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Cartas Ao Editor

CARTAS AO EDITOR

Os diversos espectros da alergia ao leite de vaca

Gustavo F. Wandalsen; Renata R. Cocco; Dirceu Solé

Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia, Departamento de Pediatria, Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina

Prezado Editor,

A alergia ao leite de vaca (ALV) continua sendo um grande desafio na prática pediátrica. Estima-se que afete cerca de 2,5% das crianças menores de três anos de idade, sendo responsável por uma vasta variedade de sintomas1. Machado et al. publicaram recentemente o relato de duas crianças que apresentaram gastrite hemorrágica por ALV2. O relato é importante por ressaltar a ocorrência rara, porém grave, de hemorragia digestiva alta em crianças com ALV. Algumas considerações, entretanto, devem ser feitas.

A ALV, como todas as alergias alimentares, é classicamente dividida em mediadas por IgE, não mediadas por IgE e mistas3. Essa classificação é importante pelas diferenças existentes em suas manifestações clínicas e laboratoriais, assim como nas medidas dietéticas necessárias para seu manejo.

Na Tabela 1 estão resumidas as principais características de cada tipo de manifestação de ALV. Como podemos observar, as reações mediadas por IgE, apesar de serem responsáveis por cerca de 60% das ALV, são menos comuns entre as crianças com manifestações gastrintestinais4.

O desencadeamento duplo-cego controlado com placebo (DBPCFC) é considerado como padrão-ouro no diagnóstico da ALV, independentemente do tipo de mecanismo imunológico envolvido5. Os exames laboratoriais são de pouca utilidade nos casos de ALV não mediada por IgE, mas muito úteis nas alergias mediadas por IgE. Nestes, a pesquisa de IgE específica deve ser sempre realizada4,5. Os testes cutâneos podem estar até diminuídos em crianças com menos de dois anos, mas são usualmente positivos, enquanto que o RAST não apresenta tal limitação5,6. Esses testes indicam uma possível associação entre o leite de vaca e os sintomas apresentados, mas não devem ser empregados como diagnósticos na ALV, pois apresentam baixo valor preditivo positivo (inferior a 50%). Por outro lado, testes negativos praticamente afastam a possibilidade de ALV mediada por IgE, com valor preditivo negativo próximo a 95%5. Mais recentemente, alguns autores demonstraram haver boa correlação entre os níveis de anticorpos da classe IgE ao leite de vaca (CAP FEIA) e a presença de alergia sintomática ao leite de vaca, mediada por IgE4. Garcia-Ara et al. demonstraram níveis de anticorpos IgE séricos em crianças com menos de um ano de idade. Tais valores apresentavam valor preditivo positivo de 95% no diagnóstico de ALV, quando comparados com o DBPCFC, considerado padrão-ouro6.

Nos dois casos apresentados no artigo de Machado et al., a reintrodução do leite de vaca foi realizada aos dois anos de idade com sucesso2. Esse padrão é tipicamente observado nas ALV não mediadas por IgE. A tolerância ao leite de vaca, nos casos mediados por IgE, pode aparecer mais tardiamente ou até persistir por vários anos1.

O diagnóstico de ALV em uma criança implica, obrigatoriamente, a necessidade de implementação de dieta de exclusão. Essa medida acarreta um elevado custo à família, com risco de prejuízo no ganho pôndero-estatural. Em crianças com reações não mediadas por IgE, é alta a presença concomitante de alergia à proteína dos leites de vaca e de soja; porém, estudos com desencadeamento duplo-cego controlado com placebo documentaram que a prevalência em crianças com reações mediadas por IgE é inferior a 15%7,8. Dessa forma, as fórmulas a base de soja devem ser consideradas como de primeira escolha nestas condições.

Referências bibliográficas

1. Host A, Halken S. A prospective study of cow milk allergy in Danish infants during the first 3 years of life. Clinical course in relation to clinical and immunological type of hypersensitivity reaction. Allergy. 1990;45:587-96.

2. Machado RS, Kawakami E, Goshima S, Patrício F, Fagundes Neto U. Gastrite hemorrágica por alergia ao leite de vaca. J Pediatr (Rio J). 2003;79:369-72.

3. Sampson HA, Anderson JA. Summary and recommendations: classification of gastrointestinal manifestations due to immunologic reactions to foods in infants and young children. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2000;30 Suppl:S87-94.

4. Sampson HA. Utility of food-specific IgE concentrations in predicting symptomatic food allergy. J Allergy Clin Immunol. 2001;107:891-6.

5. Sampson HA. Food allergy: diagnosis and management. J Allergy Clin Immunol. 1999;103:981-9.

6. Garcia-Ara C, Boyano-Martinez T, Diaz-Pena JM, Martin-Munoz F, Reche-Frutos M, Martin-Esteban M.. Specific IgE levels in the diagnostic of immediate hypersensitivity to cow's milk protein in the infant. J Allergy Clin Immunol. 2001;107:185-90.

7. Zeiger RS, Sampson HA, Bock A, Burks W Jr., Harden K, Noone S, et al. Soy allergy in infants and children with IgE-associated cow's milk allergy. J Pediatr. 1999;134:614-22.

8. Bock SA, Atkins FM. Patterns of food hypersensitivity during sixteen years of double-blind, placebo-controlled food challenges. J Pediatr. 1990;4:561-7.

Resposta dos autores

Rodrigo S. Machado; Elisabete Kawakami; Soraya Goshima; Francy R. S. Patrício; Ulysses Fagundes Neto

Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica, Departamento de Pediatria, Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina

Prezado Editor,

Agradecemos as considerações de Wandalsen et al. ao relato de caso "Gastrite hemorrágica por alergia ao leite de vaca", publicado nesta revista1 e que objetivou apresentar a gastrite associada à alergia ao leite de vaca como causa de hemorragia digestiva alta em lactentes. As observações contribuem com a discussão ao aprofundar a revisão sobre alergia alimentar no que tange ao mecanismo imunológico associado ao quadro clínico.

Conforme comentado, o quadro clínico dos pacientes relatados foi muito sugestivo de alergia não-dependente de IgE, mecanismo responsável pela maior parte das alergias alimentares com manifestações digestivas. Nesse tipo de alergia não-dependente de IgE, a primeira escolha quanto à fórmula infantil é realmente a proteína extensivamente hidrolisada2,3. Infelizmente, o alto custo do manejo desses pacientes pode inviabilizar essa opção em determinadas circunstâncias, especialmente em nosso meio. Ao contrário, a fórmula de soja pode ser usada como opção inicial em pacientes com alergia dependente de IgE na vigência de sintomas sugestivos de reação reagínica imediata, presença de anticorpos IgE específicos contra proteínas do leite de vaca e ausência de anticorpos IgE específicos contra proteínas da soja3. Nas situações em que a soja for empregada, o paciente deve ser cuidadosamente monitorado e sua melhora documentada em duas a quatro semanas3. A opção deve ser revista com freqüência. Cabe ressaltar que o aleitamento materno por pelo menos quatro a seis meses apresenta papel de destaque na prevenção da alergia alimentar em lactentes2-4.

Referências bibliográficas

1. Machado RS, Kawakami E, Goshima S, Patrício F, Fagundes Neto U. Gastrite hemorrágica por alergia ao leite de vaca. J Pediatr (Rio J). 2003;79:369-72.

2. Hust A, Koletzko B, Dreborg S, Muraro A, Wahn U, Aggett P, et al. Joint Statement of the European Society for Paediatric Allergology and Clinical Immunology (ESPACI) Committee on Hypoallergenic Formulas and the European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) Committee on Nutrition. Dietary products used in infants for treatment and prevention of food allergy. Arch Dis Child. 1999;81:80-4.

3. American Academy of Pediatrics, Committee on Nutrition. Hypoallergenic infant formulas. Pediatrics. 2000;106:346-9.

4. Zeiger RS. Food allergen avoidance in the prevention of food allergy in infants and children. Pediatrics. 2003;111:1662-71.

Amamentação – repensando as dificuldades

Jayme Murahovschi

Presidente do Centro de Lactação de Santos, Hospital Guilherme Álvaro, Faculdade de Ciências Médicas de Santos/Centro Universitário Lusíadas (Unilus). Presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da SBP

Ao editor do Jornal de Pediatria,

O Jornal de Pediatria foi feliz em publicar recentemente duas pesquisas e um editorial, todos de elevado nível, sobre as dificuldades da amamentação e a sua conseqüência – o desmame precoce. Carvalhaes e Corrêa procuraram detectar as dificuldades encontradas nas primeiras horas e dias do aleitamento, dificuldades essas que podem, inclusive, inviabilizá-lo1.

Em editorial, Sonia Venancio – ela mesma com um histórico de implantação de práticas assistenciais saudáveis nas maternidades – insiste que a alta freqüência de mulheres com problemas no início da amamentação pode estar associada a práticas hospitalares inadequadas e até mesmo prejudiciais2.

A pesquisa de Ramos e Almeida3 tem uma abordagem totalmente diferente – trata-se de uma pesquisa qualitativa em saúde, que faz uma análise compreensiva das alegações das mães para o desmame precoce, verificando que a tomada da decisão é complexa e carregada de culpa, revelando a solidão/isolamento da mulher-mãe e sua necessidade desesperada de apoio.

Quanto às soluções apresentadas, Venancio2 espera a sensibilização de gestores e profissionais de saúde para a ampliação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança em nosso meio. Carvalhaes e Corrêa1 recomendam a avaliação da freqüência de comportamentos desfavoráveis à amamentação através da adoção rotineira de um protocolo difundido pela Unicef e baseado na observação do binômio mãe-recém-nascido durante a mamada. Escores ruins (desfavoráveis) constituem um sinal de alarme para o desmame imediato e poderiam aconselhar o prolongamento da internação na maternidade ou indicar intervenções de apoio em domicílio. Por sua vez, Ramos e Almeida3 refletem a necessidade de reformulação do modelo assistencial atual, no sentido de substituir a simples promoção e repasse de informações por novos valores culturais que considerem a amamentação como um ato que precisa ser aprendido pela mãe e protegido pela sociedade. Evidentemente, todos têm sua parcela de razão, e as soluções apresentadas não conflitam, mas, antes, se completam.

Para trazer mais clareza ao debate é preciso lembrar que o apoio à amamentação se dá em duas etapas distintas. A primeira, e talvez mais importante, abrange as duas primeiras semanas de vida, o período mais vulnerável da amamentação. É nesse período que a decisão prévia da mãe de amamentar vai ser posta a prova, podendo ocorrer até mesmo a reversão da atitude da mãe que não pensava em amamentar. Amamentação inicial prazerosa e eficiente é o caminho para o estabelecimento do aleitamento materno; o contrário leva ao fracasso, mesmo em mães inicialmente dispostas a amamentar.

O que se pode fazer? O básico é corrigir as clássicas práticas assistenciais nas maternidades, prejudiciais ao aleitamento materno. Embora ainda não tenhamos atingido o ideal, já houve uma melhora substancial. É preciso atentar para o fato de que a oferta intempestiva de soro glicosado e de mamadeira possa ser não a causa, mas antes uma conseqüência das dificuldades da amamentação. Urge detectar precocemente essa dificuldade. Nesse sentido, é fundamental a observação das primeiras mamadas, guiada por um protocolo tipo formulário da Unicef, eventualmente modificado com contribuições como a de Tereza Sanches4, fonoaudióloga do Centro de Lactação de Santos (Hospital Guilherme Álvaro, Faculdade de Ciências Médicas de Santos), e que deveria fazer parte obrigatória do prontuário de todas as maternidades. O objetivo é primeiro conscientizar a equipe que atende o binômio mãe-recém-nascido e, depois, selecionar os casos que necessitam de ações intensivas de apoio ao início do aleitamento2.

Todos os profissionais de saúde envolvidos precisam substituir sua posição apenas de simpatia (ou, eventualmente, até de falta de consideração), possivelmente fruto de sua ignorância, por uma verdadeira empatia (sintonia, sentir o que o outro está sentindo). Isso, no entanto, implica transformar o simples repasse de informações num processo real de aprendizado, o que demanda apoio, estímulo e orientação técnica para evitar ou corrigir o inimigo número um do início da amamentação – a mamada ineficiente ("o bebê que não sabe mamar")5.

Para adequar as equipes de saúde da maternidade no manejo básico da amamentação, existe um curso, de 18 horas, Manejo e promoção do aleitamento materno (Unicef/OMS), o qual deveria se tornar também obrigatório, sem prejuízo da formação de grupos de elite no manejo da amamentação, que funcionariam nas maternidades tal como os grupos de prevenção de infecção hospitalar.

Um seguimento atento dos casos de risco deveria incluir a remarcação do dia da alta na maternidade, a marcação de retorno próximo, a visita domiciliar, o encaminhamento protocolado para unidades ambulatoriais de saúde "amigas da criança" (com peritos em aleitamento materno), a doutrinação da família e da comunidade. Neste ponto, a mídia deve mais uma vez ser acionada. Ela conseguiu a proeza de fixar na mente do público a necessidade dos seis meses de amamentação, mas, paradoxalmente, alimentou o conceito errado de que seis meses são suficientes.

A estratégia aqui delineada deveria ser a nova etapa do programa permanente de promoção do aleitamento materno. Não basta mais questionar os conceitos de "leite fraco" e "leite pouco". Existe leite fraco? Existe leite pouco? É lógico que existe. A sabedoria popular está sempre certa, pois se baseia em observações empíricas; o que pode estar errado é a interpretação (mas isso acontece também com os mais doutos pesquisadores). Quando o bebê mama errado, não consegue extrair leite suficiente ("leite pouco") e não chega a receber o leite mais calórico do fim ("leite fraco"). Isso pode levar o "bebê chorão" ou "bebê dorminhoco" à desnutrição, à desidratação e ao aumento da icterícia, erradamente dita "icterícia precoce do leite materno", quando, na realidade, é a icterícia por ingestão insuficiente de leite materno.

Vencida uma difícil etapa de promoção do aleitamento materno, é hora de entrar fundo na nova fase de considerar a amamentação como um ato que precisa ser aprendido pela mulher-mãe (com a ampliação da Iniciativa Hospital Amigo da Criança e treinamento dos respectivos profissionais de saúde) e protegido pela sociedade3.

Referências bibliográficas

1. Carvalhaes MA, Corrêa CRH. Identificação de dificuldades no início do aleitamento materno mediante aplicação de protocolo. J Pediatr (Rio J). 2003;79:13-20.

2. Venancio SI. Dificuldades para o estabelecimento da amamentação: o papel das práticas assistenciais das maternidades. J Pediatr (Rio J). 2003;79:1-2.

3. Ramos CV, Almeida JAG. Alegações maternas para o desmame: estudo qualitativo. J Pediatr (Rio J). 2003;79:385-90.

4. Sanches MTC. Dificuldades iniciais na amamentação: enfoque fonoaudiológico [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2000. 173p.

5. Division of diarrheal and acute respiratory disease control. "Not enough milk". WHC 1996; n. 21, March.

Resposta da autora

Sonia I. Venancio

Pediatra, Doutora em Saúde Pública, Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES/SP). Docente do curso de Aconselhamento em Amamentação (OMS/Unicef) e do curso para Gestores sobre a Iniciativa Hospital Amigo da Criança (OMS/Wellstart)

Tendo em vista o acúmulo de evidências científicas favoráveis à prática da amamentação e os avanços alcançados em nosso país no tocante à expansão dessa prática nas últimas décadas1, resta-nos o grande desafio de superar obstáculos ainda existentes ao cumprimento da recomendação da OMS de amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida e manutenção da amamentação, com alimentos complementares, até o segundo ano de vida ou mais.

Estamos reconstruindo lentamente a cultura da amamentação, que foi praticamente destruída no final do século XIX. Contribuíram para isso, entre outros fatores, a industrialização e o marketing dos leites artificiais, que seduziu mulheres e profissionais de saúde à utilização indiscriminada de leites artificiais para a alimentação de bebês.

Como reação às conseqüências do desmame precoce, especialmente o aumento da mortalidade infantil, iniciou-se um movimento mundial para o retorno à prática da amamentação na década de 1970.

O caminho que trilhamos em nosso país, ao longo desse período, foi o da proteção, promoção e apoio à amamentação, sendo inegáveis as conquistas desse movimento. Tomemos como exemplos, no tocante à proteção, o direito à licença-maternidade de 120 dias e a adoção da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes. Porém, prossegue o debate acerca da necessidade de defesa da amamentação, com questões como a ampliação da licença-maternidade e a definição de mecanismos eficientes para se fazer cumprir tais legislações.

O Brasil tem se destacado pela realização, desde 1992, de atividades na Semana Mundial da Amamentação, importante estratégia para o envolvimento da imprensa na promoção da amamentação. Ocorre que, infelizmente, nem sempre a imprensa tem se mostrado "amiga da amamentação", sendo comum a veiculação de imagens de bebês com mamadeiras e chupetas.

Sobre o apoio à amamentação nos serviços de saúde, acrescentaria alguns elementos àqueles apresentados pelo Prof. Jayme Murahovschi. Ao refletir sobre esse apoio e sobre como ele se dá no dia-a-dia de nossos serviços de saúde, seria importante levar em consideração o contexto geral da política de saúde no qual se insere. O SUS – Sistema Único de Saúde – tem entre seus princípios e diretrizes a universalidade, a integralidade da assistência, a participação, a utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades e a descentralização das ações, com ênfase na municipalização e hierarquização da rede de serviços de saúde2.

Avançar no apoio à amamentação implica a definição de uma política, seja em nível federal, estadual ou municipal. Pensar na amamentação como uma política pública significa transformar o apoio às mulheres, praticado em muitas situações por profissionais de saúde que "vestiram a camisa", em algo acessível a todas as mulheres, a elas oferecendo igual oportunidade de receber a informação, a orientação e o apoio de que necessitam para amamentar.

A definição da amamentação como uma prioridade de saúde implica a adoção, por parte dos gestores, de estratégias para a organização da assistência, alocação de recursos e capacitação de recursos humanos.

A Iniciativa Hospital Amigo da Criança, alvo de editorial publicado recentemente pelo Jornal de Pediatria3, tem sido uma estratégia adotada para promover a tão esperada mudança das práticas hospitalares no momento do nascimento. Através da recomendação dos Dez passos para o sucesso do aleitamento materno, propõe, em essência, uma verdadeira revolução nas rotinas das maternidades e uma profunda reflexão sobre o paradigma adotado até então.

Pesquisas mostram que o cumprimento de cada um dos Dez Passos tem impacto positivo sobre a prática do aleitamento materno4, sendo que nascer em um hospital Amigo da Criança aumenta significativamente a chance de uma criança estar em amamentação exclusiva nos primeiros quatro meses de vida5.

Porém, não é esperado que dois dos Dez Passos, relacionados à orientação das gestantes no pré-natal e ao encaminhamento das mães, por ocasião da alta hospitalar, a grupos de apoio à amamentação, sejam cumpridos no ambiente hospitalar. Preconiza-se que essas ações sejam desenvolvidas na atenção básica e, portanto, é fundamental que à IHAC somem-se iniciativas voltadas às unidades básicas de saúde.

Como bem lembrou o Prof. Jayme Murahovschi, além do momento do parto, as duas primeiras semanas são cruciais para o estabelecimento da amamentação. Como prevenir o desmame se muitas crianças chegam à unidade básica no final do primeiro mês de vida? Essa questão é fundamental quando se analisa o papel da atenção básica no apoio ao aleitamento materno.

Outra questão a ser considerada nesse debate é a postura dos profissionais ou a abordagem que utilizam em seu trabalho de apoio às mulheres, assim como os treinamentos disponíveis sobre amamentação.

O curso Manejo e promoção do aleitamento materno, da Unicef e OMS, tem a seu favor a curta duração (18 horas), o baixo custo e a flexibilidade para aplicação; porém, trabalha pouco alguns conteúdos fundamentais, como os inseridos no curso de Aconselhamento em amamentação, OMS/Unicef, que, além do manejo da lactação, inclui as habilidades de "ouvir e aprender com a mãe"e "como desenvolver a confiança e dar apoio".

Avaliação dessa proposta6 mostrou que o curso tem impacto positivo sobre o desenvolvimento de habilidades em aconselhamento; porém, em função de sua longa duração (40 horas) e necessidade de aplicação no período de uma semana, sem interrupções, tem sido pouco difundido em nosso meio.

Por fim, é importante refletir sobre a contribuição da pesquisa nessa área. Dentre as muitas aplicações da epidemiologia, destaca-se sua utilização para o diagnóstico e o monitoramento da situação da amamentação. Dados provenientes dessas pesquisas, se acessíveis aos gestores, podem ser utilizados como uma importante ferramenta para o planejamento e a avaliação de políticas. Dessa forma, a pesquisa epidemiológica é fundamental para se trabalhar com amamentação na perspectiva da saúde pública. A pesquisa qualitativa, por sua vez, tem trazido à tona a necessidade de aprender mais com as mulheres, sobre a interação complexa de fatores que permeiam a opção pela amamentação e os fatores que influenciam essa prática, no nível individual.

A análise da tendência de amamentação no Brasil e em vários municípios é animadora, uma vez que muitos obstáculos foram superados e muito se avançou. Porém, temos um longo caminho a percorrer nessa luta, pela garantia de um direito fundamental de mulheres e crianças.

Referências bibliográficas

1. Venancio SI, Monteiro CA. A evolução da prática da amamentação nas décadas de 70 e 80. Rev Bras Epidemiol. 1998;1:40-9.

2. Brasil. Ministério da Saúde. Descentralização das ações de saúde. A ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei. Brasília; 1993.

3. Venancio SI. Dificuldades para o estabelecimento da amamentação: o papel das práticas assistenciais das maternidades. J Pediatr (Rio J). 2003;79:1-2.

4. OMS. Evidências científicas dos dez passos para o sucesso do aleitamento materno. Brasília: OPAS; 2001.

5. Venancio SI, Escuder MML, Kitoko P, Rea MF, Monteiro CA. Freqüência e determinantes do aleitamento materno em municípios do Estado de São Paulo. Rev Saude Publica. 2002;36:313-18.

6. Rea MF, Venâncio SI. Avaliação do curso de Aconselhamento em Amamentação – OMS/UNICEF. J Pediatr (Rio J). 1999;75:112-18.

Transplante de células hematopoéticas em pediatria: um esforço que vale a pena

Algemir L. BrunettoI; Cláudio G. Castro Jr.II; Lauro J. GregianinII

IChefe do Serviço de Oncologia Pediátrica do HCPA

IIMédicos oncologistas pediatras, responsáveis pelos transplantes de medula óssea do Serviço de Oncologia Pediátrica do HCPA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Serviço de Oncologia Pediátrica Hospital de Clínicas de Porto Alegre Rua Ramiro Barcelos 2350 – 3º leste CEP 90035-903 – Porto Alegre, RS E-mail: abrunetto@hcpa.ufrgs.br

Recebemos com interesse os comentários de Ribeiro1, com relação ao nosso artigo recentemente publicado no Jornal de Pediatria2. O autor aborda vários aspectos importantes na interpretação dos resultados com o uso de transplante de células-tronco hematopoéticas em crianças com indicação dessa modalidade terapêutica. No estado do Rio Grande do Sul estima-se a ocorrência anual de 300 casos novos de câncer infanto-juvenil, dos quais aproximadamente 10% são candidatos potenciais a programas dessa natureza. No Brasil, são poucos os centros que oferecem esse tipo de tratamento e muitos desses pacientes acabam falecendo antes de receber o transplante em virtude da longa fila de espera. Portanto, oferecer essa forma de tratamento aos pacientes de nosso estado foi sempre um desafio.

Nesse sentido, o Serviço de Oncologia Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) oferece um programa de transplante autogênico e alogênico de células-tronco hematopoéticas desde 1998, tendo sido pioneiro no Rio Grande do Sul no transplante com células de cordão umbilical de doador não aparentado3. Nosso serviço é hoje um importante centro de transplante pediátrico, contando com equipes multidisciplinares que avaliam rigorosamente as indicações de transplante e utilizam critérios uniformes de tratamento.

Nenhum paciente deixou de ser transplantado por limitações econômicas da família, em função de uma atuação muito eficiente de nosso serviço social e das condições oferecidas pelo Instituto do Câncer Infantil do Rio Grande do Sul, que é uma organização não-governamental de apoio às crianças com câncer e às suas famílias.

O objetivo de nosso estudo foi o de descrever, retrospectivamente, as complicações agudas mais freqüentes em pacientes transplantados, fazendo uma comparação simples com os dados publicados na literatura. Não foi objetivo de nossa publicação comparar a sobrevida de pacientes transplantados com a daqueles que receberam quimioterapia convencional, o que talvez demande estudos prospectivos e randomizados, que acabam sendo limitados, muitas vezes, pelo pequeno número de pacientes.

Queremos saudar com entusiasmo a constituição do Comitê de Transplante de Medula Óssea da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope), que hoje é reconhecido como um dos mais ativos comitês entre os grupos cooperativos da Sobope e do qual são membros os oncologistas pediátricos de nosso serviço responsáveis pelos transplantes.

Sabemos que os serviços que realizam transplante de medula óssea no Brasil, representados pela Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO), Sobope, Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Colégio Brasileiro de Hematologia, estão ampliando os canais de comunicação entre si e com o Ministério da Saúde, com a finalidade de conhecer melhor as limitações, os potenciais e a realidades nos poucos estados brasileiros que contam com serviços capazes de oferecer o transplante de células progenitoras hematopoéticas. Em colaboração com centros internacionais, buscam aperfeiçoar cada vez mais os programas em funcionamento, apoiando também a criação de novos centros em regiões menos favorecidas. Esses esforços são fundamentais para podermos assegurar que no futuro, como sugere Ribeiro, todas as crianças tenham a mesma oportunidade de receber o transplante.

Agradecemos os comentários, os quais consideramos estimuladores da continuidade de nosso programa, que, como demonstramos em nosso artigo2, apresenta resultados entusiasmantes.

Referências bibliográficas

1. Ribeiro RC. Transplante de células hematopoéticas em pediatria: as dores do crescimento. J Pediatr (Rio J). 2003;79:383-4.

2. Castro CG Jr., Gregianin LJ, Brunetto AL. Análise clínica e epidemiológica do transplante de medula óssea em um serviço de oncologia pediátrica. J Pediatr (Rio J). 2003;79:413-22.

3. Castro CG Jr., Gregianin LJ, Brunetto AL. Transplante de medula óssea e transplante de sangue de cordão umbilical em pediatria. J Pediatr (Rio J). 2001;77:345-60.

  • Endereço para correspondência

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    Hospital de Clínicas de Porto Alegre
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    CEP 90035-903 – Porto Alegre, RS
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2004
    • Data do Fascículo
      Nov 2003
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