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Constipação crônica funcional: com que fibra suplementar?

EDITORIAIS

Constipação crônica funcional. Com que fibra suplementar?

Helga Verena L. Maffei

Professora titular de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Botucatu, SP

A fibra alimentar (FA) aumenta o volume fecal por mecanismos que dependem da estrutura de seus componentes e da intrincada relação entre suas propriedades físico-químicas (capacidade de reter água, solubilidade, tamanho das partículas, grau de lignificação, teor de pentoses, etc.) com a população bacteriana do cólon. Os componentes insolúveis da fibra, por resistirem à digestão pela microflora colônica, são eliminados intactos e mantêm a água retida, gerando grande volume fecal. Durante o trajeto colônico, este grande volume é um importante estímulo para contrações propulsivas e, em se encurtando o tempo de trânsito, haveria menor reabsorção de água e fezes mais úmidas. Por outro lado, 90-100% das fibras solúveis e apenas 30-80% das insolúveis são fermentadas pela flora intestinal, liberando a água retida e produzindo ácidos graxos de cadeia curta. Estes são absorvidos, gerando absorção de água e eletrólitos, o que, somado à absorção da água liberada, tende a diminuir a água fecal. Entretanto, a fermentação é também um grande estímulo para o aumento da população bacteriana, a qual, por constituir em torno de 50% das fezes secas, contribui para o peso fecal. Há indícios de que a fermentação aumente com o uso prolongado de fibras, pois as polissacaridases bacterianas da flora são induzíveis. Em resumo, classicamente são atribuídas à fração insolúvel da fibra as principais características para uma boa laxação, cabendo à fração solúvel neste aspecto um papel contributivo (embora cumpra outras importantes funções metabólicas)1,2. Além disso, o excesso de fermentação tem efeitos clínicos indesejáveis.

Ocorrem variantes de acordo com a forma como as fibras são ingeridas: puras, como em muitos trabalhos experimentais, ou como constituintes de alimentos. Exemplificando, a celulose pura isolada da madeira, por sua alta cristalização e pequena área superficial, é menos digerida que a de frutas e vegetais. O farelo de trigo, por ter a parede celular muito lignificada, é menos fermentado que o repolho e a maçã, sendo considerado fermentador lento – mas o farelo fino é mais digerível que o grosso, pela maior área exposta1,2.

Embora poucos estudos tenham avaliado o emprego da FA no tratamento da constipação crônica na infância, trabalhos em adultos e em animais demonstram que, de fato, em geral, suplementos contendo muita fibra insolúvel geram maior volume fecal que os contendo muita fibra solúvel e/ou diminuem o tempo de trânsito colônico1,3-5. Recentemente, no entanto, Chen et al.6 não encontraram diferenças no peso fecal úmido de voluntários humanos recebendo farelos de trigo ou de aveia (aparentemente cozidos) contendo 95 ou 50% de fibra insolúvel. Nesse trabalho, o peso fecal aumentou, respectivamente, 4,8 e 4,5 g por g de FA consumida, ao passo que, em extensa compilação realizada por Cummings et al.1, os valores eram 4,9 g (farelo de trigo cozido) e 3,4 g (farelo de aveia). As diferenças entre os métodos de dosagem de fibra, conforme os autores, explicariam as interpretações divergentes. Segundo Chen et al.6, o comportamento semelhante entre os dois farelos teria ocorrido porque a fibra solúvel do farelo de aveia estimula o crescimento bacteriano no cólon proximal, e, em seguida, a fração insolúvel deste farelo, por fermentar mais lentamente, manteria a população bacteriana durante o restante do trajeto colônico. Tal hipótese é consistente com o aumento desprezível do peso fecal quando se fornece apenas fibra solúvel. O rápido crescimento bacteriano no cólon proximal não seria sustentado, pois, pela falta da fração insolúvel, a autólise consumiria a maior parte do aumento bacteriano até a excreção fecal, aproximadamente 2 dias após6.

Na compilação acima citada1, o aumento do peso fecal úmido variou de acordo com a fibra ingerida, sendo o menor incremento 1,2g por g ingerida, com a fibra solúvel pectina, e o maior 7,2 g, com o farelo de trigo cru, com 76% de fibra insolúvel. Para produtos da soja, o peso fecal aumentou apenas 2,5 g para cada g ingerida, e isso vem ao encontro do pouco efeito observado nos ensaios clínicos com o polissacarídeo da soja2,7. Este produto tem sido classicamente utilizado em dietas enterais, por permitir fácil infusão pelas sondas, o que levou Silk a questionar se o processamento de partículas muito pequenas para se obter baixa viscosidade aceitável para dietas enterais aumentou a digestibilidade e reduziu a capacidade de reter água, fatores sabidamente desestimuladores do aumento de volume fecal2. De fato, apesar do polissacarídeo de soja conter entre 75 e 90% de material insolúvel e ser, portanto, potencialmente pouco fermentescível, estudos in vitro demonstram maior fermentação do que seria esperado7.

O artigo de Freitas et al., publicado no presente fascículo8, também relata ausência de eficácia do polissacarídeo de soja em crianças com constipação crônica funcional e é um ótimo exemplo de investigação experimental a partir de observações clínicas. Assim é que os autores procuraram avaliar se a ausência de eficácia por eles observada no ensaio clínico, em comparação com fórmula de soja sem FA, reproduzia-se experimentalmente. Mas, ao contrário do observado nas crianças, em ratos a ração contendo polissacarídeo de soja mostrou-se eficaz, assim como a ração padrão contendo celulose. Ademais, o peso seco foi significativamente menor e a umidade fecal maior nos ratos com polissacarídeo de soja do que nos com celulose, sendo o maior percentual de umidade fecal, em todos momentos (61 versus 36%), atribuído à maior fermentação8. No trabalho de McIntyre et al.9, no entanto, o percentual de umidade foi semelhante em ratos com dietas contendo goma guar ou farelo de trigo, embora o percentual de fibra solúvel fosse muito diferente (85 versus 24%). Também em humanos, a umidade, além de ser sempre bem maior que nos ratos, varia pouco, entre 68 e 82% na quase totalidade dos trabalhos (inclusive os com celulose), sem diferenças entre os com suplementação ou com pouca FA1. Pergunta-se, portanto, quanto os dados de umidade fecal em ratos podem ser transpostos para humanos.

Por conter principalmente fibra insolúvel, a celulose é considerada adequada para prover boa laxação, razão pela qual é utilizada nas rações animais5,9. Por outro lado, como já referido, tem sido questionada na literatura a eficácia dos polissacarídeos da soja2,7. Portanto, a nosso ver, os resultados do ensaio clínico prévio não foram inesperados, mas os resultados experimentais do trabalho em pauta8 surpreenderam, em parte. Seria interessante confirmar tais dados levando em conta o volume ingerido, pois eventuais diferenças nas características das rações, como sabor, aroma, viscosidade, etc. podem levar a diferenças nos volumes e, conseqüentemente, no teor de FA ingeridos. De fato, o mesmo grupo de pesquisa observou, em excelente trabalho prévio, ingestão significativamente maior da ração contendo celulose que da sem FA10. Também chamou atenção que, neste trabalho10, ofereceram exatamente o dobro de FA (100 g de celulose por quilo de ração) que no de Freitas et al.8, gerando peso fecal bem maior (10,7 versus 5,2 g). Segundo Catani et al.10, 50 g de celulose corresponderiam a 12,5 g de fibra por 1.000 kcal, que seria o recomendado para crianças. No entanto, tendo em vista as características fecais dos ratos, pergunta-se se não seriam desejáveis teores mais altos de FA. Como em grande parte dos trabalhos experimentais com animais se oferece as 100 g5,9, surge a questão: que influência a quantia menor teria tido sobre os resultados de Freitas et al.8?

Os autores também poderiam nos brindar com o caminho inverso, a partir da observação experimental, verificando em crianças se a suplementação com produto contendo muita celulose é mais eficaz para peso fecal seco que a com polissacarídeo de soja e se tem efeito benéfico no tratamento da constipação crônica. Também seria interessante verificar o efeito dos diferentes suplementos de FA sobre ratos previamente submetidos à dieta sem FA, para melhor reproduzir a situação clínica de crianças constipadas.

Enquanto se discutem as questões metodológicas e se procuram novos produtos bem aceitos pela população em geral, cabe aos clínicos encontrar formas de fazer as crianças constipadas aceitarem a dieta contendo cereais integrais, frutas com casca e bagaço, hortaliças e leguminosas, além das necessárias intervenções, aí incluídas eventuais suplementações com fibra, dentro de conhecimentos já estabelecidos. O farelo de trigo, por seu alto teor de fibra insolúvel (lignina, celulose e polissacarídeos não-celulósicos) e grande teor de pentose, parece a fibra ideal, o que já foi comprovado em diversos estudos com adultos constipados3. O grande problema, no entanto, é sua aceitação ao longo prazo, principalmente em nosso meio, o que enseja a salutar procura de outros produtos que o possam substituir e sejam mais bem aceitos pela população. Insere-se neste contexto a louvável tentativa de tratar crianças constipadas oferecendo produto comercial contendo polissacarídeo de soja8.

Referências

1. Cummings JH. The effect of dietary fiber on fecal weight and composition. In: Spiller GA, editor. CRC Handbook of dietary fiber in human nutrition. Boca Raton, FL: CRC Press; 2001. p. 183-252.

2. Silk DBA. Fibre and enteral nutrition. Gut. 1989;30:246-64.

3. Tomlin J, Read NW. Comparison of the effects on colonic function caused by feeding rice bran and wheat bran. Eur J Clin Nutr. 1988;42:857-61.

4. Meier R, Beglinger C, Schneider H, Rowedder A, Gyr K. Effect of a liquid diet with and without soluble fiber supplementation on intestinal transit and cholecystokinin release in volunteers. J Parenter Enteral Nutr. 1993;17:231-5.

5. Nyman M, Asp NG. Fermentation of dietary fibre components in the rat intestinal tract. Br J Nutr. 1982;47:357-66.

6. Chen HL, Haack VS, Janecky CW, Vollendorf NW, Marlett JA. Mechanisms by which wheat bran and oat bran increase stool weight in humans. Am J Clin Nutr. 1998;68:711-9.

7. Kapadia SA, Raimundo AH, Grimble GK, Aimer P, Silk DB. Influence of three different fiber-supplemented enteral diets on bowel function and short-chain fatty acid production. J Parenter Enteral Nutr. 1995;19:63-8.

8. Freitas KC, Motta MEFA, Amâncio OMS, Fagundes-Neto U, Morais MB. Efeito da fibra do polissacarídeo de soja no peso e na umidade das fezes de ratos em fase de crescimento. J Pediatr (Rio J). 2004;80:183-8.

9. McIntyre A, Young GP, Taranto PRG, Gibson PR, Ward PB. Different fibers have different regional effects on luminal contents of rat colon. Gastroenterology. 1991;101:1274-81.

10. Catani M, Amâncio OMS, Fagundes-Neto U, Morais MB. Dietary cellulose has no effect on the regeneration of hemoglobin in growing rats with iron deficiency anemia. Braz J Med Biol Res. 2003;36:693-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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