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Prática de consultório pediátrico

Pediatric office practice

EDITORIAL

Prática de consultório pediátrico

Pediatric office practice

Rosana Fiorini PucciniI; Danilo BlankII

IProfessora Adjunta Livre-docente da Disciplina de Pediatria Geral e Comunitária do Departamento de Pediatria da Unifesp/EPM. Vice-chefe do Departamento de Pediatria da UNIFESP/EPM

IIProfessor Adjunto do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS. Regente da disciplina Promoção e Proteção da Saúde da Criança e do Adolescente

A atenção à saúde da criança tem se modificado intensamente nas últimas décadas - é parte de um processo que inclui profundas mudanças ocorridas na sociedade e na família, assim como no lugar que a criança e o adolescente ocupam nos diferentes contextos sociais e culturais1,2. Nos dias atuais, o pediatra se depara com situações familiares de grande diversidade: mãe ou pai solteiro, desempregado ou trabalhando fora o dia inteiro; crianças fora da escola, sozinhas na rua ou obrigadas a trabalhar; crianças adotadas em circunstâncias nem sempre adequadas; gente com valores e crenças diferentes dos padrões usuais; migrantes de toda sorte; graus variados de pobreza. Além disso, as famílias sofrem fortes pressões do meio ambiente: violência urbana crescente e riscos no trânsito; exposição ao fumo, álcool e outras drogas; comportamento sexual inseguro e cada vez mais precoce; situações de abuso físico; influência negativa dos meios de comunicação, principalmente a televisão.

Em segundo lugar, a atenção à saúde está relacionada também à estrutura dos serviços e aos modelos de assistência. Se, por um lado, tem havido uma grande expansão do acesso da população ao sistema de saúde, principalmente por meio do crescimento do atendimento ambulatorial, por outro, as modalidades de prática de consultório são muito variadas1,3. Além disso, por diversas razões socioeconômicas, a dificuldade em harmonizar um sistema essencialmente desuniforme gera inconstâncias na qualidade do atendimento. Nas últimas duas décadas têm sido importantes as mudanças nos serviços públicos de saúde, sobretudo a partir da Constituição de 19884, que estabelece o direito à saúde a todo cidadão brasileiro - há significativa ampliação do acesso aos serviços, descentralização das decisões para o nível local e, neste processo, as unidades básicas de saúde passaram a desempenhar um papel expressivo e bem mais efetivo no novo sistema5. Quanto aos serviços privados, as mais recentes formas de financiamento da prática médica de consultório, como as diferentes modalidades de seguro-saúde e convênios, estabeleceram novas relações de trabalho e de exercício profissional1, comprometendo a efetividade. Cabe ainda comentar a crescente distorção do uso dos serviços de pronto-socorro, que, em vez de atenderem apenas emergências, têm sido cada vez mais utilizados como recurso para consultas de outras naturezas - até puericultura - em detrimento do atendimento contínuo essencial na pediatria6. Esta nova e perigosa "cultura do pronto-socorro", que contaminou todas as camadas socioeconômicas, é um exemplo de como certas circunstâncias sociais podem interferir nos rumos da prática médica.

O desenvolvimento das especialidades trouxe avanços indiscutíveis, porém, resultou em fragmentação do trabalho médico e, algumas vezes, em encaminhamentos excessivos e injustificados, com esvaziamento e indefinição do papel do pediatra geral. A incorporação das novas especialidades e tecnologias tem constituído um desafio, inclusive para países desenvolvidos, nos quais tem se constatado um declínio da eficácia dos serviços de saúde e, ao mesmo tempo, uma elevação crescente dos custos7.

A esse contexto soma-se ainda o acelerado avanço técnico-científico, que contribui para o desenvolvimento de ações de prevenção e de novos meios diagnósticos e terapêuticos, resultando em mudanças no perfil epidemiológico da população e melhora no prognóstico de várias doenças.

Assim, a criança e o adolescente dos nossos dias se apresentam com novas demandas e novas necessidades em saúde. São imprescindíveis, portanto, dinamismo e atualização constantes na busca de respostas adequadas e oportunas frente a este novo contexto. A consulta médica isolada, a pediátrica em especial, já não responde por toda a atenção que se faz necessária. O trabalho em equipe multiprofissional, interdisciplinar, tem se ampliado em todos os níveis - em serviços ambulatoriais e hospitalares. No âmbito ambulatorial, tem sido recomendado que o pediatra, em sintonia com toda a equipe de saúde, assuma a óptica da chamada "pediatria conceitual", segundo a qual ele não mais examina somente a criança, mas a casa, a escola e a comunidade8. Para enfrentar tal desafio, é necessário estabelecer parcerias fora do consultório, mas que se estendam além da integração com outros profissionais, abrangendo ações baseadas nas escolas, associações de bairros e igrejas.

Enfim, por todas as questões comentadas acima, é essencial que o pediatra se capacite continuamente na atuação ambulatorial, a partir da prática de consultório, passando pela integração com outros profissionais e chegando a ações comunitárias.

É interessante ressaltar ainda que, segundo a pesquisa "Perfil dos pediatras no Brasil", publicada pela Sociedade Brasileira de Pediatria e pela Fundação Oswaldo Cruz, 71% dos pediatras exercem atividade em consultório9. Esta ocupação toma entre 11 e 40 horas da carga horária semanal de trabalho de mais da metade dos profissionais, enquanto quase 10% devotam mais de 40 horas semanais ao consultório. Logo, é evidente a necessidade de mais material educativo voltado especificamente a este tipo de atividade.

Os suplementos do Jornal de Pediatria têm tido grande sucesso entre os leitores, alavancando os índices de acesso ao site da revista a cada notificação de nova publicação. Sem dúvida, isto se deve ao caráter prático dos artigos de revisão, bem na linha de interesse imediato dos pediatras e estudantes. Entretanto, os temas dos suplementos são concebidos do ponto de vista das especialidades, freqüentemente centrando-se no atendimento hospitalar, ainda que muitos assuntos tenham aplicação na prática de consultório. Ao abordarmos exclusivamente temas de pediatria em consultório, neste suplemento, entendemos a complexidade que tal prática representa nos dias de hoje - consultório privado, consultório de empresa prestadora de serviços de saúde, consultório do ambulatório do hospital (privado ou público), consultório da unidade básica de saúde. Procuramos dar prioridade a temas que interessam ao pediatra geral, tendo como objetivo possibilitar uma ampliação de seu campo de atuação e sua resolubilidade. Como a lista inicial de assuntos selecionados permitiria facilmente a publicação de mais dois suplementos, foram transferidas para uma oportunidade futura - que certamente virá - algumas questões relevantes, tais como a relação médico-paciente-família, o uso do telefone e outras formas de comunicação na prática pediátrica, o atendimento fora de hora, problemas de pele e a ação do pediatra frente a abusos físicos, a violência urbana e as agressões do meio ambiente. Por outro lado, os autores foram solicitados a utilizar o maior embasamento científico possível, com revisões amplas e atualizadas da literatura. Vale ressaltar que a abordagem de doenças agudas, neste suplemento, guarda um sentido de que estas devam ser atendidas no consultório, sempre que possível pelo mesmo profissional que acompanha a criança ou adolescente. Como já foi referido acima, a procura cada vez mais freqüente por serviços de emergência para casos sem gravidade e não emergenciais, tem resultado em excessiva medicalização e intervenções injustificadas. A forma de financiamento dos serviços privados e a organização dos serviços públicos têm, muitas vezes, determinado um rompimento da atenção integral, que precisa ser recuperada, reconstruída. Esta integralidade na atenção à saúde da criança e do adolescente é a base para uma assistência de qualidade. Os temas aqui tratados foram escolhidos visando a contribuir para a prática cotidiana dos profissionais, de forma a trazer uma reflexão dessa prática e apontando para a importância da busca constante de conhecimentos.

Referências

1. Sucupira ACSL, Novaes HMD. A prática pediátrica no consultório. In: Sucupira ACSL, Bricks LF, Kobinger MEBA, Saito MI, Zuccolotto SMC, eds. Pediatria em Consultório. 4ª ed. São Paulo: Sarvier; 2000. p. 3-7.

2. Haggerty RJ. Child health 2000: New pediatrics in the changing environment of children's needs in the 21st century. Pediatrics 1995;96:804-812.

3. Dickstein J. Características do atendimento da criança em ambulatório. In: Sayeg DC, Dickstein J (coords.). Manual de Pediatria Ambulatorial. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 1995. p. 25-30.

4. Brasil. Constituição Federal. Seção II - Da Saúde. Brasília (DF); 1988.

5. Campos GWS. O Estado e a atenção à saúde: conflitos e contradições na implantação do SUS e a entrada em cena dos municípios. In: Campos GWS. Reforma da reforma - repensando a saúde. 1ª edição. São Paulo: Editora Hucitec; 1992. p.87-132.

6. Murahovschi J. A (perigosa) cultura do pronto socorro. Disponível: http://www.sbp.com.br/show_item2.cfm?id_categoria =24&id_detalhe=1173&tipo_detalhe=s. Acessado: 13/04/2003.

7. Campos GWS, Chakkour M, Santos RC. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública (Rio de Janeiro) 1997;13:141-4.

8. Palfrey JS. Beyond the office door. In: Green M, Haggerty RJ, Weitzman M, eds. Ambulatory pediatrics. 5ª ed. Philadelphia: WB Saunders; 1999. p. 47-51.

9. Machado MH, Vaz ES (coords.). Perfil dos pediatras no Brasil: Relatório final. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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