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Manuel Correia de Andrade: em pequenos textos, o mundo

Manuel Correia de Andrade: in small texts, the world

RESUMO

A seção Documentação abre espaço para originais de textos do geógrafo Manuel Correia de Andrade e para imagens de livros de sua biblioteca. São documentos que fazem parte do imenso acervo doado ao Instituto de Estudos Brasileiros, acervo esse que está em processo de higienização e catalogação. Foram selecionados trechos que mostram como esse intelectual articulava pesquisa, cultura e contexto político e social. Aparecem temas como desenvolvimento, pobreza, questões ambientais, corrupção e pensamento decolonial - pioneirismo, pois esse conceito ainda não havia se introduzido nos meios acadêmicos brasileiros.

PALAVRAS-CHAVE
Manuel Correia de Andrade; documentos originais; questões sociais.

ABSTRACT

The Documentation section makes room for original texts by geographer Manuel Correia de Andrade and for images of books from his library. These are documents that are part of the immense collection donated to the Institute of Brazilian Studies, a collection that is in the process of being cleaned and catalogued. Excerpts were selected that show how this intellectual articulated research, culture and political and social context. Topics such as development, poverty, environmental issues, corruption and decolonial thinking appear - pioneering, as this concept had not yet been introduced into Brazilian academic circles.

KEYWORDS
Manuel Correia de Andrade; original documents; social questions.

O Instituto de Estudos Brasileiros começou a receber o acervo de Manuel Correia de Andrade na segunda década do século XXI: cerca de 80 mil itens, reunindo mais de 60 mil livros e documentos variados, que levaram anos para serem transportados do Nordeste até o IEB. Foi necessário fazer um projeto para o processamento de toda essa coleção: o Projeto Manuel Correia de Andrade (PMCA), que foi iniciado em setembro de 2022 e visa a preservação e a divulgação desse acervo, doado pela família do acadêmico pernambucano Manuel Correia de Andrade. Sua biblioteca pessoal, iniciada por seu pai e por seu avô, reúne volumes e periódicos que documentam muito das culturas brasileiras. O projeto desenvolve ações de conservação, catalogação para a preservação e extroversão com o objetivo de assegurar a sustentabilidade desse acervo. Já estão catalogados e disponíveis para consulta 5.304 livros.

Figura 1
Livro de José Pereira Rego sobre febre amarela e cólera publicado no Brasil em 1873. Biblioteca Manuel Correia de Andrade. Projeto Manuel Correia de Andrade (em catalogação). Foto: Estúdio Garagem

Figura 2
Livro de Élisée Reclus sobre geografia editado em Paris, França, em 1884. Biblioteca Manuel Correia de Andrade. Projeto Manuel Correia de Andrade (em catalogação). Foto: Estúdio Garagem

Manuel Correia de Andrade (1922-2007) foi um dos mais importantes acadêmicos brasileiros do século XX. Geógrafo, historiador, advogado e professor com extensa produção bibliográfica, que redefiniu conceitos sobre o Nordeste, trabalhando com questões de espaço, agricultura, reforma agrária, industrialização, desigualdade social, ecologia, sempre incluindo contextos políticos e históricos. Nascido no Engenho Jundiá, em Vicência, na zona da mata de Pernambuco. Queria cursar Ciências Sociais, mas o curso ainda não existia em Pernambuco; formou-se então em Direito. Em 1943 foi fundada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manuel da Nóbrega, que iria se tornar a Universidade Católica de Pernambuco. Lá, Manuel Correia cursou a licenciatura em Geografia e História. Entusiasmado com os livros de Caio Prado Junior, já na década de 1940 começou a escrever para jornais e revistas universitárias acerca dos temas regionais e políticos que marcariam sua trajetória intelectual e cidadã. Ensinou Geografia e História em vários colégios recifenses e Geografia Física na Faculdade de Filosofia do Recife da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde era professor desde 1952. Aposentou-se oficialmente em 1985, mas continuou atuante como docente e pesquisador até o fim da vida. Foi responsável pela criação do Mestrado em Geografia na UFPE no final da década de 1970.

Seu posicionamento nos movimentos reivindicatórios democráticos durante o Estado Novo ocasionou escritos sobre reformas econômicas e sociais. Juntamente com Gilberto Freyre, lutou contra a ditadura de Getúlio Vargas em favor da redemocratização do Brasil, fato que o levou à prisão. Também foi preso em 1964 por sua militância: entre outras ações, defendia a Reforma Agrária e também por dirigir o Grupo Executivo de Produção de Alimentos (Gepa), órgão criado pelo governador Miguel Arraes.

O Projeto Manuel Correia de Andrade é formado por um conjunto de ações de preservação do seu acervo, cujo termo de doação ao Instituto de Estudos Brasileiros foi assinado pela viúva do geógrafo em 2008. No artigo “A construção de uma Biblioteca na trajetória de Manuel Correia de Andrade”, no número 60 (abril de 2015AMOROSO, Marta; IUMATTI, Paulo Teixeira. A construção de uma Biblioteca na trajetória de Manuel Correia de Andrade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 60, abr. 2015, p. 199-210. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i60p199-210.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901...
) da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Marta Amoroso e Paulo Teixeira Iumatti contam sobre a visita técnica que realizaram entre 22 e 24 de abril de 2008 ao acervo que estava em Pernambuco. Mostram então como esse intelectual construiu sua biblioteca diretamente relacionada com suas preocupações de pesquisa, docência, militância e participação na resolução dos grandes problemas brasileiros. Apontam ainda as possibilidades de exploração dessa biblioteca e o seu valor para os estudos brasileiros.

Apresentamos a seguir originais de artigos escritos e corrigidos por esse grande autor, pioneiro da geografia moderna brasileira, que desenvolveu e criou um original pensamento geográfico. É importante notar que esses documentos ainda estão em fase de tratamento pelo Projeto Manuel Correia de Andrade, sendo uma forma de divulgar um material que ainda está em processo no IEB. Reunimos textos originais que foram corrigidos à mão pelo próprio Manuel Correia de Andrade. Selecionamos trechos que mostram as inquietações políticas desse geógrafo que tanto relacionou território e sociedade.

Em “Um processo de desalienação”, que seria fala de abertura de um seminário da Cátedra Gilberto Freyre, da Universidade Federal de Pernambuco, destacamos o início de sua preocupação decolonial:

Nós, brasileiros, estamos permanentemente diante do dilema de compreender e de explicar o Brasil, ou os Brasis. Será que há um só Brasil ou que neste imenso território de mais de oito milhões de quilômetros quadrados não existirão vários Brasis, unidos pelo laço federativo ou apenas pela tradição. Como explicar em uma hora de crise como essa que estamos vivendo, que o país tenha atravessado séculos sem fazer uma grande reforma nesse processo de colonização que o português implantou em nosso território, quando dele se apossou2 2 Na transcrição dos trechos e nos títulos dos textos de Manuel Correia de Andrade, mantivemos a grafia e a pontuação dos originais. Salientamos que os textos foram escritos para serem lidos. .

Figura 3
Início do texto “Um processo de desalienação”, corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-088

Figura 4
Início do texto “Um processo de desalienação”, ainda sendo corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-089

Já em “Pobreza, miséria e sub-desenvolvimento”, Manuel Correia de Andrade aconselha que sejam lidos livros de ficção, numa ampliação da pesquisa científica:

Para se entender a pobreza dominante nos vários países da América Latina e da África, ler apenas os livros de história e de ciências sociais não é o suficiente, é necessário que se leia também os livros de ficção, os romances, as novelas e os contos escritos por literatos do mais alto nível, onde eles contam a vida do país ou da região, preocupados com a situação das classes em geral e não apenas das menos favorecidas. Por isso, somos entusiastas dos livros de escritores latino-americanos, como Asturias, que retrata bem a situação da Guatemala, país dominantemente indígena, sufocada por uma elite que explora a maioria de sua população; de Vargas Llosa, que ultimamente mudou sua orientação política, abandonou as ideias da juventude e passou a escrever livros excepcionais, passados no Peru e na República Dominicana; de Jorge Icaza, com o retrato que faz da sociedade equatoriana; ou do colombiano, certamente o maior de todos, Gabriel Garcia Marques, famoso por livros como Cem Anos de Solidão, O Outono do Patriarca e agora, na velhice, surge com o seu Memórias de Minhas Putas Tristes.

Figura 5
Início do texto “Pobreza, miséria e sub-desenvolvimento”, corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-095

Figura 6
Início do texto “Pobreza, miséria e sub-desenvolvimento”, corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-096

Manuel Correia de Andrade realizou viagens de pesquisa a países da Europa, África, aos Estados Unidos e ao Japão. Interessava-se por questões ambientais e sociais no contexto internacional. No texto “O inferno no paraíso”, comenta o furacão Katrina nos Estados Unidos, ocorrido em agosto de 2005:

O mundo deve ter ficado pasmo com as informações que recebeu, através da imprensa falada e escrita, do caos que se instalou em alguns estados norte-americanos, Luisiana e Mississipi, sobretudo, nos fins de agosto e início de setembro, causado pela passagem do furacão Catrina. Não se podia imaginar que a maior nação do mundo, a mais rica, a mais poderosa, a que quer impor o seu padrão e as suas regras de vida à humanidade, fosse tão vulnerável aos efeitos de uma catástrofe natural, em grande parte provocada pelos desequilíbrios ecológicos que ela própria provoca.

Figura 7
Início do texto “O inferno no paraíso”, corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-093

Figura 8
Início do texto O inferno no paraíso, ainda sendo corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-094

Em “Incompetência e corrupção”, Manuel Correia de Andrade volta a sugerir leituras literárias para entender realidades geográficas e sociais. No caso, indica obras sobre a África:

No momento em que o Brasil expande a sua área de influência, através do Atlântico, e se volta para a África, procurando substituir Portugal em sua presença comercial e cultural, é de bom tom que os brasileiros leiam mais os autores africanos ou os que, nascidos em outros continentes, viveram e escreveram ou escrevem sobre a vida naquele continente, que exerceu tão grande influência em nosso país e ao qual estamos ligados por laços culturais e políticos.

Baseados ness idéia é que achamos muito oportuna a leitura do livro do jornalista polonês, Ryszard Kapuscinski, intitulado O Imperador, no qual ele analisa o fim do império de Hailé Selassié na Etiópia.

Figura 9
Início do texto Incompetência e corrupção, corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-091

Figura 10
Início do texto “Incompetência e corrupção”, ainda sendo corrigido por Manuel Correia de Andrade, com anotações escritas à mão. Arquivo IEB/USP, Fundo Manuel Correia de Andrade, código de referência MCA-TEX-092

Manuel Correia de Andrade foi um pesquisador multidisciplinar e interdisciplinar. Pela sua formação em Direito, Geografia e História, pelas pesquisas e estudos no exterior, pelas pesquisas de campo no Nordeste, pelas reflexões sobre questões internacionais e pelo pioneirismo ao tratar de temas ambientais e temas decoloniais, construiu uma intensa carreira intelectual e profissional, atuando na docência em escolas, na universidade e também na administração pública, sempre registrada em uma enorme produção bibliográfica.

Podemos rememorar outro autor relacionado ao universo do sertão: Euclides da Cunha. Nas palavras de Walnice Nogueira Galvão:

Ainda mais, o Modernismo vai dar continuidade a algumas das preocupações de Euclides com os interiores do país e à macaqueação europeia nos focos populacionais litorâneos. Partilha igualmente com ele a reflexão sobre a especificidade das condições históricas do país, na medida em que já em Os sertões Euclides realizara um mapeamento de temas que se tornarão centrais na produção intelectual e artística do século XX, ao debruçar-se sobre o negro, o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a dependência. Aí fincam suas raízes não só o Modernismo mas também o romance regionalista de 1930 e o nascimento das ciências sociais no país na década de 1940. (GALVÃO, 2019GALVÃO, Walnice N. Fortuna crítica. In: CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica e organização: Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora/Edições Sesc São Paulo, 2019, p. 616-623., p. 617).

Euclides da Cunha foi um pioneiro, assim como Manuel Correia de Andrade, que começou suas vivências de pesquisador antes da metade do século XX e chegou ao século XXI discutindo os grandes problemas da humanidade, enquanto construía uma das principais coleções bibliográficas brasileiras. Euclides da Cunha e Manuel Correia de Andrade, dois brasileiros, duas presenças fundamentais.

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    Na transcrição dos trechos e nos títulos dos textos de Manuel Correia de Andrade, mantivemos a grafia e a pontuação dos originais. Salientamos que os textos foram escritos para serem lidos.

Referências

  • AMOROSO, Marta; IUMATTI, Paulo Teixeira. A construção de uma Biblioteca na trajetória de Manuel Correia de Andrade. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 60, abr. 2015, p. 199-210. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i60p199-210
    » http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i60p199-210
  • GALVÃO, Walnice N. Fortuna crítica. In: CUNHA, Euclides da. Os sertões Edição crítica e organização: Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora/Edições Sesc São Paulo, 2019, p. 616-623.
  • PROJETO Manuel Correia de Andrade. Disponível em: https://sites.usp.br/pmca Acesso em: nov. 2023.
    » https://sites.usp.br/pmca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2023
  • Aceito
    05 Dez 2023
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