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Terapia intensiva neonatal e pediátrica no Brasil: o ideal, o real e o possível

EDITORIAIS

Terapia intensiva neonatal e pediátrica no Brasil: o ideal, o real e o possível

Arnaldo Prata Barbosa

Professor adjunto, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Membro do Departamento Científico de Terapia Intensiva da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Comissão de Formação do Intensivista da Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Vice-Presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Estado do Rio de Janeiro

A terapia intensiva neonatal e pediátrica no Brasil experimentou um grande desenvolvimento nos últimos 20 anos, de certa forma acompanhando a tendência mundial. No entanto, o que se observa hoje é que esse crescimento se fez e ainda continua ocorrendo sem um planejamento estratégico adequado. O resultado, há muito percebido pelos usuários do sistema, somente agora começa a ser claramente evidenciado: não há eqüidade na distribuição dos leitos, com desigualdades nacionais e regionais; o acesso é limitado, penalizando quase sempre a parcela mais carente da população; e a qualidade dos serviços prestados é extremamente contrastante, variando de unidades altamente sofisticadas a outras sem a estrutura mínima necessária.

Diversos fatores podem ser apontados para explicar essa situação, destacando-se, por grupo de problemas, os seguintes: (1) falta de eqüidade: o grande investimento necessário para a abertura de unidades de tratamento intensivo (UTI), tanto do ponto de vista dos recursos materiais quanto da formação de recursos humanos, levou à concentração natural dessas unidades nas regiões mais ricas e desenvolvidas, fenômeno observado tanto em nível nacional quanto estadual e até mesmo municipal; (2) acesso limitado: a falta de planejamento tanto no setor público quanto no privado levou a desigualdades na oferta de leitos, geralmente com excesso no setor privado e carência de leitos públicos, de acesso universal; (3) estrutura desigual: a normalização oficial para o setor é relativamente recente e confusa, coexistindo normas que permitem o funcionamento de unidades antigas, mas sem estrutura adequada, com normas tão idealizadas e bem intencionadas (mas equivocadas) que inviabilizam a abertura de novos serviços. Alie-se tudo isso à falta de informações confiáveis sobre o sistema e a uma fiscalização precária e teremos um retrato da realidade atual.

Neste número do Jornal de Pediatria, Souza et al.1 apresentam um desses retratos, colocando em foco a cidade de São Paulo, a maior do país. Alguns anos antes, havíamos tirado a mesma fotografia, então do estado do Rio de Janeiro, com resultados muito semelhantes2. Considerando-se que esses são os dois maiores centros regionais de saúde do país, é muito provável que o quadro em nível nacional seja, no mínimo, semelhante, mas provavelmente pior. Recentemente, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) divulgou o resultado de um segundo censo nacional de UTI, numa primeira tentativa de estudar o assunto em nível nacional3. No entanto, esse censo não focou exclusivamente as unidades pediátricas, e a participação foi totalmente voluntária, desconhecendo-se o universo pesquisado e obtendo-se uma amostragem provavelmente muito enviesada, tornando os resultados de pouca utilidade prática. Souza et al.1 destacam que 43% das UTI de sua amostra não se encontravam registradas na AMIB, no Conselho Regional de Medicina, na Secretaria Municipal de Saúde ou na Secretaria Estadual de Saúde, sendo localizadas através de consulta à lista telefônica. Interessante notar também que o maior percentual de não-colaboração encontrava-se exatamente nesse grupo (59% das UTI que não colaboraram com a pesquisa). Parece clara a necessidade de um cadastro nacional de UTI, que seja obrigatório e confiável. Destaque-se que o Ministério da Saúde (MS), em atuação conjunta com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão que tem a responsabilidade de centralizar as informações coletadas nas secretarias de vigilância sanitária municipais (responsáveis finais pelas autorizações de funcionamento dessas UTI), já publicou uma portaria tornando obrigatório este cadastramento4. Falta, no entanto, executar a portaria adequadamente e disponibilizar os resultados para consulta pública pela Internet.

Em relação à falta de eqüidade, Souza et al.1 confirmam, na cidade de São Paulo, a mesma realidade por nós observada no município do Rio de Janeiro2: número de leitos globalmente dentro do preconizado (mesmo no setor público), mas concentrados nas áreas centrais, de menor densidade populacional. Tal fato não seria importante, podendo até ser desejável, uma vez que é nessas áreas que se concentram as melhores unidades, desde que houvesse um sistema realmente efetivo de controle de vagas e de transporte para a criança criticamente enferma ou para a gestante de alto risco e, ainda, que o número de leitos planejados levasse em conta também a demanda oriunda de outros municípios vizinhos. Muitos países prestam excelente atendimento intensivo dessa maneira, e já há diretrizes que orientam nesse sentido5. Observe-se, ainda, que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, 6 e 11% das UTI neonatais encontram-se em maternidades exclusivas, longe de alguns recursos hoje disponíveis apenas nos hospitais gerais e que são fundamentais para o moderno tratamento intensivo. Essa é outra concepção para a qual os planejadores de saúde precisariam estar atentos: maternidade de alto risco e UTI neonatal deveriam existir apenas em hospitais gerais.

Outro dado que chama a atenção no estudo de Souza et al.1 é o predomínio de unidades mistas (com leitos neonatais e pediátricos), constituindo 52% das unidades da cidade de São Paulo. Embora tenhamos encontrado apenas 31% de unidades mistas na cidade do Rio de Janeiro, observamos que, no interior do estado, 77% das unidades eram mistas. Esses dados, em conjunto, chamam a atenção para alguns fatos importantes: (1) no Brasil real, as unidades mistas são maioria; (2) as normas de construção de área física e de funcionamento devem respeitar essa realidade; (3) a formação do pediatra intensivista deve englobar obrigatoriamente o recém-nascido, a criança e o adolescente; (4) unidades exclusivas são importantes, mas deveriam funcionar apenas em centros de referência.

Em relação ao acesso aos leitos de terapia intensiva, o estudo de Souza et al.1 confirmou o que já se conhece de um modo geral no país: excesso de leitos no setor privado e carência no setor público. Essa realidade na área pública somente poderá ser modificada através de um planejamento estratégico sério, congregando principalmente as esferas estaduais e municipais. Não é mais admissível que prefeituras de cidades pequenas adotem como bandeiras a inauguração de UTI neonatais e pediátricas sem discutir, na esfera estadual, se haverá adequação às reais necessidades da população regional. A ausência de planejamento, de controle e de um sistema de transporte efetivo provavelmente explicam a tendência nacional para a construção de unidades com pequeno número de leitos, também observada no estudo de Souza et al. e em nosso próprio trabalho1,2, ao contrário do que se observa em muitos países desenvolvidos, que procuram concentrar recursos e experiência em unidades maiores.

Por outro lado, para garantir bons resultados e uma boa qualidade de atendimento, não basta adequar a oferta de leitos intensivos à demanda da população. Este é sem dúvida o primeiro passo: construir unidades com estrutura adequada (recursos materiais, humanos e financeiros), que possibilitem o acesso universal da população aos serviços; mas muito importante também é o aprimoramento dos processos de assistência, e isso só poderá ser alcançado através de um investimento sustentado tanto na formação e educação continuada de toda a equipe de saúde como em linhas de pesquisa específicas para o setor. Nesse sentido, ressalte-se o papel das universidades como centros de formação de recursos humanos. Souza et al.1 demonstraram que, em São Paulo, 10% das UTI funcionam em universidades, enquanto que, no Rio de Janeiro, essa realidade é bem diferente, não havendo ainda UTI pediátricas em universidades (apenas neonatais)2. É necessário que tanto o Ministério da Educação quanto o Ministério da Saúde estejam atentos a esses fatos, para que se adotem políticas que viabilizem e incentivem a criação e o desenvolvimento de UTI nos hospitais universitários brasileiros.

Finalmente, não poderíamos deixar de registrar a confusão atualmente existente em relação à normalização para o setor. Em que pese aos esforços do MS e da ANVISA, de algumas secretarias estaduais de saúde e conselhos profissionais (CRM, COFEN) e de sociedades médicas (AMIB, SBP), coexistem hoje normas conflitantes em muitos aspectos, algumas até bem elaboradas, mas pouco aplicáveis à nossa realidade. Apenas para citar as principais distorções, há uma resolução recente da ANVISA (RDC 50, modificada pela RDC 307)6,7 que estabelece critérios para a construção de novas unidades a partir de 2002. Essas resoluções são muito semelhantes às preconizadas por portaria anterior da mesma natureza (Portaria MS 1884-94)8, que, por sua vez, é considerada pré-requisito para a classificação das UTI (Portaria MS 3432-98)9. Recentemente, pudemos demonstrar que nenhuma unidade em funcionamento no Rio de Janeiro atende integralmente a essa legislação10. Por outro lado, essas normas não se aplicam a UTI construídas antes de 1994, que estão, no momento, em um vácuo jurídico. Como mudar essa realidade? O Núcleo Gerencial do Departamento Científico de Terapia Intensiva da SBP e a Comissão de Defesa Profissional da AMIB estão estudando a revisão desses critérios visando apresentar aos órgãos competentes uma proposta de normalização (Normas Mínimas e Normas de Classificação) mais consentâneas com a realidade.

Referências

1. Souza DC, Troster EJ, de Carvalho WB, Shin SH, Cordeiro AMG. Disponibilidade de unidades de terapia intensiva pediátrica e neonatal no Município de São Paulo. J Pediatr (Rio J). 2004;80:453-60.

2. Barbosa AP, da Cunha AJLA, de Carvalho ERM, Potella AF, de Andrade MPF, Barbosa MCM. Terapia intensiva neonatal e pediátrica no Rio de Janeiro: distribuição de leitos e análise de eqüidade. Rev Assoc Med Bras. 2002;48:303-11.

3. Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). Anuário Brasileiro de UTIs. São Paulo: AMIB; 2004.

4. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Portaria No. 511, de 29/12/2000. D.O.U. – Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 19/06/2001.

5. American College of Critical Care Medicine, Society of Critical Care Medicine, Pediatric Task Force on Regionalization of Pediatric Critical Care; American Academy of Pediatrics, Committee on Pediatric Emergency Medicine. Consensus report for regionalization of services for critically ill or injured children. Crit Care Med. 2000;28:236-9.

6. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC No. 50, de 21/02/2002. D.O.U. – Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 20/03/2002.

7. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC No. 307, de 14/11/2002. D.O.U. – Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 18/11/2002.

8. Ministério da Saúde. Portaria No. 1884, de 11/09/1994. D.O.U. – Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 27/12/1994; retificada em D.O.U. – Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 15/03/1995 e 05/07/1995.

9. Ministério da Saúde. Portaria No. 3432, de 12/08/1998. D.O.U. – Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 13/08/1998.

10. Barbosa AP, da Cunha AJLA, de Carvalho ERM, Potella AF, Georgakapoulos MR, de Andrade MPF, et al. Análise das UTIPs-RJ quanto às normas mínimas da AMIB, CRM, COFEN, MS, SES e proposta de um novo sistema. Scientia Medica (Porto Alegre). 2004;14(Supl 1):9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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