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O perfil da antiestreptolisina O no diagnóstico da febre reumática aguda

Antistreptolysin O titer profile in acute rheumatic fever diagnosis

Resumos

OBJETIVO: estabelecer o perfil dos títulos de ASO, mediante o diagnóstico diferencial da FRA com outras afecções que também cursam com níveis elevados de ASO. MÉTODOS: foram estudados 78 casos de FRA na apresentação e seguimento, 22 de coréia isolada, 45 de infecções orofaringeanas recorrentes (IOR) e 23 de artrites idiopáticas juvenis (AIJ), com início ou reativação recente. A determinação seqüencial de ASO (UI/ml) foi realizada por ensaio nefelométrico automatizado (Behring®-Germany) nos períodos de 0-7 dias, 1-2 semanas, 2-4 semanas, 1-2 meses, 2-4 meses, 4-6 meses, 6-12 meses, 1-2 anos, 2-3 anos, 3-4 anos e 4-5 anos após o diagnóstico. RESULTADOS: os títulos de ASO na fase aguda da FRA apresentaram elevação significante até o intervalo de 2- 4 meses (p < 0,0001), quando atingiram os níveis basais e permaneceram estáveis por 5 anos na vigência de profilaxia secundária com penicilina. Os valores de ASO na apresentação da FRA também foram mais elevados e com diferença significante quando comparados aos de coréia isolada, IOR e AIJ (p = 0,0025). As variações etárias e o limite superior da normalidade (320 UI/ml) foram considerados para a comparação entre estes grupos, assim como para o cálculo da sensibilidade (73,3%) e da especificidade (57,6%) mediante o diagnóstico clínico de FRA. A especificidade e valor preditivo positivo do teste aumentaram com títulos crescentes, sendo mais alta com títulos > 960 UI/ml. CONCLUSÃO: esta reavaliação do perfil da ASO indicou uma resposta exuberante na fase aguda da febre reumática indicou ainda que os seus níveis séricos podem diferenciá-la de outras afecções que também cursam com níveis elevados de ASO, como as infecções orofaringeanas recorrentes ou as artrites idiopáticas juvenis em atividade.

artrite; febre reumática; antiestreptolisina; coréia


OBJECTIVE: to determine ASO titer profile by establishing ARF differential diagnoses of other diseases with high levels of ASO antibodies. METHODS: we investigated 78 patients with ARF at onset and follow-up, 22 with isolated chorea at onset, 45 with recurrent oropharyngeal tonsillitis, and 23 with recent flare of juvenile idiopathic arthritis. We tested ASO with automated particle-enhanced immunonephelometric assay (Behring®-Germany). The ASO (IU/ml) titers were assessed at the following time intervals: 0-7 days, 1-2 weeks, 2-4 weeks, 1-2 months, 2-4 months, 4-6 months, 6-12 months, 1-2 years, 2-3 years, 3-4 years, and 4-5 years after onset of ARF. RESULTS: ASO titers in patients diagnosed with ARF had a significant increase up to the 2-4-month time interval (P < 0.0001). Baseline levels were observed afterwards in patients under regular penicillin prophylaxis. The levels of ASO in ARF were also significantly higher than in patients with isolated chorea, recurrent oropharyngeal infections or juvenile idiopathic arthritis (P = 0.0025), when age-matched samples of these groups were compared. The test’s sensitivity was 73.3% and the specificity was 57.6%, and it was calculated taking into account the upper limit of normality at 320 IU/ml, as well as the established diagnosis of ARF. The test’s specificity and positive predictive value increased with rising or higher titers, being higher with titers above 960 UI/ml. CONCLUSION: this reappraisal of ASO profile in ARF patients indicates a remarkable response during the acute phase, and that points to the extent to which ASO levels may differentiate ARF from other diseases with high levels of ASO antibodies, as coincidental but unrelated streptococcal infection or chronic arthritis flareup.

arthritis; rheumatic fever; antistreptolysin; chorea


ARTIGO ORIGINAL

O perfil da antiestreptolisina O no diagnóstico da febre reumática aguda

Antistreptolysin O titer profile in acute rheumatic fever diagnosis

Claudia Saad Magalhães MachadoI; Katya OrtizII; Alessandra de Lourenço Budin MartinsII; Roberto Salvador MartinsII; Nilton Carlos MachadoI

Departamento de Pediatria - Unidade de Reumatologia Pediátrica e Laboratório Clínico e Experimental de Pediatria - Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista - UNESP

IProfessor Assistente Doutor

IIResidente de Pediatria

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dra. Claudia S.M. Machado Depto. de Pediatria - Fac. Medicina de Botucatu, UNESP Botucatu - SP - CEP 18618-970 Fone/fax: (14) 6802.6274 / 6802.6083 E-mail: cmachado@fmb.unesp.br

RESUMO

OBJETIVO: estabelecer o perfil dos títulos de ASO, mediante o diagnóstico diferencial da FRA com outras afecções que também cursam com níveis elevados de ASO.

MÉTODOS: foram estudados 78 casos de FRA na apresentação e seguimento, 22 de coréia isolada, 45 de infecções orofaringeanas recorrentes (IOR) e 23 de artrites idiopáticas juvenis (AIJ), com início ou reativação recente. A determinação seqüencial de ASO (UI/ml) foi realizada por ensaio nefelométrico automatizado (Behring®-Germany) nos períodos de 0-7 dias, 1-2 semanas, 2-4 semanas, 1-2 meses, 2-4 meses, 4-6 meses, 6-12 meses, 1-2 anos, 2-3 anos, 3-4 anos e 4-5 anos após o diagnóstico.

RESULTADOS: os títulos de ASO na fase aguda da FRA apresentaram elevação significante até o intervalo de 2- 4 meses (p < 0,0001), quando atingiram os níveis basais e permaneceram estáveis por 5 anos na vigência de profilaxia secundária com penicilina. Os valores de ASO na apresentação da FRA também foram mais elevados e com diferença significante quando comparados aos de coréia isolada, IOR e AIJ (p = 0,0025). As variações etárias e o limite superior da normalidade (320 UI/ml) foram considerados para a comparação entre estes grupos, assim como para o cálculo da sensibilidade (73,3%) e da especificidade (57,6%) mediante o diagnóstico clínico de FRA. A especificidade e valor preditivo positivo do teste aumentaram com títulos crescentes, sendo mais alta com títulos > 960 UI/ml.

CONCLUSÃO: esta reavaliação do perfil da ASO indicou uma resposta exuberante na fase aguda da febre reumática indicou ainda que os seus níveis séricos podem diferenciá-la de outras afecções que também cursam com níveis elevados de ASO, como as infecções orofaringeanas recorrentes ou as artrites idiopáticas juvenis em atividade.

Palavras-chave: artrite, febre reumática, antiestreptolisina, coréia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: to determine ASO titer profile by establishing ARF differential diagnoses of other diseases with high levels of ASO antibodies.

METHODS: we investigated 78 patients with ARF at onset and follow-up, 22 with isolated chorea at onset, 45 with recurrent oropharyngeal tonsillitis, and 23 with recent flare of juvenile idiopathic arthritis. We tested ASO with automated particle-enhanced immunonephelometric assay (Behring®-Germany). The ASO (IU/ml) titers were assessed at the following time intervals: 0-7 days, 1-2 weeks, 2-4 weeks, 1-2 months, 2-4 months, 4-6 months, 6-12 months, 1-2 years, 2-3 years, 3-4 years, and 4-5 years after onset of ARF.

RESULTS: ASO titers in patients diagnosed with ARF had a significant increase up to the 2-4-month time interval (P < 0.0001). Baseline levels were observed afterwards in patients under regular penicillin prophylaxis. The levels of ASO in ARF were also significantly higher than in patients with isolated chorea, recurrent oropharyngeal infections or juvenile idiopathic arthritis (P = 0.0025), when age-matched samples of these groups were compared. The test’s sensitivity was 73.3% and the specificity was 57.6%, and it was calculated taking into account the upper limit of normality at 320 IU/ml, as well as the established diagnosis of ARF. The test’s specificity and positive predictive value increased with rising or higher titers, being higher with titers above 960 UI/ml.

CONCLUSION: this reappraisal of ASO profile in ARF patients indicates a remarkable response during the acute phase, and that points to the extent to which ASO levels may differentiate ARF from other diseases with high levels of ASO antibodies, as coincidental but unrelated streptococcal infection or chronic arthritis flareup.

Keywords: arthritis, rheumatic fever, antistreptolysin, chorea.

Introdução

Estudos recentes na área da Reumatologia Pediátrica têm abordado as características clínicas da fase aguda da febre reumática, enfatizando a sua alta prevalência em nosso meio, assim como as suas crescentes dificuldades diagnósticas1,2. Essas dificuldades decorrem da inexistência de sinais patognomônicos e de exames laboratoriais específicos. Nos últimos 50 anos, o diagnóstico da febre reumática aguda (FRA) tem sido guiado pelos Critérios de Jones, mediante a observação de uma combinação variável de sinais e sintomas que ocorrem após infecção estreptocóccica orofaringeana, mas na prática médica diária a interpretação de algumas situações clínicas torna este diagnóstico um desafio. A cardite é a manifestação clínica mais típica e, quando se apresenta associada aos outros sinais, conduz ao diagnóstico de forma direta, mas um número considerável de pacientes apresenta artrite como manifestação única ou inicial. Na apresentação com poliartrite isolada, a FRA deve ser diferenciada das artrites idiopáticas juvenis, do lupus eritematoso sistêmico ou da leucemia linfoblástica aguda, pois estas afecções podem se enquadrar aos mesmos critérios. As observações recentes sobre a mudança de expressividade da poliartrite3-8 apontam para a apresentação e curso atípico em até 47% dos casos7. A poliartrite atípica, em contraste com a poliartrite migratória clássica, apresenta padrão de acometimento articular, duração do surto e resposta aos anti-inflamatórios similares aos das artrites crônicas, e este polimorfismo de apresentação pode dificultar ainda mais o seu diagnóstico.

Como tem sido reconhecido de longa data, o critério essencial para se estabelecer o diagnóstico da FRA é a identificação de infecção estreptocóccica recente, incluindo as subclínicas, de portadores assintomáticos e aquelas tratadas inadequadamente com persistência do agente na orofaringe. A cultura de orofaringe tem baixa positividade na FRA e pode negativar pelo uso prévio de antibióticos, sendo a detecção de anticorpos anti-estreptocócicos, como a antiestreptolisina O e a anti-desoxiribonuclease B os mais utilizados na prática clínica. Destes, o teste da antiestreptolisina O (ASO) foi o primeiro a ser desenvolvido e o mais freqüentemente utilizado9,10.

Todavia, há fatores que podem confundir e dificultar a sua interpretação. Primeiro, as crianças em idade escolar apresentam maior freqüência de infecções estreptocócicas e, portanto, podem apresentar valores elevados de ASO devido às infecções coincidentes, mas não relacionadas ao diagnóstico. Segundo, pacientes com febre reumática que se apresentam com coréia como manifestação isolada podem ter níveis normais de ASO, devido ao período de latência de 1 a 6 meses entre a infecção e as manifestações clínicas.

Este estudo foi realizado com o objetivo de avaliar o perfil da resposta da ASO diante do dilema do diagnóstico diferencial da FRA e coréia isolada com outras afecções que cursam com níveis elevados de ASO, como infecções orofaringeanas recorrentes e artrites idiopáticas juvenis.

Casuística e Métodos

Cem casos consecutivos de febre reumática, com seguimento regular desde o diagnóstico na fase aguda, e aderentes à profilaxia secundária, foram recrutados do Ambulatório de Reumatologia Pediátrica, Hospital de Clínicas- Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP. Botucatu está situada na região Sudoeste do Estado de São Paulo, a 800 metros de altitude, tendo clima subtropical de altitude e temperatura média anual de 20°. A população de referência é proveniente da região Sudoeste de São Paulo até o Norte do Paraná.

Entre os casos selecionados por terem cumprido o protocolo de seguimento, 78 eram de febre reumática aguda, manifestando-se com poliartrite e/ou cardite, e 22 apresentavam Coréia de Sydenham como manifestação isolada. O diagnóstico de FRA foi feito de acordo com os critérios de Jones revisados11, e o diagnóstico de coréia isolada foi baseado nas manifestações clínicas e na ausência de sinais de cardite aguda (sopro, pericardite, insuficiência cardíaca) ou artrite por ocasião da sua apresentação. Todos os pacientes receberam profilaxia secundária com penicilina benzatina a cada três semanas, em aplicações regulares e supervisionadas.

Quarenta e cinco pacientes portadores de infecções orofaringeanas recorrentes, com pelo menos 4 episódios anuais de faringo-amigdalite e prescrição de antibioticoterapia em todos os episódios, foram recrutados do Ambulatório de Pediatria Geral para seguimento e investigação, durante o mesmo período.

Vinte e três pacientes portadores de artrites idiopáticas jjuvenis, de acordo com a definição recentemente proposta pela ILAR - International League of Associations for Rheumatology12, foram avaliados na apresentação ou reativação recente, durante o mesmo período de recrutamento dos casos de FRA, sendo 14 de início oligoarticular, 4 poliarticular e 5 sistêmico.

O estudo teve a aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP, e os pacientes foram recrutados após consentimento livre e esclarecido pelos pais ou tutores legais.

Determinação laboratorial de ASO

A determinação laboratorial de ASO foi realizada por ensaio nefelométrico de aglutinação do látex10, usando reagentes NA Latex ASL (Behring- Behringwerke AG, Marburg-Germany). O método baseia-se na aglutinação imunoquímica de partículas de poliestireno, recobertas por estreptolisina O com anticorpos presentes no soro humano. Esta aglutinação determina aumento da turvação dos reagentes, que é medida por nefelometria. A avaliação quantitativa da concentração de ASO se efetua por meio da medida da turvação dos reagentes, considerando a velocidade máxima de aglutinação (peak-rate) e tendo os padrões de concentração conhecida para comparação. Os resultados do ensaio são calculados automaticamente por meio de função logarítmica e apresentados em unidades internacionais - UI/ml. Os resultados obtidos pela técnica da aglutinação do látex são comparáveis aos de ensaios de neutralização com inibição de hemólise, ou seja 1UI=1.04 U Todd13,14. Os níveis séricos de ASO foram determinados em períodos pré-estabelecidos desde a primeira semana até 5 anos após o diagnóstico.

Análise Estatística

A comparação estatística entre as idades dos pacientes nos diferentes grupos foi realizada por análise de variância com pós-teste: a correção de Tukey. A comparação estatística entre os valores de ASO nos diferentes intervalos da determinação de ASO, assim como entre os valores de ASO na apresentação de acordo com o diagnóstico foi realizada por meio de teste não paramétrico, o teste de Kruskal-Wallis e de Comparações Múltiplas (Dunn). O nível de significância e a representação gráfica dos resultados foram obtidos por meio de software estatístico Graph-Pad Prism Software Inc. version 2.0,1995.

Resultados

As características demográficas e faixa etária dos pacientes estudados são apresentadas na Tabela 1. A comparação estatística entre as idades dos pacientes nos quatro grupos mostrou diferença significante (p < 0,05), apontando para valores inferiores na faixa etária dos portadores de infecções orofaringeanas recorrentes, quando comparados aos de portadores de FRA, coréia isolada e artrites idiopáticas juvenis, que não diferiram entre si.

A determinação seqüencial de ASO em pacientes com diagnóstico de FRA, excluindo-se os casos que se apresentaram com coréia isolada, realizada desde a primeira semana, nos seguintes intervalos: 0-7 dias, 7-15 dias, 15-30 dias, 1-2 meses, 2-4 meses, 4-6 meses, 6-12 meses, 1-2 anos, 2-3 anos, 3-4 anos e 4-5 anos, com a representação dos valores da mediana, variação inter-quartil e intervalo de confiança de 95%, é apresentada na Figura 1. O número de pacientes avaliados em cada período com os respectivos valores da média geométrica da ASO estão na Tabela 2. Considerando-se o limite superior da normalidade de 320 UI/ml para a população aqui definida, observa-se uma resposta marcante dos níveis séricos de ASO nas duas primeiras semanas do diagnóstico, com declínio gradual dos títulos até o período compreendido no intervalo de 2-4 meses, tendo estes níveis atingido os valores basais após o período compreendido no intervalo de 4-6 meses. Observa-se também uma variação individual marcante, definida pelo intervalo de confiança de 95% (Figura 1) e ajustada pela média geométrica apresentada na Tabela 2; estes valores têm menor variação após o período entre 1-2 anos.


A comparação estatística entre os valores de ASO em cada um desses intervalos mostrou diferença significante (p < 0,0001), e o teste de comparações múltiplas entre todos os intervalos aponta para diferenças significantes nos valores desde a primeira semana até o intervalo de 2-4 meses em relação aos demais intervalos compreendidos no período de 5 anos de seguimento (Figura 1).

Considerando a variação etária encontrada no grupo com infecções orofaringeanas recorrentes, estes pacientes foram reagrupados em 3 faixas etárias: 2-4 anos, 4-7 anos e maiores de 7anos. A determinação de ASO nestes subgrupos mostrou valores crescentes e com diferença significante entre os 3 subgrupos (Figura 2). Observou-se que pacientes com idade inferior a 4 anos e com história de infecções orofaringeanas recorrentes não apresentaram elevação dos níveis de ASO e foram excluídos das comparações subseqüentes.


A comparação dos valores de ASO de acordo com o diagnóstico de FRA, coréia isolada, infecções orofaringeanas recorrentes e artrites idiopáticas juvenis foi feita em determinações obtidas na primeira semana da apresentação clínica. O número de pacientes selecionados em cada grupo e os respectivos valores de ASO, representados média geométrica são apresentados na Tabela 3. Houve diferença significante entre os 4 grupos (p < 0,0025), com os valores mais elevados na FRA quando comparados aos da coréia isolada, infecções orofaringeanas recorrentes e artrites idiopáticas juvenis, constatada por meio do teste de comparações múltiplas. A representação gráfica da mediana, variação inter-quartil e intervalo de confiança de 95% dos valores de ASO indica a proporção de valores acima do limite superior da normalidade nos quatro grupos (Figura 3). Verificou-se entre estes grupos ampla variação individual também para os pacientes portadores de infecções orofaringeanas recorrentes e de artrites idiopáticas juvenis.


A sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo, valor preditivo negativo e acurácia do teste da ASO foram calculadas considerando o limite superior da normalidade 320 UI/ml, e a confirmação ou exclusão do diagnóstico de febre reumática, baseada em critérios clínicos e no seguimento a longo prazo de todos os pacientes. Os resultados (Tabela 4) indicaram sensibilidade decrescente e especificidade crescente com títulos crescentes de ASO, atingindo a especificidade valor de 93,2% para os títulos acima de 960 UI/ml.

Discussão

A apresentação clínica variável da FRA e a ausência de sinais patognomônicos resultaram no estabelecimento de seus critérios diagnósticos. É essencial para este diagnóstico a confirmação de infecção estreptocócica precedendo as manifestações clínicas11. No entanto, quando as manifestações mais típicas da doença não se expressam claramente, torna-se um dilema, dada a importância de se identificar o primeiro surto e estabelecer a profilaxia secundária com penicilina, fator crucial para a prevenção de recorrências.

A cultura de orofaringe é considerada o exame ideal (gold standard) para o diagnóstico definitivo de infecção orofaringeana, contudo a sua baixa positividade no diagnóstico da FRA limita a sua utilidade. A determinação de anticorpos contra produtos extra-celulares estreptocócicos tem se mostrado de grande valor na prática clínica e em investigação epidemiológica de infecções estreptocócicas e suas seqüelas15. Entre estes, a determinação da anti-estreptolisina O (ASO) pode contribuir substancialmente para o estabelecimento do diagnóstico, pois os seus títulos aumentam por ocasião das manifestações clínicas principais, declinando independentemente do curso subseqüente da doença.

A monitorização seqüencial da ASO foi realizada em 78 casos consecutivos de FRA, e a distribuição dos títulos nas diferentes fases da doença indicou uma resposta marcante na fase aguda. O declínio foi também determinado, nesta população protegida de infecções estreptocócicas, por meio de profilaxia secundária com penicilina benzatina a cada três semanas, mostrando que estes níveis se mantêm estáveis após o 4o mês do surto inicial. O resultado da média geométrica dos valores ASO, por ocasião do diagnóstico de FRA em nossos pacientes (534 UI/ml), foi comparável aos resultados descritos na literatura por Ayoub & Wannamaker (446 U/ml) nos anos 60 nos Estados Unidos16 e por Berrios et al. (460 U/ml) nos anos 80 no Chile17, indicando que mudanças sócio-demográficas mais recentes não modificaram este perfil18-21.

Na prática, é comum a interpretação da elevação ou declínio, com diferença de dois títulos de diluição em relação ao limite superior da normalidade, como indicativos de infecção estreptocócica prévia. Todavia, isso não se aplica para a coréia isolada, onde os valores de ASO podem estar normais em sua fase clinicamente ativa20.

Na interpretação correta do teste há que se considerar também que os títulos elevados de ASO são apenas indicativos de infecção orofaringeana precedente, apoiam o diagnóstico de FRA mas isoladamente não provam e nem sequer mensuram a atividade da doença, podendo ocorrer em outras afecções. Uma proporção considerável de pacientes é encaminhada ao nosso serviço por apresentar infecções orofaringeanas recorrentes e níveis elevados de ASO, sem contudo apresentar o quadro das manifestações clínicas principais da febre reumática. Os efeitos de exposição repetida ao estreptococo foram estudados nestes pacientes, considerando a variação etária para a comparação com os portadores de FRA.

Os limites da normalidade para a população-alvo devem ser previamente estabelecidos, pois variam com a idade, época do ano, localização geográfica e prevalência de infecções estreptocócicas. Os valores de referência para crianças têm sido relatados na literatura (Tabela 5) em áreas geográficas diversas22-27. Tomou-se como base o estudo recente, utilizando o método de aglutinação do látex e considerando o intervalo de confiança de 95% para se estabelecer o limite superior da normalidade de 320 UI/ml26.

Na caracterização da resposta imune ao estreptococo de acordo com a faixa etária, lactentes e pré-escolares apresentam valores mais baixos de ASO e, na faixa do escolar, a exposição repetida aos antígenos estreptocócicos permite a caracterização da resposta anamnéstica secundária, que inicia dias após a infecção e alcança o pico em 3-6 semanas28-30. De fato, a resposta secundária foi evidenciada em nossos pacientes maiores de 4 anos que tiveram mais de 4 episódios anuais de faringo-amigdalite.

Uma das limitação para a utilidade diagnóstica do teste da ASO deriva de sua baixa especificidade, pois pacientes com outras causas de artrite que não a FRA podem apresentar valores altos de ASO como resultado de infecção estreptocócica recente, coincidente, mas não relacionada. É preciso ter em mente essa possibilidade, pois títulos de ASO elevados cronicamente podem também ocorrer em até um terço dos pacientes portadores de poliartrites crônicas como manifestação associada a inflamação31, embora se desconheça a relação entre a atividade inflamatória e a exposição ao estreptococo.

Os pacientes portadores de coréia isolada, assim como os portadores de infecções orofaringeanas recorrentes e de artrites idiopáticas juvenis também tiveram valores elevados de ASO por ocasião do diagnóstico, mas esses valores apresentaram diferença significante e foram inferiores aos de portadores de FRA por poliartrite e/ou cardite.

Observou-se grande variabilidade individual nos níveis de ASO em todas as fases da doença. Um resultado isolado de ASO pode ter baixa sensibilidade, impondo uma outra limitação quanto à utilidade da determinação da ASO, pois nem todos os pacientes respondem com aumento deste anticorpo. Esta dificuldade pode ser superada pela determinação combinada de outros anticorpos anti-estreptocócicos como a anti-desoxirribonuclease B, anti-hialuronidase, anti-estreptoquinase, anti-estreptodornase32, ou pela determinação seriada da ASO. Contudo, este recurso pode ter a relação de custo-benefício alta, de tal forma que um teste isolado pode ter maior valor para o diagnóstico quando os títulos ultrapassem 640 UI/ml.

A situação epidemiológica da febre reumática e de outras manifestações pós-estreptocócicas tem sido o alvo de preocupações recentes mesmo em países industrializados33 e a sua prevalência em nossa população direciona a atenção não somente para a investigação de medidas preventivas, mas também para as medidas que facilitem o diagnóstico preciso e a identificação de novos surtos. Concluiu-se, por estes dados, que para a interpretação de valores seqüenciais ou isolados de ASO na FRA deve se levar em conta, além da simples interpretação do "limite superior da normalidade"34, a sensibilidade e especificidade do teste diante de outras afecções que cursam com níveis elevados de ASO.

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  • Endereço para correspondência:
    Dra. Claudia S.M. Machado
    Depto. de Pediatria - Fac. Medicina de Botucatu, UNESP
    Botucatu - SP - CEP 18618-970
    Fone/fax: (14) 6802.6274 / 6802.6083
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2001
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