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Defeitos do tubo neural e hidrocefalia congênita: Por que conhecer suas prevalências?

Neural tube defects and congenital hydrocephalus: Why is prevalence important?

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EDITORIAIS

Defeitos do tubo neural e hidrocefalia congênita. Por que conhecer suas prevalências?

Neural tube defects and congenital hydrocephalus. Why is prevalence important?

Eugênio GrilloI; Ronaldo José Melo da SilvaII

IServiço de Neurologia Hospital Infantil Joana de Gusmão e da Divisão de Pediatria, Hospital Universitário, UFSC, Florianópolis, SC

IIServiço de Neurologia Hospital Infantil Joana de Gusmão e Professor Adjunto do Departamento de Pediatria da UFSC, Florianópolis, SC

Entre as anomalias congênitas do sistema nervoso central, os defeitos do tubo neural (DTN) e as hidrocefalias, mesmo que não associadas aos DTN, são as mais freqüentes1. A prevalência destas duas condições é muito alta, e constituem causas importantes de morbimortalidade. As crianças com DTN podem apresentar paraplegia, bexiga neurogênica, infecções urinárias, insuficiência renal, hidrocefalia e cifoescoliose, apenas para citar as manifestações mais graves ou freqüentes. As conseqüências das hidrocefalias congênitas não associadas aos DTN são variáveis, dependem diretamente da doença que as gerou e do momento de sua instalação no feto, mas não são menos importantes. Seus portadores têm uma qualidade de vida comprometida por múltiplas complicações e incapacidades, gerando evidentes repercussões a suas famílias e custos elevados para toda a sociedade2.

Este número do Jornal de Pediatra traz dois artigos originais sobre a prevalência destas duas condições, os DTN3 e as hidrocefalias não associadas aos DTN4. Ambos estudos foram realizados em centros hospitalares vinculados ao Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC), programa de investigação clínica e epidemiológica das anomalias congênitas, existente desde 1967, envolvendo 173 hospitais, muitos dos quais no Brasil5. Por utilizarem dados de uma base hospitalar, de centros de referência, os estudos mostraram taxas de prevalência elevadas, que não refletem as taxas em nascimentos não selecionados.

A prevalência dos DTN varia em diferentes épocas e regiões. Ela é muito é baixa na Finlândia (0,4:1.000 nascimentos), alta no México (3,3:1.000) e muito alta no sul do País de Gales (até 12,5:1.000)6 . Nos Estados Unidos, situa-se em torno de 1:1.0007. Essas freqüências são subestimadas quando se considera que muitas gestações são naturalmente ou deliberadamente interrompidas. São escassas as publicações no Brasil sobre a prevalência dos DTN. Os dados disponíveis mostram taxas que variam de 0,83:1.000 a 1,87:1.0008 . No período de 1967 a 1995, a prevalência observada pelo ECLAMC, sobre 4 milhões de nascimentos na América Latina, foi de 1,5:1.0005 . Prevalências altas em centros de referência refletem os progressos na ultra-sonografia obstétrica, a maior facilidade de acesso a ela, e a disponibilidade de equipes que tratarão estas anomalias e suas conseqüências. O diagnóstico pré-natal das malformações que potencialmente possam afetar a qualidade da vida tem e terá cada vez mais desdobramentos éticos e médico-legais no que se refere a tratamentos intra-útero e à interrupção de gestações.

Os estudos de prevalência têm enorme importância prática nas políticas, visando à prevenção das anomalias congênitas. É importante conhecer as taxas antes e depois da implementação das medidas de prevenção7. Para as hidrocefalias congênitas não associadas aos DTN, secundárias a uma diversidade de doenças, a prevenção depende muito da etiologia de cada uma delas. Já os DTN podem ter sua prevalência drasticamente diminuída se as mulheres sem antecedente de gestação afetada por DTN consumirem 0,4 mg/dia de ácido fólico no período periconcepcional9. Para as mulheres com antecedente de gestação afetada por DTN, diabéticas, epilépticas em uso de ácido valpróico ou carbamazepina, a dose recomendada é de 4 mg/dia9. A exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos9-11 e no Chile5 , onde leis exigem que alguns alimentos sejam enriquecidos com ácido fólico, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em 5 de dezembro de 2002, consolidou a consulta pública nº 51/02, que determina a adição de ácido fólico às farinhas de trigo e de milho no Brasil, fixando o prazo de 18 meses para as empresas produtoras destes alimentos se adequarem à legislação12. O regulamento técnico da ANVISA determina que cada 100g destas farinhas contenham 150 mcg de ácido fólico, pouco mais que a concentração determinada pelo Food and Drug Administration (FDA), de 140mcg/100g. Entretanto, as evidências disponíveis indicam que as mulheres em idade reprodutiva deveriam receber 400 mcg/dia, o que dificilmente seria alcançado com a adição de ácido fólico na quantidade prevista10. Nos Estados Unidos, as concentrações exigidas pelo FDA levam a mulher norte-americana a consumir 100mcg/dia, apenas um quarto do recomendado para a prevenção dos DTN10. No Chile, as concentrações são maiores, 220mcg/100g, mas apenas a farinha de trigo é enriquecida5. Organizações norte-americanas, como a American Academy of Pediatrics e o Center of Diseases Control, têm recomendado que a concentração necessária seria de 350 mcg/100g9,11. Seria também importante considerar o hábito alimentar das mulheres brasileiras para se estabelecer a concentração mais adequada. A adição de ácido fólico aos alimentos é uma medida inquestionável na prevenção primária dos DTN, assim como as vacinas previnem uma série de doenças infecciosas10. Sua adoção ainda tardará 18 meses a contar da data da publicação do regulamento. Enquanto se aguarda a adequação da indústria para a fortificação de seus produtos e, mesmo após, outras medidas precisariam ser tomadas: (1) providenciar que os DTN sejam incluídos na lista de doenças de notificação compulsória, com o objetivo de se determinar sua prevalência atual nas diferentes regiões do país e compará-la com a prevalência posterior à adoção do regulamento técnico, objetivando eventuais correções; (2) desencadear uma campanha educativa populacional sobre a importância do ácido fólico na prevenção dos DTN, recomendando que as mulheres em idade fértil o consumam na dose 0,4 mg/dia sob a forma de suplementação vitamínica e, para tanto, a indústria farmacêutica deveria ser estimulada a produzir ácido fólico nesta concentração, ainda não disponível no Brasil; e (3) a dose recomendada para mulheres com gestação anterior afetada por DTN é 10 vezes maior, ou seja, 4 mg/dia. Esta dose não será alcançada pela adição do ácido fólico às farinhas, e seria necessária suplementação sob a forma de comprimidos.

As crianças afetadas por DTN, suas famílias e os profissionais envolvidos no seu atendimento são os que sentem a real magnitude deste problema. É responsabilidade destes profissionais e das sociedades que os representam divulgar junto à população a importância da suplementação de ácido fólico para mulheres em idade fértil, e recomendar às autoridades da saúde que se ampliem as medidas que, ainda que tardias, começam a ser implantadas. À luz dos conhecimentos atuais, os DTN devem ser encarados como uma "epidemia" passível de prevenção10.

Referências bibliográficas

1. Pinar H, Tatevosyants N, Singer DB. Central nervous system malformations in a perinatal/neonatal autopsy series. Pediatr Dev Pathol 1998;1:42-8.

2. Iqbal MM. Prevention of neural tube defects by periconceptional use of folic acid. Pediatr Rev 2000;21:58-66.

3. Aguiar MJB, Campos AS, Aguiar RALP, Lana AMA, Magalhães RL, Babeto LT. Defeitos de fechamento do tubo neural e fatores associados em recém-nascidos vivos e natimortos. J Pediatr (Rio J) 2003;79:129-34.

4. Cavalcanti DP, Salomão MA. Incidência de hidrocefalia congênita e o papel do diagnóstico pré-natal. J Pediatr (Rio J) 2003;79:135-40.

5. Nazer HJ, Lopez-Camelo J, Castilla E. ECLAMC: Estudio de 30 años de vigilancia epidemiológica de defectos de tubo neural en Chile y en Latinoamérica. Rev Med Chile 2001;129:531-9.

6. Dolk H, De Wals P, Gillerot Y, Lechat MF, Ayme S, Cornel M, et al. Heterogeneity of neural tube defects in Europe: the significance of site of defect and presence of other major anomalies in relation to geographic differences in prevalence. Teratology 1991;44:547-59.

7. Stevenson RE, Allen HP, Pai GS, Best R, Seaver LH, Dean J, et al. Decline in prevalence of neural tube defects in a high-risk region of the United States. Pediatrics 2000;106:677-83.

8. Ogata AJN, Camano L, Brunoni D. Perinatal factors associated with neural tube defects (anencephaly, spina bifida and encephalocele). Rev Paul Med 1992;147-51.

9. American Academy of Pediatrics. Committee on Genetics. Folic acid for the prevention of neural tube defects. Pediatrics 1999;104:325-7.

10. Brent RL, Oakley GP, Mattison DR. The unnecessary epidemic of folic acid-preventable spina bifida and anencephaly. Pediatrics 2000;106:825-7.

11. Centers for Disease Control and Prevention. Neural tube defect surveillance and folic acid intervention - Texas-Mexico border 1993-1998. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2000;49:1-4.

12. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Consulta Pública n.º 51, de 10 de junho de 2002. Diário Oficial de 12/06/2002. Disponível em: URL: http://www.anvisa.gov.br/consulta/2002/51_2002.htm. Acessado 24 de março de 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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