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Neurobiologia do comportamento: desbravando as fronteiras entre o cérebro e a mente

EDITORIAL

Neurobiologia do comportamento: desbravando as fronteiras entre o cérebro e a mente

Magda L. NunesI, Marcos T. MercadanteII

I Professora adjunta de Neurologia e Pediatria, Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Doutora em Neurociências pela UNICAMP, SP. Pós-doutorado em Neurociências no Albert Einstein College of Medicine, Nova Iorque, EUA

IIProfessor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, Universidade P. Mackenzie, São Paulo, SP. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Doutor em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em Psiquiatria Infantil no Child Study Center, Yale University, Connecticut, EUA

Duas décadas atrás, discutir o psicológico e o biológico era um grande exercício epistemológico. Hoje essa discussão pode ser encaminhada numa perspectiva pragmática: sob qual princípio teórico seria mais abrangente e vantajoso abordar um determinado objeto? Com o aperfeiçoamento e a criação de novas técnicas de neuroimagem, estudos de genética e biologia molecular, essa rica possibilidade já é uma realidade.

A conquista tecnológica nos permite hoje fabricar modelos animais que se assemelham a situações patológicas reais, facilitando sua compreensão e abrindo novas perspectivas terapêuticas. Um recente estudo demonstrou que camundongos knockouts para o gene do receptor de serotonina são mais ansiosos que seus pares não impedidos de expressar esse gene. Como a liberação da expressão do gene poderia ocorrer, neste experimento, a qualquer momento do desenvolvimento, ficou claro que, para a "criação" de um animal ansioso (inseguro?), era necessário que o gene ficasse silencioso nos primeiros 15 dias de vida. Depois desse período, não mais importava se o gene estava ativo ou não1. O fascinante e intrigante aspecto observado pelos pesquisadores é que, na natureza, o que induz a expressão desse gene são os cuidados maternos. Assim, se a mãe camundongo não lambe seus filhotes, eles não expressam esse gene a partir da fita-receita de DNA. A psicologia já falava sobre a importância da interação do binômio mãe-bebê há mais de um século; agora podemos ter a explicação confirmada pela vertente biológica. Sem dúvida alguma, ampliaram-se nossas opções.

Outros recursos, como os modelos construídos utilizando tecnologias como o eye tracking (varredura visual), permitem-nos decodificar quais pontos um indivíduo explora visualmente quando está frente a um cenário. É intrigante que portadores de transtornos invasivos do desenvolvimento, como os autistas, quando estão observando uma face humana, tendem a olhar muito mais para a região da boca, diferentemente de controles normais, que investigam principalmente a região dos olhos2. Aqui novamente a proposta biológica se encontra com o conhecimento psicológico. Se há anos sabemos da importância de a criança olhar para a mãe, agora podemos mensurar o quanto a inabilidade de explorar essa região compromete o desenvolvimento da sociabilidade. Por não ter acesso à gama de comunicações emitidas através da mímica do olhar, o autista não conseguiria "acompanhar" as nuances afetivas e comunicativas que são fruto da interação de duas pessoas. Em associação aos estudos de neuroimagem, começa-se a admitir que alterações no circuito envolvendo o cerebelo, o corpo estriado e o córtex cerebral poderiam ser o mote inicial para a determinação desses quadros3.

Assim, se, por um lado, estamos relativamente familiarizados com o conhecimento oferecido pela psicologia, e a maioria dos profissionais que trabalha com a infância e a adolescência em nosso país domina essa linguagem, por outro lado, precisamos conquistar novas fronteiras. De posse de instrumental rico e variado, teremos maiores recursos para atender nossos pacientes.

A idéia de realizar um suplemento do Jornal de Pediatria um pouco fora dos moldes convencionais, oportunizando ao pediatra uma visão psicobiológica das mais freqüentes alterações do comportamento observadas na infância e adolescência e dos principais quadros neuropsiquiátricos a elas relacionados foi um desafio que demonstra a maturidade de nossa revista.

Neste suplemento, reunimos 13 trabalhos, que permitem uma atualização do que há de mais novo em termos da neurobiologia do comportamento. Somada ao conhecimento psicológico que há anos tem sido veiculado em nosso país, a aquisição do conhecimento psicobiológico habilitará o pediatra a desempenhar um trabalho clínico mais eficiente. No entanto, este é apenas o começo de um volume muito maior de informações que têm sido produzidas nos centros de pesquisa dirigidos à neurociência. Com certeza, muito mais está por vir; este é só o começo!

Referências

1. Gross C, Zhuang X, Stark K, Ramboz S, Oosting R, Kirby L, et al. Serotonin 1 A receptor acts during development to establish normal anxiety-like behaviour in the adult. Nature. 2002;416:396-400.

2. Klin A, Jones W, Schultz R, Volkmar F, Cohen D. Defining and quantifying the social phenotype in autism. Am J Psychiatry. 2002;159:895-908.

3. Dawson G, Webb S, Schellenberg GD, Dager S, Friedman S, Aylward E, et al. Defining the broader phenotype of autism: genetic, brain, and behavioral perspectives. Dev Psychopathol. 2002;14:581-611.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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