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Perfil sérico da molécula de adesão intercelular-1 no pós-operatório cardíaco de lactentes submetidos à circulação extracorpórea

Intercellular adhesion molecule-1 serum profile in cardiac postoperative period of infants undergoing cardiopulmonary bypass

Resumos

Objetivos: mensurar os níveis séricos da molécula de adesão intercelular-1, solúvel em condições basais e após exposição ao circuito de circulação extracorpórea, em lactentes submetidos à cirurgia cardíaca para correção de defeitos cardíacos congênitos. Métodos: estudo de coorte contemporâneo envolvendo 21 lactentes submetidos à cirurgia cardíaca com uso de circulação extracorpórea. Foram medidos os níveis séricos da molécula de adesão intercelular-1, solúvel na indução anestésica, ao término e 8 e 26 horas após o término da circulação extracorpórea. As amostras foram dosadas através do método de ELISA. Resultados: as patologias cardíacas congênitas mais comuns foram defeito do septo atrioventricular e Tetralogia de Fallot. As médias de idade e de peso foram 6,6 meses e 5,8 quilos. As medianas dos tempos de circulação extracorpórea e de clampeamento da aorta foram, respectivamente, 87 e 53 minutos. Todos os lactentes utilizaram inotrópicos. As medianas dos tempos de intubação e de internação foram 72 horas e 21 dias. A taxa de mortalidade dos pacientes foi de 9,5%. Os níveis basais da molécula avaliada foram mais elevados do que aqueles considerados normais (p<0,0001). Seus níveis diminuíram significativamente ao término da circulação extracorpórea (p<0,001), voltando a aumentar significativamente 8 horas após o término desse período (p<0,005), sem, no entanto, alcançar os valores basais 26 horas depois. Conclusões: o nível sérico basal da molécula de adesão intercelular-1 solúvel é aumentado em lactentes com cardiopatias congênitas. Os níveis séricos desta molécula variam após exposição ao circuito de circulação extracorpórea, e apresentam um comportamento característico nesses pacientes.

Moléculas de adesão; circulação extracorpórea; cirurgia cardíaca; lactentes


Objective: to measure the intercellular adhesion molecule-1 serum levels at baseline and after cardiopulmonary bypass exposure in infants undergoing surgery of congenital heart disease. Methods: contemporary cohort study, which consisted of 21 infants undergoing cardiac surgery with cardiopulmonary bypass. The intercellular adhesion molecule-1 serum levels were measured at induction of anesthesia, at the end of cardiopulmonary bypass, and 8 hours and 26 hours after cardiopulmonary bypass. The samples were measured using ELISA. Results: atrioventricular septal defects and tetralogy of Fallot were the most common congenital cardiac pathologies. The age and weight mean values were 6.6 months and 5.8 Kg. The median values of cardiopulmonary bypass time and aortic cross-clamping time were 87 minutes and 53 minutes. All infants used inotropic drugs. The median values of intubation time and length of stay were 72 hours and 21 days. The patients’ mortality rate was 9.5%. The baseline levels of the molecule were higher than the normal values (P<0.0001). The levels of the molecule significantly decreased at the end of the cardiopulmonary bypass (P<0.001), significantly increasing 8 hours after that period (P<0.005), without reaching baseline values 26 hours after that. Conclusions: the soluble intercellular adhesion molecule-1 baseline serum level is higher than normal in infants presenting congenital cardiac defects. This molecule serum levels vary after cardiopulmonary bypass exposure, presenting a characteristic behavior in these patients.

Adhesion molecules; cardiopulmonary bypass; cardiac surgery; infants


Perfil sérico da molécula de adesão intercelular-1 no pós-operatório cardíaco de lactentes submetidos à circulação extracorpórea

Intercellular adhesion molecule-1 serum profile in cardiac postoperative period of infants undergoing cardiopulmonary bypass

Angela Hunsche 1 1 Angela Hunsche - Intensivista Pediátrica. Mestre em Pediatria pela UFRGS. , Silvana Molossi 2 2 Silvana Molossi - Professora Adjunta do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS. Chefe da UTI Pediátrica e do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre.

RESUMO ABSTRACT

Objetivos: mensurar os níveis séricos da molécula de adesão intercelular-1, solúvel em condições basais e após exposição ao circuito de circulação extracorpórea, em lactentes submetidos à cirurgia cardíaca para correção de defeitos cardíacos congênitos.

Métodos: estudo de coorte contemporâneo envolvendo 21 lactentes submetidos à cirurgia cardíaca com uso de circulação extracorpórea. Foram medidos os níveis séricos da molécula de adesão intercelular-1, solúvel na indução anestésica, ao término e 8 e 26 horas após o término da circulação extracorpórea. As amostras foram dosadas através do método de ELISA.

Resultados: as patologias cardíacas congênitas mais comuns foram defeito do septo atrioventricular e Tetralogia de Fallot. As médias de idade e de peso foram 6,6 meses e 5,8 quilos. As medianas dos tempos de circulação extracorpórea e de clampeamento da aorta foram, respectivamente, 87 e 53 minutos. Todos os lactentes utilizaram inotrópicos. As medianas dos tempos de intubação e de internação foram 72 horas e 21 dias. A taxa de mortalidade dos pacientes foi de 9,5%. Os níveis basais da molécula avaliada foram mais elevados do que aqueles considerados normais (p<0,0001). Seus níveis diminuíram significativamente ao término da circulação extracorpórea (p<0,001), voltando a aumentar significativamente 8 horas após o término desse período (p<0,005), sem, no entanto, alcançar os valores basais 26 horas depois.

Conclusões: o nível sérico basal da molécula de adesão intercelular-1 solúvel é aumentado em lactentes com cardiopatias congênitas. Os níveis séricos desta molécula variam após exposição ao circuito de circulação extracorpórea, e apresentam um comportamento característico nesses pacientes.

Moléculas de adesão, circulação extracorpórea, cirurgia cardíaca, lactentes.

Objective: to measure the intercellular adhesion molecule-1 serum levels at baseline and after cardiopulmonary bypass exposure in infants undergoing surgery of congenital heart disease.

Methods: contemporary cohort study, which consisted of 21 infants undergoing cardiac surgery with cardiopulmonary bypass. The intercellular adhesion molecule-1 serum levels were measured at induction of anesthesia, at the end of cardiopulmonary bypass, and 8 hours and 26 hours after cardiopulmonary bypass. The samples were measured using ELISA.

Results: atrioventricular septal defects and tetralogy of Fallot were the most common congenital cardiac pathologies. The age and weight mean values were 6.6 months and 5.8 Kg. The median values of cardiopulmonary bypass time and aortic cross-clamping time were 87 minutes and 53 minutes. All infants used inotropic drugs. The median values of intubation time and length of stay were 72 hours and 21 days. The patients’ mortality rate was 9.5%. The baseline levels of the molecule were higher than the normal values (P<0.0001). The levels of the molecule significantly decreased at the end of the cardiopulmonary bypass (P<0.001), significantly increasing 8 hours after that period (P<0.005), without reaching baseline values 26 hours after that.

Conclusions: the soluble intercellular adhesion molecule-1 baseline serum level is higher than normal in infants presenting congenital cardiac defects. This molecule serum levels vary after cardiopulmonary bypass exposure, presenting a characteristic behavior in these patients.

Adhesion molecules; cardiopulmonary bypass, cardiac surgery; infants.

  • Introdução

  • Métodos

  • Discussão

  • Referências bibliográficas

Introdução

Os defeitos cardíacos congênitos estão presentes em 0,8 a 1% das crianças nascidas vivas, sendo responsáveis por mais de 20% das mortes perinatais que resultam de malformações congênitas(1-3). Grande parte da população de crianças portadoras de defeitos cardíacos congênitos torna-se criticamente doente durante o primeiro ano de vida, e necessita tratamento cirúrgico. No entanto, durante cirurgias cardíacas, o miocárdio está exposto a muitos danos traumáticos e metabólicos, principalmente durante o período de circulação extracorpórea (CEC)(4). Está claramente estabelecido que, após grandes cirurgias cardíacas, ocorre uma resposta inflamatória importante desencadeada pela CEC(5), o que provoca disfunção de órgãos e tecidos(4,6-13).

Kirklin(14) sugeriu que os efeitos deletérios da CEC eram secundários à exposição do sangue às superfícies anormais da mesma, o que iniciava uma resposta inflamatória corporal generalizada, caracterizada pela ativação sangüínea de vários sistemas do organismo, implicados como mediadores deste processo. Tal cascata inflamatória pode contribuir para o desenvolvimento de falência respiratória, disfunção renal, distúrbios da coagulação, distúrbios neurológicos, alterações na função hepática, falência de múltiplos órgãos (FMO)(8) e febre de origem não infecciosa, tendo sido coletivamente denominadas de síndrome pós-perfusão(15).

Os neutrófilos são de extrema importância nesse processo inflamatório, assumindo um papel complexo que inclui o rolar ao longo do endotélio, a aderência ao endotélio e a migração transendotelial nos tecidos. Após a ligação às células endoteliais, os neutrófilos tornam-se ativados e liberam vários mediadores inflamatórios, que estão envolvidos no aumento da permeabilidade do endotélio. Os neutrófilos aderidos migram através do endotélio e contribuem para a inflamação dos órgãos. Esse processo é iniciado e mantido por interações dos leucócitos circulantes e por interações dos neutrófilos com o endotélio via moléculas de adesão específicas(16).

A molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1) é uma glicoproteína da superfamília imunoglobulina que participa na adesão dos neutrófilos às células endoteliais e na migração extravascular dos neutrófilos(17). É expressa na superfície de vários tipos celulares, incluindo leucócitos e células endoteliais(18). Formas solúveis desta molécula têm sido descritas em muitas situações clínicas e cirúrgicas, entre elas cirurgias cardíacas com uso de CEC, sendo seus níveis plasmáticos variáveis(15,16,19). Estudos realizados em crianças submetidas a cirurgias cardíacas com uso de CEC demonstraram diminuição da concentração de ICAM-1 solúvel durante CEC, com posterior aumento de seus níveis, sem, no entanto, alcançar os valores basais(16,20,21).

Há poucos dados na literatura relacionados ao comportamento da ICAM-1 solúvel após cirurgia cardíaca com uso de CEC em lactentes, sendo o significado da presença desta molécula no plasma ainda não completamente conhecido.

O presente estudo tem como objetivo mensurar os níveis séricos da molécula de adesão solúvel ICAM-1, em condições basais e após exposição ao circuito de CEC, em lactentes submetidos à cirurgia cardíaca para correção de defeitos cardíacos congênitos.

Métodos

O delineamento utilizado foi um estudo de coorte contemporâneo. A população recrutada para este estudo incluiu lactentes (com mais de 30 dias de vida e menos de um ano de idade) submetidos à cirurgia cardíaca para correção de cardiopatia congênita no Hospital São Francisco, do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, durante o período de junho de 1998 a março de 1999. Foram excluídos do estudo aqueles pacientes que apresentaram óbito transoperatório, reoperação na mesma internação, ou presença de causas preexistentes de dano vascular, como parada cardíaca recente, sepse, história de vasculite e/ou hipotensão severa recente.

A anestesia foi induzida com fentanil (10 g/kg), midazolam (100-200 g/kg) e pancurônio (0,08mg/kg), sendo a manutenção anestésica efetuada com estas mesmas medicações, em infusão contínua intravenosa. Cefazolina foi administrada durante a indução anestésica, na dose de 40mg/kg. Circulação extracorpórea convencional foi utilizada, com um episódio de clampeamento aórtico e uma única dose de cardioplegia. Após administração de heparina (5mg/kg), as crianças foram submetidas à CEC em uma taxa de fluxo de perfusão de 2,4 litros/m2/minuto com hipotermia moderada a profunda (28°C e 18°C, respectivamente). O clampeamento da aorta foi realizado seguido pela infusão de solução cardioplégica sangüínea fria. O equipamento de circulação extracorpórea consistiu de uma bomba roller não pulsátil, com um oxigenador de membrana Lucchese 0,25 ou 0,50 e um reservatório de cardiotomia venosa Braile. Durante a CEC, o hematócrito do paciente foi mantido entre 19 e 26%. Nitroprussiato de sódio foi infundido durante o período de resfriamento e interrompido no período de reaquecimento, quando a temperatura do paciente estava em 36°C. Durante e após a cirurgia, todos os pacientes receberam concentrado de hemáceas e cristalóides ou soluções colóides para suplementar o volume de sangue circulante. Quando os pacientes eram retirados do circuito de CEC, prontamente se iniciava uma solução de dopamina em infusão contínua (5 g/kg/minuto).

As amostras sangüíneas (volume=1ml) foram coletadas da via arterial de cada paciente e colocadas em frascos contendo etilenodiaminotetraacetato (EDTA). Imediatamente após a coleta, as amostras foram centrifugadas por 15 minutos a uma velocidade de 2000 rpm. O plasma foi pipetado, armazenado em duplicata e congelado a 20 C negativos para posterior análise. As amostras foram coletadas nos seguintes momentos: indução anestésica, término da CEC, 8 horas após término da CEC e 26 horas após término da CEC.

As amostras foram descongeladas simultaneamente. A dosagem sérica da ICAM-1 foi realizada através do método de ELISA em conjuntos produzidos para uso em pesquisa e comercializados pela R&D Systems (Minneapolis, MN, EUA). O valor esperado da ICAM-1 solúvel em indivíduos hígidos é 211 ng/ml (115 a 306 ng/ml - 2 desvios-padrão). A curva padrão e as análises das amostras foram executadas em duplicata para diminuir a variabilidade do método. Os valores plasmáticos das moléculas analisadas representam a média dos valores das duplicatas. A execução dos ensaios de ELISA foi realizada sob mascaramento. As curvas standard , usando moléculas recombinantes purificadas, revelaram sensibilidade consistente e rígida reprodutibilidade das duplicatas, bem como confiabilidade entre os kits utilizados para análise de ambas as moléculas. Todas as amostras de cada indivíduo foram dosadas no mesmo prato de 96 amostras. A sensibilidade da análise para ICAM-1 solúvel é menor que 0,35 ng/ml. Concentrações inferiores ao limite de detecção foram consideradas iguais ao nível mais baixo de detecção.

Os dados demográficos, história clínica e variáveis objetivas dos pacientes foram obtidos pré-operatoriamente. Informações adquiridas no transoperatório incluíram manejo da perfusão, tipo de anestésicos, inotrópicos, antibióticos e demais fármacos utilizados, bem como reparo cirúrgico realizado. Dados pós-operatórios, tais como período de intubação, uso de inotrópicos, medidas hemodinâmicas, evolução clínica e exames laboratoriais foram obtidos retrospectivamente, através da revisão dos prontuários médicos destes pacientes.

As informações foram armazenadas no programa Excel e analisadas no programa SPSS 8.0. As variáveis foram descritas sob a forma de médias e desvios-padrão para as variáveis contínuas com distribuição normal, ou com medianas e amplitude quando indicado. As variáveis categóricas foram descritas sob a forma de proporções. Para análise da evolução dos níveis séricos de ICAM-1 nos diferentes momentos, foi utilizada a análise de Friedman para amostras pareadas. Para comparação das médias obtidas no estudo com aqueles valores normais relatados na literatura, foi utilizado o teste t para uma amostra. Para comparação das médias entre dois grupos foi utilizado o teste t de Student ou o teste de Mann Whitney. As variáveis categóricas foram analisadas através da utilização dos testes do Qui-quadrado ou de Fischer. Coeficientes de correlação de Pearson foram calculados para avaliar a associação entre os níveis da molécula e outras variáveis contínuas, e de Spearman, para os tempos. Para todas as comparações foi considerado um alfa de 0,05.

O projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação do HCPA e pela Comissão de Ética e Pesquisa do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre. Os pais ou responsáveis legais pelos pacientes foram informados da finalidade do estudo e, após concordância verbal, assinaram o termo de consentimento informado.

Resultados

Foram selecionados 21 lactentes portadores de cardiopatias congênitas. Apenas um paciente com defeito do septo atrioventricular (DSAV) foi excluído do estudo por ter sido submetido à reoperação no período pós-operatório precoce. Nenhum paciente apresentou causas conhecidas de dano vascular preexistentes ou ocorrência de óbito no período transoperatório. A descrição das diferentes cardiopatias e suas freqüências estão listadas na Tabela 1. As características demográficas dos pacientes são apresentadas na Tabela 2.

A maioria dos pacientes foi submetida à cirurgia apresentando uma classificação de ASA maior que 3 e necessitou a utilização de três tipos diferentes de inotrópicos. As variáveis intra-operatórias e pós-operatórias encontram-se, respectivamente, nas Tabelas 3 e 4.

A complicação pós-operatória mais comum foi infecção, tendo sido identificada em 71,4% dos pacientes. Apenas um dos pacientes que apresentou insuficiência renal aguda no pós-operatório necessitou utilização de diálise peritoneal. Dos nove pacientes que apresentaram distúrbios do ritmo cardíaco, apenas um necessitou implantação de marca-passo definitivo. Dos três lactentes que apresentaram parada cardiorrespiratória, dois evoluíram para óbito pós-operatório. Destes, um era portador de Tetralogia de Fallot (TOF) e o outro de DSAV e síndrome de Down. As complicações pós-operatórias e a evolução clínica estão listadas nas Tabela 5 e 6, respectivamente.

O valor médio de ICAM-1 no momento da indução anestésica foi de 494,3 ng/ml, significativamente maior (p<0,0001) do que aquele considerado normal para pacientes adultos hígidos. Em relação aos valores basais, os níveis de ICAM-1 circulante diminuíram significativamente (p<0,001) ao término da CEC, voltando a aumentar significativamente (p<0,005) 8 horas após o término deste período, embora não alcançando os valores basais. Após 26 horas do encerramento da CEC, esta molécula continuou apresentando níveis significativamente diminuídos (p=0,005) em relação aos basais. Os níveis séricos da ICAM-1, conforme o período de tempo analisado, são apresentados na Tabela 7 e na Figura 1.


Discussão

O presente estudo é o único até o momento realizado exclusivamente com lactentes cardiopatas submetidos à cirurgia cardíaca com uso de CEC, nos quais foram mensurados os níveis de ICAM-1 solúvel antes e após tal período. Um dos seus aspectos mais importantes foi a identificação de níveis basais de ICAM-1 solúvel, nestes lactentes, maiores que aqueles verificados em adultos e em crianças cardiopatas previamente a cirurgias cardíacas com uso de CEC. No entanto, o perfil desta molécula de adesão após CEC foi semelhante àqueles anteriormente descritos em crianças nos estudos publicados na literatura.

Durante a última década, tem sido demonstrada a participação ativa do endotélio na homeostasia cardiovascular. Pesquisas extensas têm revelado que o endotélio exerce o papel principal na regulação da permeabilidade, do tônus, da coagulação, da fibrinólise e da inflamação. Essa regulação é alcançada através da expressão de proteínas de superfície derivadas do endotélio ou da secreção de fatores solúveis biologicamente ativos(22). As moléculas de adesão solúveis apresentam um papel estabelecido como mediadores importantes da resposta inflamatória em muitas situações clínicas e cirúrgicas, entre elas a exposição aos circuitos de CEC(9,10,19,23,24). Estudos têm demonstrado que essas moléculas sofrem modificações de diferentes proporções em suas concentrações séricas durante e após CEC(19).

Através do estudo realizado, buscou-se estabelecer os níveis basais da molécula de adesão solúvel ICAM-1e seu perfil de modificação em lactentes submetidos à cirurgia cardíaca com uso de CEC para correção de defeitos cardíacos congênitos. Outros estudos descritos na literatura analisaram o perfil das moléculas de adesão solúveis no pós-operatório cardíaco de crianças submetidas à CEC(16,20,21,25). No entanto, esses estudos foram realizados com crianças de faixas etárias variadas, não havendo nenhum que tenha incluído exclusivamente lactentes em suas populações.

Neste estudo, foram avaliados 21 lactentes portadores de cardiopatias congênitas, sendo DSAV e TOF as patologias cardíacas mais comuns. As médias de idade e de peso foram 6,6 meses e 5,8 quilos, respectivamente. Tárnok e colaboradores(21) realizaram um estudo incluindo 18 crianças cardiopatas submetidas à CEC, com média de idade de 6,8 anos, portadoras, na sua maioria, de comunicação interatrial (CIA) e de comunicação interventricular (CIV). Blume e colaboradores(20) analisaram 56 pacientes cardiopatas submetidos à cirurgia cardíaca com uso de CEC, com média de idade de 1 ano (variação de 2 dias de vida a 19 anos de idade), sendo CIV e TOF as patologias cardíacas congênitas mais comuns. No estudo de Boldt e colaboradores(16) foram avaliadas 15 crianças submetidas à CEC, com médias de idade de 1,8 anos (variação de 1 semana de vida a 5 anos de idade) e de peso de 9 quilos, tendo a maioria apresentado o diagnóstico de TOF.

O presente estudo, embora contendo um número relativamente pequeno de crianças, apresentou uma amostra mais homogênea, ao incluir somente lactentes em sua seleção, o que permitiu uma comparação mais adequada entre os pacientes. Em relação ao diagnóstico cardiológico, o estudo de Tárnok e colaboradores(21) incluiu pacientes portadores de cardiopatias menos graves, enquanto os demais foram comparáveis quanto a esta variável, apresentando pacientes com cardiopatias de maior complexidade terapêutica.

Todos os pacientes incluídos no estudo realizado apresentaram uma classificação de ASA maior que 3, caracterizando maior gravidade. As medianas dos tempos de CEC e de clampeamento de aorta foram, respectivamente, 87 minutos e 53 minutos e a temperatura média de resfriamento, 27°C. Todos os lactentes utilizaram inotrópicos no período pós-operatório, tendo sido utilizadas três drogas diferentes na maioria dos pacientes. A mediana do tempo de intubação foi de 72 horas, e a do tempo de internação foi de 21 dias. No estudo de Boldt e colaboradores(16) verificou-se que 66,7% dos pacientes necessitaram uso de drogas inotrópicas, e que a maioria dos pacientes foi extubada no primeiro pós-operatório. Comparando-se o estudo atual com os descritos na literatura, pode-se afirmar que pacientes que apresentaram diagnósticos cardiológicos semelhantes apresentaram tempos de CEC e de clampeamento de aorta também semelhantes(20) ou mais elevados(16), fato este diretamente dependente da habilidade cirúrgica específica de cada serviço e da complexidade dos achados morfológicos. Entretanto, aqueles pacientes portadores de CIV e CIA tiveram tempos de CEC e de clampeamento de aorta menores que os encontrados no presente estudo(21). O fato de a maioria dos pacientes do estudo atual ter necessitado de três drogas inotrópicas no período pós-operatório e de ter sido extubada mais tardiamente que os pacientes incluídos nos demais estudos sugere a maior gravidade do grupo avaliado neste estudo. O longo período de internação (mediana de 21 dias) corrobora tal inferência.

Houve dois óbitos pós-operatórios, conferindo uma taxa de mortalidade na população estudada de 9,5%. A complicação pós-operatória mais comum foi infecção, ocorrendo em 71,4% dos pacientes. Tárnok e colaboradores(21) encontraram uma taxa de infecção igual a 5,5% em seus pacientes, ou seja, 13 vezes menor que aquela identificada no presente estudo. Tal fato correlaciona-se, provavelmente, com a gravidade dos pacientes e com a efetividade das rotinas para o controle da infecção na unidade de terapia intensiva. A amostra populacional de tais autores incluiu portadores de CIA e CIV com uma média de idade mais elevada, o que provavelmente conferiu menor risco de infecção, por serem usualmente menos manipulados invasivamente tais pacientes no período perioperatório. Além disso, o número de portadores de síndrome de Down neste estudo possivelmente contribua para a elevação das taxas de infecção, visto terem estes pacientes deficiências imunológicas constitucionais próprias.

A forma solúvel da ICAM-1 tem sido identificada em várias situações patológicas, como sepse, câncer, FMO, insuficiência cardíaca e após transplantes cardíacos(26,27-30), estando o aumento de sua concentração relacionado a maior morbi-mortalidade em alguns estudos(27-29). Esta molécula é expressa após exposição aos circuitos de CEC(15,19,23), apresentando concentrações variáveis tanto em adultos como em crianças(15,20,21,23,31).

O presente estudo identificou um valor médio de ICAM-1 de 494,3 ng/ml durante a indução anestésica, correspondendo ao valor basal. Essa concentração foi significativamente mais elevada que aquela considerada normal para adultos submetidos à cirurgia cardíaca com uso de CEC(6,11,15,23,31). Boldt e colaboradores(16) definiram valores normais de ICAM-1 solúvel em crianças com menos de cinco anos, os quais variam de 185 a 295 ng/ml, com média em 245 ng/ml. Outro estudo identificou níveis basais de ICAM-1 solúveis iguais a 315 ± 71 ng/ml em crianças cardiopatas que seriam submetidas à CEC, e iguais a 297 ± 244 ng/ml em crianças cardiopatas que seriam submetidas à cirurgia cardíaca sem uso de CEC. Esses níveis não diferiram estatisticamente entre os grupos, e foram menores que os encontrados no presente estudo(21). No estudo de Blume e colaboradores(20), os pacientes apresentaram valores basais de ICAM-1 solúveis praticamente duas vezes menores que os identificados no estudo atual. A diferença entre os valores basais da ICAM-1 solúvel entre o presente estudo e os descritos previamente provavelmente relaciona-se às diferenças nas faixas etárias dos pacientes destes estudos e à gravidade dos mesmos. Os níveis médios da molécula ao término da CEC foram iguais a 353,8 ng/ml, significativamente menores que os basais, estando de acordo com o que já foi previamente descrito na literatura(16,20,21), sendo possivelmente resultado da hemodiluição durante o período de CEC(6,16,20) e do seqüestro das moléculas no próprio circuito de CEC(20). Posteriormente a este período, a ICAM-1 solúvel apresentou aumento significativo de seus níveis, alcançando valores médios de 427,6 ng/ml 8 horas após CEC, mantendo-se inalterados 26 horas após CEC (422,1 ng/ml), embora não alcançando os valores basais. Este comportamento da ICAM-1 solúvel após cirurgias cardíacas com CEC em crianças foi anteriormente descrito(16,20,21).

Sabidamente, a CEC estimula uma série de reações inflamatórias com liberação de mediadores que variam a sua curva de aparecimento na circulação sangüínea e tecidos. Neste cenário, a elevação dos níveis de ICAM-1 pode dever-se a este fato e a um estado ainda não balanceado pós-correção do defeito cardíaco, o que acontece após alguns dias de evolução.

O presente estudo descreveu o perfil sérico da molécula de adesão solúvel ICAM-1 em lactentes após cirurgia cardíaca com uso de CEC, realizada para correção de defeitos cardíacos congênitos. O comportamento desta molécula esteve de acordo com aquele apresentado pelos demais estudos realizados em crianças(16,20,21). Contudo, os valores basais da molécula de adesão foram mais elevados no estudo atual, quando comparados com a maioria dos estudos realizados em crianças e adultos submetidos a cirurgias cardíacas com uso de CEC(6,11,15,16,21,23,31). Inferimos, assim, que esta amostra incluiu crianças de maior gravidade e portadoras de defeitos cardíacos com repercussão clínica mais expressiva, embora não tenha havido associação entre as variações dos níveis de ICAM-1 com as variáveis perioperatórias e a evolução clínica.

A contribuição apresentada por este estudo foi descrever o comportamento da molécula de adesão solúvel ICAM-1, no primeiro ano de vida, em pacientes portadores de defeitos cardíacos congênitos submetidos à correção cirúrgica com CEC. Além disso, verificou-se a presença, baseados nos elevados níveis de tais moléculas previamente à cirurgia, de um constante estado inflamatório nestes lactentes, causado, provavelmente, pela doença cardíaca e suas conseqüentes alterações nas funções fisiológicas.

Sobe

Endereço para correspondência:

Dra. Angela Hunsche

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Sobe

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    Angela Hunsche - Intensivista Pediátrica. Mestre em Pediatria pela UFRGS.
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    Silvana Molossi - Professora Adjunta do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS. Chefe da UTI Pediátrica e do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2003
    • Data do Fascículo
      2002
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