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Doença celíaca: repercussões na mineralização óssea

Celiac disease: effects on bone mineralization

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EDITORIAL

Doença celíaca: repercussões na mineralização óssea

Celiac disease: effects on bone mineralization

Giselia Alves Pontes da Silva

Professora-adjunta de Pediatria, Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Pediatria, EPM/UNIFESP

Até recentemente, a doença celíaca (DC) era considerada rara; acreditava-se que ela afetava sobretudo as crianças, e que se manifestava clinicamente de forma exuberante e característica. Com o surgimento dos testes sorológicos específicos a partir de 1980, tornou-se possível a investigação de um maior número de pessoas através de screening populacional, sendo identificado um grande número de portadores de DC nas diversas faixas etárias. As formas clássicas, consideradas estágios avançados de doença, são cada vez mais raras, e a maioria dos indivíduos portadores de DC apresentam poucos sintomas, sutis e inespecíficos, o que requer do médico conhecimento e perspicácia para pensar no diagnóstico1.

Os indivíduos portadores de DC, não diagnosticados ou negligenciados, apresentam um maior risco de morbiletalidade a médio ou longo prazo2. Nos últimos anos, tem sido chamada a atenção para o fato de que a DC predispõe a anormalidades ósseas e a alterações no metabolismo do cálcio, resultando em osteomalácia, osteoporose e raquitismo2-4. A patogênese da osteopenia não é completamente esclarecida, mas o desenvolvimento de hipocalcemia (por má absorção de cálcio) é provavelmente o evento central que poderá levar a outros distúrbios, particularmente aos níveis elevados de paratormônio e reabsorção óssea2.

Carvalho et al.5, em interessante artigo nesse número do Jornal de Pediatria, mostram uma redução na densidade mineral óssea em um grupo de adolescentes com diagnóstico de doença celíaca e em dieta isenta de glúten, a pelo menos um ano. Chama a atenção o fato de o diagnóstico ter sido realizado após os dois anos na maioria dos pacientes estudados, o que desperta a curiosidade para saber a forma de apresentação clínica desses pacientes e o tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico, a fim de se ter um melhor entendimento das repercussões da doença nas funções digestivo-absortivas. O fato do grupo de adolescentes celíacos apresentar uma diferença importante na média da estatura em relação aos adolescentes do grupo controle sugere um agravo nutricional crônico, uma vez que o grupo de estudo foi semelhante em relação ao estadiamento puberal. Talvez a alteração observada em relação à densidade mineral óssea esteja associada a um retardo do diagnóstico, e, conseqüentemente, do início do tratamento. Portanto, nesse grupo de pacientes, é de grande importância que seja assegurada a adesão à dieta isenta de glúten, objetivando minimizar as alterações ósseas. Nas crianças não foram observadas diferenças em relação a esse parâmetro, mas é importante lembrar que o tamanho amostral não foi estimado para essa faixa etária, o que torna o resultado não conclusivo, uma vez que a amostra foi pequena.

Walters et al.6 observaram osteopenia em pacientes que não seguiam a dieta de isenção de glúten e naqueles com pouco tempo de tratamento, mas observaram densidade óssea normal naqueles que aderiam à dieta há pelo menos três anos.

A importância do estudo de Carvalho et al.5 reside no fato de chamar a atenção para a necessidade do diagnóstico precoce, assim como para a instituição da dieta isenta de glúten, com o objetivo de reduzir a morbidade da doença, especialmente quanto ao comprometimento da massa óssea. Considerando que a massa óssea é definida antes dos 20 anos, a identificação precoce de possíveis portadores de doença celíaca é de fundamental importância. Szathmári et al.3 não observaram diferença entre a densidade mineral óssea em um grupo de crianças e adolescentes celíacos em dieta isenta de glúten há mais de três anos, embora tenham observado repercussão no tamanho dos ossos.

Esses dados, somados a outras evidências, embasam a necessidade de se implementar em curto prazo uma triagem em nível populacional objetivando a identificação precoce da doença, pois assim reduziria a chance dos portadores de DC apresentarem morbidade residual. Por outro lado, a adesão à dieta é, à luz do conhecimento atual, a medida mais importante para assegurar mineralização óssea normal a crianças e adolescentes celíacos.

Quando o diagnóstico da doença celíaca é feito em adultos, a adesão à dieta não garante a normalização da densidade mineral óssea, portanto essa seria uma população de risco para a ocorrência de fraturas. Recentemente, Thomason et al.7 estudaram 244 pacientes que tiveram o diagnóstico de DC na vida adulta e compararam a ocorrência de fraturas com 161 controles, e não observaram diferenças entre os dois grupos. Di Stefano et al.8 chamam a atenção para co-variáveis que precisam ser analisadas, quando se estuda a associação entre DC e osteopenia/osteoporose em adultos, tais como sexo, atividade física, exposição ao sol, hábito de fumar e gravidade da doença. É certo que estudos de seguimento com pacientes nas diversas formas de apresentação clínica da doença, e que levem em consideração o tempo da doença antes do diagnóstico e se há adesão à dieta, irão trazer maiores subsídios para o entendimento do problema.

A indicação de dieta sem glúten por toda vida para os portadores da DC é um consenso internacional, embora nas formas ditas assintomáticas, seja, por vezes, questionada. Como as alterações histológicas do intestino delgado podem ser as mesmas daqueles com sintomas, assume-se que mesmo os indivíduos assintomáticos correm riscos em longo prazo, e devem ser colocados em dieta isenta de glúten9. Os pacientes portadores das formas silenciosas ou com sintomatologia discreta estão possivelmente sujeitos a um maior risco de agravos à saúde, devido à dificuldade do diagnóstico e ao retardo na introdução da dieta.

  • 1. Brandt KG, Silva GAP. Doença celíaca. In: Ferreira CT, Carvalho E, Silva LR, editores. Gastroenterologia e Hepatologia em Pediatria. Diagnóstico e Tratamento. Rio de Janeiro: MEDSI; 2003. p. 161-74.
  • 2. Farrell RJ, Kelly CP. Celiac sprue. N Engl J Med 2002;346:180-8.
  • 3. Szathmári M, Tulassay T, Arató A, Bodánszky H, Szabó A, Tulassay Z. Bone mineral content and density in asymptomatic children with coeliac disease on a gluten-free diet. Eur J Gastroenterol Hepatol 2001;13:419-24.
  • 4. Kalayci AG, Kansu A, Girgin N, Kucuk O, Aras G. Bone mineral density and importance of a gluten-free diet in patients with celiac disease in childhood. Pediatrics [periódico online] 2001;108:89. Disponível: http://pediatrics.aappublications.org/cgi/content/full/108/5/e89 Acessado: 18 de julho de 2003.
  • 5. Carvalho CN, Sdepanian VL, Morais MB, Fagundes-Neto U. Doença celíaca em tratamento: avaliação da densidade mineral óssea. J Pediatr (Rio J) 2003;79:303-8.
  • 6. Walters JR, Banks LM, Butcher GP, Fowler CR. Detection of low bone mineral density by dual energy x ray absorptiometry in unsuspected suboptimally treated coeliac disease. Gut 1995;37:220-4.
  • 7. Thomason K, West J, Logan RF, Coupland C, Holmes GK. Fracture experience of patients with coeliac disease: a population based survey. Gut 2003;52:518-22.
  • 8. Di Stefano M, Veneto G, Corrao G, Corazza GR. Role of lifestyle factors in the pathogenesis of osteopenia in adult coeliac disease: a multivariate analysis. Eur J Gastroenterol Hepatol 2000;12:1195-9.
  • 9. Hill ID, Bhatnagar S, Cameron DJ, De Rosa S, Maki M, Russell GJ, et al. Celiac Disease: Working Group Report of the First World Congress of Pediatric Gastroenterolgy, Hepatology, and Nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002;35 Suppl 2:78-88.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Ago 2003
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