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Influência do colostro na colonização bacteriana normal do trato digestivo do recém-nascido

Influence of colostrum on normal bacterial colonization of the neonatal gastrointestinal tract

EDITORIAIS

Influência do colostro na colonização bacteriana normal do trato digestivo do recém-nascido

Influence of colostrum on normal bacterial colonization of the neonatal gastrointestinal tract

Francisco José PennaI, Jacques Robert NicoliII

IDepartamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

IIDepartamento de Microbiologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

A microbiota normal associada ao trato digestivo humano é constituída por um número considerável de microorganismos (1014 células viáveis/indivíduo) pertencentes a aproximadamente 300 a 400 espécies microbianas diferentes/indivíduo que desenvolvem funções importantes no local que colonizam (1). Três grandes funções podem ser citadas: a) a resistência à colonização, que pode ser definida como a capacidade de impedir ou reduzir a multiplicação de microorganismos exógenos que por acaso penetram no ecossistema digestivo; b) a imunomodulação, que permite uma resposta das defesas imunológicas locais e sistêmicas mais rápida, mas também adequada na sua intensidade; c) a contribuição nutricional, que oferece diversas fontes energéticas e de vitaminas, além de participar da regulação da fisiologia digestiva do hospedeiro.

Ao nascimento, a criança se apresenta totalmente livre de microbiota associada, e é fundamental para ela que as suas superfícies e mucosas sejam o mais rapidamente colonizadas pelos microorganismos que desenvolvem as funções citadas acima. Aparentemente, a microbiota gastrintestinal de uma criança só chega às características populacionais e funcionais de um adulto após seis meses a um ano de vida (2). Portanto, a fase de colonização digestiva no recém-nascido é um período crítico durante o qual a chegada de um microorganismo potencialmente patogênico num ecossistema ainda incompleto e pouco funcional pode ser extremamente prejudicial. Diversas evidências sugerem ainda que uma seqüência de implantação anormal leva (talvez de maneira irreversível) a uma microbiota menos eficiente nas suas funções. Uma colonização rápida e segundo a cinética correta é, portanto, fundamental para o estabelecimento de um ecossistema microbiano digestivo com funções potentes.

É de se perguntar, neste momento, onde o recém-nascido obtém os microorganismos que constituirão a sua microbiota digestiva normal e quais são os fatores que podem facilitar ou, ao contrário, dificultar a obtenção e instalação desses componentes do ecossistema gastrintestinal. A mãe é a primeira fonte desses microorganismos, tanto durante o parto, quando o recém-nascido entra em contato com os ecossistemas vaginal e fecal da mãe, quanto posteriormente, quando entra em contato com o ecossistema cutâneo nos contatos íntimos da amamentação. Aqui surge mais uma pergunta: todas as mães são naturalmente boas doadores destes microorganismos? No caso de uma carregadora sadia de um patógeno, isso não seria problemático?

Variações podem ocorrer na cinética de implantação do ecossistema digestivo do recém-nascido em função de fatores que perturbam o fornecimento dos microorganismos pela mãe como o tipo de parto (natural ou cesariana) ou a necessidade de isolamento (CTI, prematuro mantido em estufa) 2.

Fatores próprios do hospedeiro certamente têm também uma influência fundamental na colonização, controle, composição e função da microbiota digestiva. A natureza e quantidade desses fatores endógenos dependem provavelmente de características genéticas, nutricionais, fisiológicas e psicológicas do hospedeiro, entre outras. Alguns componentes do colostro e do leite humano são conhecidos por oferecerem condições nutricionais favoráveis para a implantação de alguns grupos bacterianos de importância para a saúde do hospedeiro como as Bifidobacteria. Os fatores bifidi são uma família de oligossacarídeos presentes em quantidade elevada somente nas secreções lácteas humanas; pelas características de ligações das suas unidades; só podem ser utilizados pelas Bifidobacteria. Podem ser considerados, portanto, como fatores de crescimento que favorecem a implantação específica dessas bactérias no trato digestivo do recém-nascido humano. Uma vez instaladas, a baixa capacidade tamponante do leite humano permite também uma melhor atuação das bactérias produtoras de ácido láctico pelo abaixamento do pH intestinal desfavorável ao crescimento de vários microorganismos patogênicos. Se o colostro e o leite possuem propriedades estimulantes para a instalação como para a atuação de certos grupos bacterianos da microbiota normal digestiva, em compensação eles não são fontes desses microorganismos, já que essas secreções são (e devem ser) produzidas estéreis. Uma colonização microbiana pode ocorrer em níveis baixos no ato da secreção com fontes superficiais que provavelmente variam dependendo das condições higiênicas e do ecossistema cutâneo individuais.

Neste sentido, a resposta à pergunta contida no título do artigo apresentado por Novak et al. é a seguinte: o colostro e o leite humanos não podem ser fontes originalmente colonizadas por microorganismos com características probióticas. Em compensação, essas secreções são fontes de fatores de crescimento (fatores bifidi) e de condições físico-químicas que facilitam a instalação e a atuação, no trato digestivo do recém-nascido, de grupos bacterianos específicos (Bifidobacteria) da microbiota normal. O colostro e o leite humano são, portanto, mais fontes de prebióticos do que de probióticos, relembrando que os primeiros são definidos como substâncias que, quando ingeridas, estimulam especificamente um grupo de microorganismos do ecossistema digestivo de interesse para o hospedeiro. Os microorganismos encontrados no artigo citado acima têm, sem dúvida, a sua origem na superfície cutânea, como demonstrado também pelos níveis populacionais relativamente baixos. Aqui fica uma outra pergunta prática: seria possível intervir no nível cutâneo da mãe para modificar e oferecer populações microbianas de interesse para o recém-nascido?

Como podemos perceber pelo exposto acima, a transmissão e instalação da microbiota digestiva normal, tão importante para a saúde do hospedeiro, é ainda um assunto que suscita muitas perguntas e dúvidas. Percebemos também que este fenômeno é importante demais para o recém-nascido para que o seu desenvolvimento seja feito ao acaso, contando com alguns mecanismos naturais seletivos e a sorte. Podemos intervir e ajudar o recém-nascido? Teoricamente isso é, sem dúvida, possível (3), mas na prática precisamos ainda obter muitas informações sobre as leis que regem e otimizam as relações entre o hospedeiro humano e sua microbiota normal.

  • 1. Berg RD. The indigenous gastrointestinal microflora. Trends Microbiol 1996; 4: 430-5.
  • 2. Rolfe RD. Sequential development of the human intestinal microbial flora. In: Van der Waaij D, Heidt PJ, Rusch V, Gebbers, eds. Microbial ecology of the human digestive tract. Herborn, Germany: Institute for Microecology; 1990. p.48-60.
  • 3. Figueiredo PP, Vieira EC, Nicoli JR, Nardi RD, Raibaud P, Duval-Iflah, et al. Influence of oral inoculation with Escherichia coli EMO on the frequency of diarrhea during the first year of life in human newborns. J Pediat Gastroenterol Nutr. No prelo, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2001
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