal que a inaugura é desdobrada por uma variação contínua aplicada tanto ao local de vida quanto ao modo como os fugitivos aparecem (BONA, 2016BONA, Dénètem Touam. Fugitif, où cours-tu?. Paris: PUF, 2016.). O complexo processo de elaboração do quilombo nos convida também a olhar para a complexidade das instituições que o formam e para a evolução dessas sociedades a partir de processos interacionais que configuram sistemas sociais autônomos em relação à sociedade global (oficial). “O quilombo ou seus correlatos são tentativas vitoriosas de reação ideológica, social, político-militar sem nenhum romantismo irresponsável” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 130).

O quilombo está longe de ser o lugar de felicidade, a sociedade ideal, a utopia descrita por parte da intelectualidade branca em espetáculos do tipo Arena conta Zumbi [1975]. Considero mesmo reacionária essa concepção, pois mostra apenas um aspecto: o negro frágil, perseguido, sofredor, bonzinho. O quilombo, como qualquer sociedade humana, tinha suas próprias contradições, a escravidão entre elas, embora essa escravidão não fosse idêntica à escravidão colonial, não chegasse aos limites de crueldade verificados na sociedade branca. (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 125).

“Sistema social alternativo, baseado na autodefesa e na resistência como forma política” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 116), o quilombo pode ser entendido como uma ação coletiva de sobrevivência coletiva, possibilitando um tipo de “assentamento social e organização que criam uma nova ordem interna e estrutural” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 124). Não pode ser reduzido a uma simples recusa à violência ou a um projeto insurgente voltado para alcançar “uma vida ociosa em contato com a natureza, com base numa liberdade idealizada e na saudade da pátria antiga” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 130). Existem vários relatos que revelam como a sociedade quilombola se articulava nos cruzamentos de temporalidades de guerra e de paz.

Quando descreve a “paz quilombola”, Beatriz Nascimento enfatiza a maneira como o quilombo mantinha uma estrutura social interna autônoma, incentivando sempre uma autonomia relacional através de alianças econômicas e sociais com regiões vizinhas. O quilombo trocava produtos de suas roças com fazendas e moradores vizinhos, criava animais, fabricava ferramentas e utensílios que também municiavam os arredores. Assim, “entre um ataque e outro de repressão oficial, o quilombo se mantém ora retroagindo, ora se reproduzindo” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 132). A paz quilombola traduz o caráter produtivo do quilombo, os laços de solidariedade e as relações com brancos, indígenas e diferentes grupos.

O quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro. E também é o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias da destruição. (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 130).

É importante destacar como o quilombo é erguido como potência no processo de escrita de Beatriz Nascimento. É na experimentação com a linguagem que ela cria um limiar para o exercício do poder emancipatório de transformação do campo da experiência: é como se seus textos (poemas, filmes, ensaios acadêmicos, entrevistas) abrissem espaços de jogo, onde ela se posiciona em uma temporalidade espiralada e aproveita a abertura de pequenas brechas temporais e espaciais para traçar novas rotas e movimentos marcados pelo desvio e pela reflexividade.

A escritura de Beatriz Nascimento, marcada pelo interesse no cinema, na poesia, nas artes e na dança, teve que criar uma superfície porosa e intersticial que pudesse acolher suas inquietações acerca dos quilombos e de sua importância política para a sociedade brasileira. No início dos anos 1990, ela faz uma disciplina na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministrada pela antropóloga Janice Caiafa. Um dos trabalhos produzidos para esse curso, intitulado “Por um território (novo) existencial e físico”, integra a coletânea publicada pela editora Ubu em 2022. Nesse texto, é possível perceber como o contato com obras de Deleuze e Guattari (sobretudo Kafka: por uma literatura menor), Walter Benjamin e Foucault foi importante para que ela elaborasse uma reflexão acerca da própria escritura. A busca pela melhor maneira de acolher uma polifonia de vozes e elementos, preservando suas singularidades e intervalos, nos leva a pensar em interseções possíveis com as escrituras de Rancière, Mondzain e Touam Bona, pois todos se inclinam a buscar na escrita topografias capazes de alterar as coordenadas da experiência, da legibilidade e inteligibilidade do mundo.

Como veremos nas seções seguintes, eles não partem de um método pronto, mas elaboram sua metodologia a partir do encontro com o cinema, a literatura, a dança, a poesia e o ensaio. No caso de Beatriz Nascimento e de Dénètem Touam Bona, a escritura é indissociável de um movimento político de afirmação da negritude. A forma do ensaio se tornou refúgio para a expressão dos quatro autores aqui discutidos, fonte de invenção de uma “língua menor”, uma língua que opera dentro da língua oficialmente tida como “dominante” (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022.).

A aproximação dos quatro autores de uma escritura que opera por montagens (conduzidas pelo fio da ficção) nos indica possibilidades de entender o valor que conferem às espacialidades e temporalidades da produção de um saber insurgente, preocupado em produzir transformações estéticas e políticas radicais.

Potências fabuladoras da noite: a fuga e a operação de criação de refúgio

Dénètem Touam Bona (2020)BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020. dialoga com Beatriz Nascimento ao escrever sobre as formas de dissidência que desafiam as narrativas dos vencedores e se erguem na noite para produzirem linhas de fuga capazes de alterar as superfícies da exploração capitalista em superfícies heterotópicas que acolhem e alimentam a marronagem3 3 Bona (2020, p. 16) explica que trabalha mais detidamente a “secessão marron” que ocorre com a formação de comunidades-refúgio em florestas densas e impenetráveis, superfícies labirínticas que auxiliavam a camuflagem e o desaparecimento. Nas colônias espanholas “voltadas à produção de açúcar, cimarron designa o animal domesticado que fugiu para retornar à vida selvagem. Assim os espanhóis qualificavam os escravos fugitivos de negros cimarrones. É preciso então ver na marronagem um processo de desdomesticação: um devir selvagem libertador. Ser marron é abraçar o movimento de um cipó: deixar-se atravessar pela selva, enquanto se a atravessa” (BONA, 2020, p. 81). . A noite que acolhe o ritmo dos tambores permite comunicar e criar pelo gesto, pela dança, pelas oralituras (MARTINS, 2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 41) que sussurravam liberdades e mapeavam rotas de fuga. As coreografias insurgentes performam a “grafia dos saberes de várias ordens e de naturezas as mais variadas, incluindo-se aí um saber filosófico, em particular uma concepção alternativa do tempo, de suas reverberações e de suas impressões em nosso modo de ser, de proceder, de atuar, de fabular, de pensar e de desejar” (MARTINS, 2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 41). A fuga é povoada e desenhada pelas “sonoridades, vocalidades, gestos, coreografias, adereços, desenhos e grafites, traços e cores, saberes e sabores, valores, racionalidades afroinspiradas” - todas elas capazes de performar “possibilidades de rasura dos protocolos e sistemas de fixação excludentes e discricionários” (MARTINS, 2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 42).

Ao fugirem das plantations em grupos, os negros marrons realizam “um salto fora do espaço da plantation que abre a possibilidade não apenas de uma vida desdomesticada, mas também da abertura de uma zona ofensiva posterior” (BONA, 2016BONA, Dénètem Touam. Fugitif, où cours-tu?. Paris: PUF, 2016., p. 41)4 4 A tradução de todos os trechos citados neste texto é de minha responsabilidade. . Ao darem esse salto, alteram a paisagem-rosto que tensiona o espaço entre as grandes lavouras e as florestas, desdobrando espaços naturais labirínticos em zonas de indeterminação e refúgio. A marronagem existe para além do contexto escravagista e se apresenta como processo contínuo de emancipação, de elaboração e de performance das artes de si, das táticas de criação e transformação dos sujeitos e, com eles, de comunidades inteiras. “Performar, nesse sentido, significa inscrever, repetir transcriando, revisando, e representa uma forma de conhecimento alternativa e contestatória” (MARTINS, 2021MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., p. 130).

A fuga é uma arte que altera as coordenadas das superfícies do território e da experiência, porque aproveita os meandros, acidentes, desvios para criar veredas protegidas nas quais criam um “fora” e se metamorfoseiam. Não se trata de covardia ou passividade: a fuga é uma elaboração, uma experimentação na qual se entrelaçam uma recusa e uma afirmação.

O refúgio não preexiste à fuga; é ela que o produz, o secreta e o codifica. A arte da fuga, de que a experiência histórica da marronagem representa apenas uma das modalidades, é subversão a partir de dentro, seja esse dentro a colônia ou nossa sociedade de controle - e por mais que ele nos pareça completamente fechado e sem saída. A fuga não é transgressão ilusória em direção a um fora transcendente, mas vazamento da realidade. (BONA, 2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 47)

Não se trata, assim, de covardia, de recusa à ação ou de retorno a um estado selvagem. A fuga exige uma grande energia dos corpos, que se orientam na noite pelo mapa das estrelas, pelo som dos insetos, pelo serpentear das águas de um rio, pelos gestos e passos dos companheiros. Para Touam Bona (2021aBONA, Dénètem Touam. Arte da fuga. Piseagrama, n. 15, 2021a, p. 18-27. Disponível em: https://piseagrama.org/artigos/arte-da-fuga. Acesso em: out. 2023.
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, p. 20), “a noção de ‘fuga’ dá mais conta da dimensão criadora das ‘linhas de fuga’ [...]. Fugir [...] não é ser posto para correr, mas, ao contrário, é fazer vazar o real e operar as variações sem fim para frear e contornar qualquer tentativa de captura”. Em diálogo com Deleuze, Foucault e Édouard Glissant, o autor entende o refúgio nas matas como a produção de uma zona de incerteza, o fora, um espaço de jogo5 5 “A condição do escravo apresenta sempre um espaço de jogo, por mais ínfimo que seja. Se não, como explicar a explosão de resistências? Reduzir o escravo (o colonizado) em um estatuto de vítima é negar a ele qualquer capacidade de ação e perpetuar sua desumanização. Para Foucault, a escravidão é uma relação de poder quando o escravizado pode se deslocar e fugir, quando ele tem uma pequena margem de movimento” (BONA, 2016, p. 31). , um espaço outro (heterotopia) que subverte a zona escravista. “Por instaurar e delimitar uma heterotopia que curto-circuita a ordem escravagista” (BONA, 2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 42), marca, codifica e camufla a superfície do território da comunidade. A fuga é uma operação, um trabalho ativo de criação de uma zona lacunar, uma borda na qual se forjam alianças polifônicas, subversivas e coreográficas (esquivar-se, esconder-se, camuflar-se, dobrar-se e desdobrar-se em agências que definem a corporeidade6 6 “A marronagem é antes de tudo uma resposta inventiva que envolve posturas, técnicas corporais, todo um saber incorporado. O corpo é o primeiro teatro de operações, a primeira posição a ser liberada e frequentemente permanece imperceptível, desenvolvendo táticas, truques, estratagemas que compõem uma arte da esquiva e da camuflagem” (BONA, 2016, p. 32). do guerreiro marron).

Desde a noite dos tempos, as comunidades furtivas aprenderam a aliar-se aos poderes vegetais que, desordenando a “superfície” - deslocando a visão massiva dos dominantes - em fios inextricáveis, desdobram um labirinto protetor: uma zona de incerteza ofensiva. (BONA, 2021, p. 52).

A construção do refúgio instaura também uma zona de contato “que só distingue para conectar” (BONA, 2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 70), uma borda que desdobra espaços-tempos inéditos e que demanda ao guerreiro marron que ele invente uma maneira de torná-la habitável, de torná-la o espaço do salto no espaço não detectável. “O refúgio não está nem fora nem dentro de nós, está na dobradura do mundo e de si, de si e do outro, numa relação suspensa que só se atualiza no próprio movimento de fuga - essa força de fugir que faz de nossos corpos ondas gráficas e utópicas” (BONA, 2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 69). Importante ressaltar que a construção do refúgio recria e mantém memórias e tradições a partir de seus traços e vestígios, nas danças, músicas, ritmos, rituais, sussurros, lutas encenadas e reencenadas na produção de heterotopias marrons: superfícies florestais zebradas e cenas privilegiadas de desaparição.

Do sussurro pode nascer um mundo, um refúgio, uma utopia. É sempre sussurrando que fomentamos nossos projetos de evasão. Sussurrar é endereçar uma palavra a um companheiro de tal forma que ela não possa ser interceptada: uma palavra furtiva que sela o segredo de uma comunidade por vir. Palavras furtivas, imprevistas, que habitam florestas, que criptografam, disfarçam e rasuram a língua. (BONA, 2016BONA, Dénètem Touam. Fugitif, où cours-tu?. Paris: PUF, 2016., p. 126).

Certamente as reflexões de Touam Bona acerca da criação de heterotopias e zonas furtivas também se entrelaçam com aquelas de Beatriz Nascimento (2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021., p. 129), quando ela argumenta que a fuga, longe de ser movida por uma suposta incapacidade para lutar, “é, antes de mais nada, a decorrência de todo um processo de reorganização e contestação da ordem estabelecida. É o coroamento de uma série de situações e etapas nas quais estão em jogo diversos fatores: físicos, materiais, psicossociais, ideológicos e históricos”. A fuga cria refúgios nos quais a prática da liberdade afirma o cuidado de si e dos outros na tessitura da “paz quilombola” (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.) e do caráter produtivo do quilombo, com seus laços de solidariedade e suas relações de afeto e autodefinição (ALMEIDA, 2021ALMEIDA, Mariléa. Território de afetos: práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro. História Oral, v. 24, n. 2, 2021, p. 293-309. https://doi.org/10.51880/ho.v24i2.1209.
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). A fuga também alterna o modo de percepção dos corpos, que oscilam entre a camuflagem e o aparecimento: o trânsito entre essas posições redefine o visível e o pensável, deslocando os corpos dos lugares (concretos e simbólicos) que lhes foram destinados. Esse movimento pode transformar as redes materiais, discursivas e intersubjetivas que os sustentam e amparam, modificando suas condições de vulnerabilidade e também a maneira como definem suas necessidades.

Quando Bona enfatiza que fugir não é ser posto para correr, mas fazer vazar o real, ele também dialoga com Rancière (2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.; 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016.) a partir da partilha política do sensível, que prevê um excesso impossível de ser contido e ordenado pela ordem policial. A fuga é um suplemento, uma partilha excessiva que transforma a superfície do território, da legibilidade e da inteligibilidade da forma de vida que os guerreiros marrons desejam criar para si mesmos e seus pares. O excesso promove dissensos a partir do que extrapola os limites impostos pela ordem consensual, que regula e quer conter tudo o que ultrapassa uma função ou designação rígida preestabelecida (RANCIÈRE, 2009aRANCIÈRE, Jacques. The method of equality: an answer to some questions. In: ROCKHILL, Gabriel; WATTS, Philip (Ed.). Jacques Rancière: history, politics, aesthetics. Durham: Duke University Press, 2009a, p. 273-288.). O excesso e suas formas de extravazamento têm o poder de alterar a distribuição de palavras, tempos, espaços, corpos e códigos, podendo combater lógicas consensuais de imposição de existências e modos de ser e aparecer em público. Um excesso, nesse sentido, redefine os termos e as condições de uma ruptura com uma ordem policial para colocar em jogo novas alianças e as tensões entre os diferentes tipos de subjetivação, as diferentes forças minoritárias que impulsionam as formas de devir.

A cena como borda e a redisposição do “fazer experiência” na superfície

O método da igualdade utilizado por Jacques Rancière (2016)RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016. trabalha uma forma de apresentação por meio da qual várias coisas, situações, discursos, corpos e acontecimentos se fazem perceptíveis e inteligíveis em superfícies que são constantemente redefinidas e reorganizadas. Para compor a obra A noite dos proletários, Rancière comenta que os textos dos operários foram articulados com textos literários, poemas, fragmentos de jornais, documentos institucionais etc. “Assim, tive que colocar as palavras em relação a cenários e performances textuais que pertencem normalmente a outros registros, a mundos que supostamente não carregam nenhuma relação com a cultura da classe trabalhadora” (RANCIÈRE, 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 74). Tal bricolagem de textos e registros não produz uma simples ilustração ou exemplo, mas uma relação dissensual que articula uma superfície na qual se desenvolve o trabalho de invenção das operações que produzem uma reconfiguração do mundo comum da experiência.

Os arquivos do sonho proletário são aproximados e articulados em uma superfície, em um mapa que poderia oferecer outras possibilidades de composição e legibilidade (RANCIÈRE, 2019cRANCIÈRE, Jacques. El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Madrid: Ned Ediciones, 2019c.). Assim, o dissenso não é a revelação de algo que está embaixo de uma superfície, mas a própria redefinição da superfície e do olhar que a percorre compondo uma paisagem inteligível. O método da igualdade permite a elaboração de cenas onde “não há realidade escondida sob as aparências, nem sistema único de apresentação e interpretação do dado impondo a todos a sua evidência” (RANCIÈRE, 2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p. 48).

É na borda que ocorre um trabalho de produção de veredas, descontinuidades, devaneios e desvios que impossibilitam uma roteirização da experiência dos sujeitos, funcionando a partir da diferença, para criar e abrir brechas ao aparecimento do que nunca foi visto (RANCIÈRE, 2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.; 2019aRANCIÈRE, J. Le travail des images: conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a.). A ficção entrelaça um conjunto de fios, de elementos, de fluxos, de corpos e objetos heterogêneos: ela os aproxima, os tensiona, altera seu posicionamento no tempo, no espaço, nos processos de aparição. Ela é, sobretudo, uma ruptura com a previsibilidade e a criação de fabulações experimentais e dissidentes. “A cena é uma borda” (RANCIÈRE, 2020RANCIÈRE, Jacques. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, 2020, p. 828-840. https://doi.org/10.3917/criti.881.0828.
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, p. 838) que se localiza sobre a linha de partilha entre o que é dado a ver e pensar, e o que poderia ser visto e pensado. Seu papel é subverter essa partilha e constituir, “com as coisas que aparentemente pertencem a registros diferentes, os vínculos de um mundo comum que está sempre a ponto de desaparecer” (RANCIÈRE, 2020RANCIÈRE, Jacques. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, 2020, p. 828-840. https://doi.org/10.3917/criti.881.0828.
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, p. 831).

Os relatos do marceneiro Gauny, por exemplo, retrabalhados por Rancière a partir dos arquivos da Biblioteca Nacional de Paris, configuram uma borda quando mostram como os proletários do século XIX não aceitavam calmamente as identidades sociais que lhes eram impostas e buscavam viver de outro modo, “reinventar aqui e agora as condições existenciais, pensamentos, escrituras e comunidades: criar intervalos e excessos no centro das engrenagens da dominação capitalista e das racionalidades burguesas” (FJELD, 2017FJELD, Anders. Después de la última promesa. Entre el cine de Béla Tarr y la filosofía de Jacques Rancière. In: FJELD, A.; TASSIN, E. (Ed.). Jacques Rancière. Madrid: Katz, 2017, p. 33-56., p. 36). A borda criada pelos operários é recriada pela poética da escritura de Rancière, que trabalha minuciosamente para redispor os elementos encontrados no arquivo fora da linearidade causal da narrativa sociológica. Explorar e redispor as coisas em uma superfície significa conferir importância aos fragmentos, mas também retraçar as rotas que nos permitem produzir sentido acerca de eventos e de sua legibilidade por meio de narrativas.

A superfície sobre a qual Rancière configura uma “topografia intervalar” não se contrapõe a uma profundidade escondida ou a um véu que precisa ser erguido para vermos uma suposta verdade escondida. Para Andrea Calderón (2020CALDERÓN, Andrea Soto. La performatividad de las imágenes. Santiago de Chile: Ediciones Metales Pesados, 2020., p. 33), a superfície configura um “lugar polêmico que acolhe uma singularidade permitindo que ela comunique assimetrias sem relação prévia”. A topografia intervalar confere à cena uma capacidade de misturar e “articular diferentes níveis de sentido, criando uma linha transversal” (RANCIÈRE, 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 69) em que deslocamentos modificam o mapa do que é pensável, do que é nomeável e perceptível, e, portanto, do que é possível” (RANCIÈRE, 2009bRANCIERE, Jacques. Et tant pis pour les gens fatiguées. Paris: Éditions Amsterdam, 2009b., p. 577). A superfície abre um intervalo para a construção da cena, o espaço no qual e sobre o qual serão realizadas operações de condensação, comparação e deslocamentos que definem as articulações do seu pensamento com as articulações feitas por outros interlocutores que o auxiliam na construção de um objeto de reflexão, de pesquisa.

Dito de outro modo, a topografia intervalar confere à cena uma capacidade de misturar e “articular diferentes níveis de sentido, criando uma linha transversal que corre entre diferentes níveis de discurso” (RANCIÈRE, 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 69). Sob esse aspecto, há uma forte presença do espaço, dos intervalos e da montagem como elementos centrais de um método igualitário, topológico, cujo objetivo é criar “operações de reformulação, de reordenação de frases, de condensação, comparação, deslocamentos que entrelacem as articulações de meu discurso com as articulações dos textos operários na constituição de um objeto” (RANCIÈRE, 2019cRANCIÈRE, Jacques. El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Madrid: Ned Ediciones, 2019c., p. 31).

Há deslocamentos que modificam o mapa do que é pensável, do que é nomeável e perceptível, e, portanto, do que é possível. Se avanços são alcançados, eles devem ser pensados em termos de cobertura de topografias e não em termos de aplicação de um saber. A política se define como certo mapa do que é dado à inteligência de todos, dos problemas comuns; certo mapa da distribuição de competências e das incompetências com relação a esses problemas. O que tento fazer no domínio do pensamento é contribuir para a possibilidade de outros mapas do que é pensável, perceptível e, em consequência, passível de ser feito7 7 O próprio gesto filosófico de seu método de trabalho é muitas vezes definido por Rancière (2009b, p. 604) em termos espaciais: “tento redesenhar o mapa do pensável a fim de retirar as impossibilidades e as proibições que se abrigam frequentemente no coração dos pensamentos que almejam ser subversivos”. . (RANCIÈRE, 2009bRANCIERE, Jacques. Et tant pis pour les gens fatiguées. Paris: Éditions Amsterdam, 2009b., p. 577).

A cena é a borda entre um nada e alguma coisa que vale como se fosse tudo (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017.; 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021.). A noite dos proletários foi feita de cenas que trazem evidências, ao mesmo tempo, de uma realidade material que gera uma experiência condicionante e do “esforço para transgredi-la, para entrar em outro mundo, reconfigurando um universo sensível” (RANCIÈRE, 2020RANCIÈRE, Jacques. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, 2020, p. 828-840. https://doi.org/10.3917/criti.881.0828.
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, p. 839). Sentimos a tensão produzida nessa borda a partir do modo como a poética da escrita nos convoca a percorrê-la. O método da igualdade elaborado por Rancière (2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 81) permite construir um “espaço de jogo nivelado” (“level playing field”), no qual ele mesmo e seus leitores podem “deslizar” entre diferentes palavras, textos, descrições e comentários de modo a construir um “operador de deslocamento” capaz de abrir um campo de pensamento (RANCIÈRE, 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 84). O autor afirma se dedicar à construção de uma “paisagem conceitual” na qual conceitos são “marcadores de linhas que articulam pontos separados”, permitindo a presença de bordas nas quais se formam territórios responsáveis por tornar “uma experiência inteligível a partir de uma ruptura” (RANCIÈRE, 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 111).

A cena abre, na escritura, o espaço liminar no qual o autor (pesquisador, filósofo, artista) deve tomar uma posição. Ao decidir saltar no espaço desviante de recomposição da topografia das experiências, o autor transpõe a borda aberta pelo momento qualquer e se vê convocado a elaborar fabulações experimentais movidas por uma desorganização e reorganização constantes entre vários elementos. O desmedido momento é o tempo de criação daquilo que se passa no intervalo que se abre pela instauração da cena. Para Rancière, articular as cartas de Gauny a outros documentos deu origem a uma montagem na qual bailam várias vozes:

Isso produziu um tipo de relato e de escritura: em vez de enraizar as palavras dos operários em uma experiência coletiva ou de traduzi-las em um sentido que lhes seria próprio, enfatizei as circunstâncias mesmas de sua enunciação, na maneira como se apropriavam das palavras que não haviam sido feitas para eles, no estilo e na tonalidade de seus discursos. Tentei criar ressonâncias com palavras que vinham de outros lugares - da religião, da poesia, da retórica -, com palavras mais antigas ou mais modernas. Tentei de algum modo registrar, do meu jeito, o tipo de mundo comum que construíam. (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 101-102).

Rancière (2020)RANCIÈRE, Jacques. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, 2020, p. 828-840. https://doi.org/10.3917/criti.881.0828.
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define a cena como a operação que permite compreender o conflito que existe sobre essa borda que separa o que “existe” do que “não existe”, sobretudo quando esse conflito nos é apresentado através da ficção. A ficção, segundo ele, atua como uma das formas da partilha do sensível, ou seja, de uma estruturação do mundo comum “que liga as formas de construção do sentido à maneira pela qual os corpos se encontram articulados a tempos e espaços específicos”, distribuídos em função de suas “capacidades ou incapacidades de perceber, compreender e agir” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021., p. 13). A abordagem que o filósofo francês confere à ficção questiona a maneira de organização das histórias a partir de um encadeamento que dispõe os fatos em uma causalidade que vai do problema à solução, da infelicidade à felicidade, naturalizando o entendimento de que tempos, espaços e experiências devem rumar sempre a um futuro promissor.

Para mim a questão da causalidade é uma questão de hierarquia: na lógica causal dominante há uma ordem subterrânea que determina o que será possível perceber ou pensar. Com a forma estética e narrativa da intriga, a questão do que pode ser perceptível e pensável é sempre uma questão de suerfície, uma maneira de recortar essa superfície. (RANCIÈRE, 2016RANCIÈRE, Jacques. The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 30).

A superfície surge no trabalho de Rancière quando desdobrada em seu processo de criação da cena, pois a cena faz convergir para seu espaço de jogo elementos heterogêneos e uma polifonia de vozes que são articuladas sem perderem sua especificidade. A superfície preserva todos os intervalos entre essas vozes e elementos, conferindo a eles uma legibilidade inaudita. A cena é o trabalho paciente de construção de uma topografia que altera as coordenadas da experiência daquela ou daquele que se aventura a demorar-se nas bordas das ficções que não desejam organizar a vida como “o trajeto necessário ou verossímil entre um começo e um fim” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021., p. 13).

As bordas da ficção não são os territórios que a limitariam do exterior. São os lugares, as formas, as palavras e a organização das palavras que ela inventa para tornar visível a linha, ao mesmo tempo radical e quase imperceptível que reúne e separa simultaneamente duas formas de experiência: a experiência do tempo que passa e a experiência do tempo em que acontece alguma coisa. (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021., p. 21).

O interesse em encontrar uma outra forma ficcional para realizar a partilha do sensível, evidencia como Rancière e Caicedo (2019b)RANCIÈRE, Jacques; CAICEDO, Andrés. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, 2019b, p. 79-86. https://doi.org/10.7440/res70.2019.07.
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valorizam a abordagem que Walter Benjamin realiza do processo de interrupção do tempo dos vencedores para valorizar os desvios, explosões e limiares capazes de rasurar o mapa das experiências controladas pela ordem dominante (essa aproximação com Benjamin também se verifica em Touam Bona e Mondzain). A abertura de temporalidades liminares traz de volta a possibilidade de as vidas vulneráveis elaborarem um salto que as conduz das bordas do “quase nada” ao momento em que uma cena de dissenso se abre para transformar a distribuição assimétrica de lugares e funções sociais. De maneira ainda inicial, é possível definir o momento qualquer como a abertura de uma borda, de um limiar que torna possível estabelecer uma relação entre lugares e temporalidades, em que cada lugar e cada tempo podem ser várias coisas de maneira simultânea. Uma coexistência não hierárquica tecida como borda, originada por uma fabulação que é um contratrabalho de ficção: a invenção de uma outra forma de tratar o tempo, revelando a entre-expressividade dos momentos e recusando “o tempo da sucessão e da destruição” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 136). Afinal, o trabalho da cena é conjugar o momento qualquer e o desmedido momento para “criar uma lacuna, uma vereda no presente, para intensificar a experiência de outro modo de ser” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 32).

A relação que podemos estabelecer entre o momento qualquer que articula cenas de dissenso e a reflexão de Walter Benjamin acerca do conceito de história (e de sua organização temporal pela narrativa dos vencedores) aparece delineada por Rancière (2017)RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017. e por Rancière e Caicedo (2019b)RANCIÈRE, Jacques; CAICEDO, Andrés. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, 2019b, p. 79-86. https://doi.org/10.7440/res70.2019.07.
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quando comenta que o momento qualquer é o tempo partilhado dos não vencidos. O momento qualquer resulta da quebra e da fratura do tempo dos vencedores, que passa a ser mesclado com outras temporalidades, perdendo seu poder organizador de controle. A forma de identificar, articular e montar os acontecimentos e as temporalidades permite a abertura de um intervalo (écart), uma borda sobre a qual os sujeitos oscilam entre o nada e o tudo. Essa borda é onde Rancière encontra Benjamin: ambos buscando não os avanços do tempo, mas suas paradas, suas suspensões e desvios. Ambos valorizando o momento decisivo que antecede o salto para a “criação do espaço desfamiliarizado, desdomesticado” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 182).

É nessa concepção de temporalidades coexistentes que reorganizam a experiência pelo salto que abre um momento desmedido que o pensamento de Rancière de aproxima da reflexão de Beatriz Nascimento. Ao conferir destaque ao tempo da paz quilombola, Nascimento (2021)NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. desfaz o dilema de termos que optar pelo “tempo dos vencedores” ou pelo “tempo dos oprimidos”. Ela mostra, assim como Rancière, que o tempo dos “não vencidos” revela a capacidade de agência e a dignidade dos oprimidos, uma vez que se trata de um tempo da coexistência precária de temporalidades, da articulação de um comum que apresenta e aproxima fatos, coisas, sujeitos, palavras, situações e acontecimentos de modo a alterar a percepção e a inteligibilidade do mundo, considerando o tempo em “suas paradas, superposições, voltas, rodeios e explosões” (RANCIÈRE; CAICEDO, 2019bRANCIÈRE, Jacques; CAICEDO, Andrés. El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, n. 70, 2019b, p. 79-86. https://doi.org/10.7440/res70.2019.07.
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, p. 85). Assim, podemos também lembrar que a fuga dos escravizados não é associada à incapacidade de lutar, mas aos conhecimentos e táticas colocados em movimento para produzir um salto, para reunir os saberes e arranjos necessários para alterar a superfície da floresta e nela abrir um refúgio de organização complexa:

[...] negro não é sinônimo de vencido. Saber, por exemplo, que houve toda uma preparação militar e ideológica anterior à constituição do quilombo. Que, embora o escravizado também praticasse a fuga pura e simples, houve também a fuga preparada, discutida ainda na senzala; prova disso é o fato de que primeiro fugiam os homens. As mulheres e crianças só eram levadas quando o quilombo atingia um estágio de organização que possibilitasse sua própria defesa. (NASCIMENTO, 2022NASCIMENTO, Beatriz. O negro visto por ele mesmo. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 126).

Sob esse aspecto, o momento qualquer não é apenas o momento de espiar por “uma janela entreaberta para um mundo de vidas e de emoções ignoradas”, mas ele carrega “a potência de estilhaçamento, de multiplicação que explode o tempo dominante - o tempo dos vencedores - no ponto de sua suposta vitória: na beira do nada a que ele relega os que estão fora da palavra e fora do tempo” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 172). Uma vez explodido esse tempo, deve-se abrir espaço para o que é importante na renovação das formas de vida. A borda aberta pelo momento qualquer chama pelo trabalho do desmedido momento, pelos fluxos, trocas, circulações e solidariedades que alimentam “uma forma de vida comum, livre da hierarquia dos tempos e capacidades” (RANCIÈRE, 2018cRANCIÈRE, J. Les temps modernes: art, temps, politique. Paris: La Fabrique, 2018c., p. 46).

O trabalho nas bordas, assim como fazem escritores (Virgínia Wolf, Proust, Guimarães Rosa etc.) e cineastas (Pedro Costa, Bela Tarr etc.) que Rancière admira, é o modo de “ligar seu trabalho próprio com o trabalho que toda a vida é capaz de exercer para se afastar de seu curso normal” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021., p. 49). No espaço de jogo aberto nas bordas da ficção, uma nova topografia do possível emerge dos intervalos e limiares nos quais opera a força coletiva da emancipação política: o investimento feito pelos sujeitos ao retrabalharem os modos de partilha do sensível que definem suas formas de vida gera saberes, conhecimentos e poéticas que precisam ser socializados. É no desmedido momento que se coletivizam as capacidades investidas nessas cenas de dissenso, pois, para Rancière, a emancipação é uma experiência comunicável, ela é real porque pode ser escrita, tornando-se legível, verificável, deslocando o mapa que reparte o sensível. A emancipação é praticada no processo de sua comunicação, circulação e apropriação coletiva. Ela requer o “salto no espaço do meio” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017., p. 161) que instaura a possibilidade de criação de um espaço “infamiliar”, que faz a vida ir além de si mesma, instaurando-se em espaços e tempos ainda não registrados pela ordem controladora.

A arte radical das zonas de hospitalidade

Marie-José Mondzain (2022a)MONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., ao comentar o trabalho de Touam Bona, afirma que sua reflexão nos mostra como o salto promovido pela fuga seguia uma cartografia imaginária que dirigia os passos dos guerreiros marrons sobre paisagens que conheciam apenas pelas canções e versos que compartilhavam as rotas da liberdade. Para a filósofa argelina, o salto permite a confirmação da borda, do intervalo que abre a possibilidade de agir em prol de uma forma de vida amparada por uma imaginação que “deixa o visível flutuar em sua indeterminação” (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 16), em “um regime de temporalidade que escapa à inelutável cronologia dos encadeamentos” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 81).

Mondzain se aproxima também de Rancière ao afirmar que a escrita ficcional é operação-chave para a criação das zonas excessivas que nos descolam da fixidez das experiências impostas e oferecem possibilidades de desidentificação. A fuga redesenha o espaço de jogo de uma superfície que transforma as coordenadas da experiência corporificada por meio da ativação de afrografias em uma cena que dramatiza o salto fabulador da marronagem. Para ela, Bona mostra o caráter socializante da marronagem: a criação de uma “zona de uma nova sociabilidade” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 181), zona inextricável onde as emancipações ocorrem em abrigos seguros. Segundo ela, a fuga entrelaça a borda da floresta heterotópica e o comboio solidário que, através das canções, guia os escravizados marrons no trajeto liminar até as veredas. A cultura da marronagem é cartográfica: “evita que as pessoas se percam ou sejam capturadas. Inventa sinais e brinca com fintas, máscaras, improvisos e metamorfoses. Os marrons formam uma comunidade que contraria todo o controle e inventa a sua própria ordem interna e íntima” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 182). A marronagem produz uma zona, “um espaço cuja indeterminação oferece o campo imaginário de todos os possíveis” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 31). Inventa-se a zona constantemente a partir dos excessos, dos vazamentos, das bordas que conferem a ela seu poder político e a energia que alimenta as operações ficcionais que definem nossa relação com o visível e com o pensável. “A ficção cria a zona onde quem assume o risco de saltar faz a experiência da sua própria potência de agir e de escapar a toda a captura” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 87). Essa autora oferece o exemplo das músicas que compuseram a ficção da underground railroad, uma organização secreta cujos pontos de apoio eram encriptados nas canções que traziam as vias de fuga das pessoas escravizadas que saíam dos EUA para o Canadá.

O que se demanda é uma realização da forma, uma construção imaginária que possa oferecer, nessa “partilha do sensível” defendida por Rancière, uma energia ficcional, não no sentido da construção de uma fábula para eufemizar o real, mas como construção da cena onde o visível e o audível se dão em partilha. Trata-se da cena da imaginação política, que endereça a todos os corpos sensíveis as condições de uma partilha dos olhares. (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 90).

A ficção do caminho de ferro e seu revezamento solidário contribuem para uma ética hospitaleira que redefine a partilha do sensível a partir do investimento nas zonas que são fonte de operações imageantes na cena da imaginação política. A associação entre a marronagem e a elaboração de uma zona imageante nos chama a atenção, porque vai além das operações visuais, abrangendo a potência ficcional dos gestos, das músicas, das danças, ritmos e bricolagens. Mondzain utiliza o conceito de “operações imageantes” para dizer de uma potência e de uma radicalidade de fluxos de transformação, de compartilhamento e de elaboração do comum. Tais fluxos interferem no imaginário e na forma como alianças, solidariedades e partilhas se realizam. Operações imageantes desestabilizam a ordem e trabalham para modificá-la, mobilizando “esquemas originários que são matrizes geradoras de combinações infinitas de formas possíveis” (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 173).

As operações imageantes são estabelecidas em toda cultura, para onde quer que nos voltemos, a partir de uma relação complexa entre o visível e o invisível. Através de seus mitos fundadores, suas operações materiais e suas produções simbólicas, toda comunidade institui a economia da zona onde se estabelece a circulação entre o visível e o invisível, pois as imagens e as palavras mantêm relações distintas entre a presença e a ausência. Eis o que funda o sujeito que acessa a palavra, cuja economia e plasticidade são reguladas por cada cultura. Assim se organiza, em toda comunidade, a produção dos signos que regulam as relações entre a presença e a ausência, tanto as das coisas, como as dos corpos vivos ou mortos. (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 40).

Operações imageantes configuram uma zona de indeterminação hospitaleira, na qual se cultiva “a arte de receber, que nada mais é do que a arte de acolher, de aceitar como uma dádiva aquilo que no momento anterior estava ausente” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 206). Essa autora caracteriza a zona como um território da radicalidade, destinada à produção de uma poética política e à profusão de uma energia criativa e revolucionária, capaz de instaurar hospitalidade e acolhimento para os zonards, ou seja, aqueles seres liminares, sem identidade designada, que circulam nas bordas do controle e do desvio e se afirmam a partir de sua agência criadora. O encontro imprevisível com os zonards é o desafio que temos hoje de fazer alianças com aqueles que inicialmente são percebidos como ameaça. A zona é a borda do avizinhamento que ativa o espaço de jogo “não especializado do salto” e a “radicalidade emancipadora de todos os gestos de hospitalidade e criação” (MONDZAIN, 2022bMONDZAIN, Marie-José. Confiscação: das palavras, das imagens e do tempo. Belo Horizonte: Relicário, 2022b., p. 80; p. 145).

Ela enfatiza que, “seja no salto da conversão ou no passo lateralizado” que nos afastam de nós mesmos, não sabemos “qual será o rosto de quem não esperamos e sem o qual não saberíamos viver conosco próprios” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 216)8 8 “Se quem chega é também quem estava em falta na construção da minha própria subjetivação, então é preciso admitir que toda hospitalidade torna necessário o princípio da igualdade. Defender a igualdade entre sujeitos desiguais equivale a derrubar o princípio da identidade de si consigo próprio e, portanto, a deixar de acreditar que se é de alguma forma igual a si próprio. A chegada de qualquer outro impõe a provação de nossa íntima desigualdade. Deixarmos de nos considerar iguais a nós próprios é não estarmos já ávidos de semelhança e fraternidade fusional” (MONDZAIN, 2022a, p. 44). . A força do imprevisto e das invenções moventes e emancipadoras abre uma borda imageante na qual nos demoramos para permitir um olhar à escuta, um olhar que desafia a maneira como a retórica da inospitalidade tende a dizer que aquele que chega é excessivo, que ele incomoda, que não há lugar que o comporte, que o acomode. O gesto radical da arte realiza uma mise-en-scène que promove a redisposição e o deslocamento de lugares, nos afastando das fobias do contato e do contágio, nos levando a fazer uma experiência na “hostipitalidade”, à faire l’épreuve9 9 Uma épreuve envolve mais do que um desafio: ela requer um esforço, um empenho para encontrar possíveis linhas de fuga, possíveis saídas diante de uma provação. Uma épreuve cria um espaço liminar, ou seja, um espaço no qual a coexistência de tempos e espaços permite alterar o ritmo da experiência e a maneira como percebemos, sentimos e nos deixamos afetar pelos acontecimentos. Um espaço liminar é um espaço de fluxos, experimentações e remodelagem não apenas das respostas que damos aos desafios, mas dos próprios desafios e de suas condições. trazida por aqueles que nos fazem falta, “para receber deles o que nos falta a nós” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 16).

Considerações finais

Este trabalho tenta apresentar algumas possibilidades de refletirmos acerca de cenas de dissenso como superfícies a serem trabalhadas por gesto poético de escritura que articula diferentes saberes de modo a configurar as bordas da ficção como as beiradas e as veredas nas quais o mundo da narrativa e do relato descritivo acolhe o aparecer das vidas “que até então não contavam: as vidas obscuras” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021., p. 14), as vidas infames e precárias. As bordas entre o nada e o acontecimento aparecem, segundo Rancière (2017RANCIÈRE, J. Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil, 2017.; 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021.), nas histórias que mostram os sujeitos oscilando à beira do nada, de um momento qualquer que instaura uma zona propícia à fuga, ao salto que põe em marcha uma dinâmica que “faz emergir o ‘algo acontece’ a partir de uma situação na qual nada deveria acontecer” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário, 2021., p. 33). Assim, quando a superfície da cena é transformada em bordas sustentadas por temporalidades coexistentes e suspensivas, ela permite a emergência de zonas nas quais a potência dos saberes sobreviventes se manifesta e faz vazar o excesso que as diferentes ordens policiais não podem conter. Como menciona Rancière (2020RANCIÈRE, Jacques. La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, n. 881, 2020, p. 828-840. https://doi.org/10.3917/criti.881.0828.
https://doi.org/10.3917/criti.881.0828...
, p. 834), as poéticas emancipatórias criam um mundo comum que requer saberes a partir dos quais “os indivíduos trabalham para reconstruir o universo sensível ou o tipo de mundo comum em que se encontram”.

A superfície, a zona e o refúgio nos oferecem um imaginário potente para a configuração de uma forma específica de experiência, ou melhor, de uma borda específica para a produção da experiência que tensiona as tecnologias de captura e confiscação, pois desafia a hierarquia que conecta o olhar e a escuta aos dispositivos de controle e de previsibilidade. Tal atividade de invenção das operações que produzem dissenso (e descolonização do olhar) permite uma reconfiguração do mundo comum da experiência e do imaginário político desestabilizador das hierarquias.

É nesse sentido que podemos falar da poética da política, uma linguagem de intervalos, de veredas e de descontinuidades que impossibilitam uma roteirização da experiência dos sujeitos, funcionando a partir da diferença, do dinamismo conflitivo, para criar e abrir brechas ao aparecimento do que nunca foi visto (RANCIÈRE, 2019aRANCIÈRE, J. Le travail des images: conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon: Les Presses du Réel, 2019a.). Essa é uma linguagem que nos posiciona na borda de nossa existência ética: que nos confronta a outros dizeres e rostos, que nos convida a considerar quais seriam os mapas e coordenadas da experiência que poderiam configurar uma cena para tornar visível a invisibilidade das desigualdades, para oferecer imagens excessivas ao lado de imagens de controle, para rasurar hierarquias imunizadas contra os espaços outros e as temporalidades espiralares nas quais sujeitos quaisquer aparecem e fazem vazar as ordens de poder que alimentam ódios, mostrando como a superfície árida do sertão é vasta, mas que elas também abrigam constelações únicas de veredas, refúgios e singularidades em aliança.

  • A realização deste artigo conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (307962/2020-2) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - Fapemig (APQ-02951-21).
  • 2
    Mariléa de Almeida (2022ALMEIDA, Mariléa. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante, 2022., p. 30) explica essa expressão da seguinte maneira: “Devir, conceito que pressupõe mudança, acrescido da palavra ‘quilomba’, evoca as condições históricas que produziram a feminização da ideia de quilombo, possibilitando a visibilidade contemporânea das mulheres quilombolas na luta pela terra. [...] Devir quilomba diz respeito à necessidade de construirmos um vir a ser que se opõe à naturalização do modelo masculinista de fazer política e de viver orientado por violência, individualismo e competição”.
  • 3
    Bona (2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 16) explica que trabalha mais detidamente a “secessão marron” que ocorre com a formação de comunidades-refúgio em florestas densas e impenetráveis, superfícies labirínticas que auxiliavam a camuflagem e o desaparecimento. Nas colônias espanholas “voltadas à produção de açúcar, cimarron designa o animal domesticado que fugiu para retornar à vida selvagem. Assim os espanhóis qualificavam os escravos fugitivos de negros cimarrones. É preciso então ver na marronagem um processo de desdomesticação: um devir selvagem libertador. Ser marron é abraçar o movimento de um cipó: deixar-se atravessar pela selva, enquanto se a atravessa” (BONA, 2020BONA, Dénètem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020., p. 81).
  • 4
    A tradução de todos os trechos citados neste texto é de minha responsabilidade.
  • 5
    “A condição do escravo apresenta sempre um espaço de jogo, por mais ínfimo que seja. Se não, como explicar a explosão de resistências? Reduzir o escravo (o colonizado) em um estatuto de vítima é negar a ele qualquer capacidade de ação e perpetuar sua desumanização. Para Foucault, a escravidão é uma relação de poder quando o escravizado pode se deslocar e fugir, quando ele tem uma pequena margem de movimento” (BONA, 2016BONA, Dénètem Touam. Fugitif, où cours-tu?. Paris: PUF, 2016., p. 31).
  • 6
    “A marronagem é antes de tudo uma resposta inventiva que envolve posturas, técnicas corporais, todo um saber incorporado. O corpo é o primeiro teatro de operações, a primeira posição a ser liberada e frequentemente permanece imperceptível, desenvolvendo táticas, truques, estratagemas que compõem uma arte da esquiva e da camuflagem” (BONA, 2016BONA, Dénètem Touam. Fugitif, où cours-tu?. Paris: PUF, 2016., p. 32).
  • 7
    O próprio gesto filosófico de seu método de trabalho é muitas vezes definido por Rancière (2009bRANCIERE, Jacques. Et tant pis pour les gens fatiguées. Paris: Éditions Amsterdam, 2009b., p. 604) em termos espaciais: “tento redesenhar o mapa do pensável a fim de retirar as impossibilidades e as proibições que se abrigam frequentemente no coração dos pensamentos que almejam ser subversivos”.
  • 8
    “Se quem chega é também quem estava em falta na construção da minha própria subjetivação, então é preciso admitir que toda hospitalidade torna necessário o princípio da igualdade. Defender a igualdade entre sujeitos desiguais equivale a derrubar o princípio da identidade de si consigo próprio e, portanto, a deixar de acreditar que se é de alguma forma igual a si próprio. A chegada de qualquer outro impõe a provação de nossa íntima desigualdade. Deixarmos de nos considerar iguais a nós próprios é não estarmos já ávidos de semelhança e fraternidade fusional” (MONDZAIN, 2022aMONDZAIN, Marie-José. K como Kolónia: Kafka e a descolonização do imaginário. Lisboa: Orfeu Negro, 2022a., p. 44).
  • 9
    Uma épreuve envolve mais do que um desafio: ela requer um esforço, um empenho para encontrar possíveis linhas de fuga, possíveis saídas diante de uma provação. Uma épreuve cria um espaço liminar, ou seja, um espaço no qual a coexistência de tempos e espaços permite alterar o ritmo da experiência e a maneira como percebemos, sentimos e nos deixamos afetar pelos acontecimentos. Um espaço liminar é um espaço de fluxos, experimentações e remodelagem não apenas das respostas que damos aos desafios, mas dos próprios desafios e de suas condições.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2023
  • Aceito
    26 Out 2023
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