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Perfil das condutas médicas que antecedem ao óbito de crianças em um hospital terciário

Resumos

OBJETIVO: estudar o perfil de assistência aos pacientes pediátricos que evoluem para o óbito em um hospital universitário, incluindo descrição dos modelos, comparações entre setores, associações de fatores, participações envolvidas e registro das decisões. MÉTODOS: estudo transversal observacional. Foram revistos por um dos autores os registros médicos e de enfermagem dos pacientes falecidos, tendo sido aplicados entrevistas e questionários aos membros da equipe assistente. O período do estudo foi de 12 meses (de 01º de maio de 2002 a 30 de abril de 2003). RESULTADOS: foram analisados 106 casos. Os modelos de assistência mais empregados no hospital foram não-oferta de suporte de vida (51,9%) e reanimação malsucedida (44,3%). As decisões de não reanimar foram mais tardias no centro de tratamento intensivo (p < 0,05). A categoria restritiva de assistência foi mais prevalente na unidade neonatal e entre os portadores de doenças limitantes da sobrevida (p < 0,05). Entre as formas mais comuns de participação profissional nas decisões, destacaram-se médicos plantonistas e residentes, isoladamente (52,8%), e a equipe médica (31,1%). O envolvimento dos pais ou responsáveis foi registrado em 20,8% dos casos. Na amostra total, foram observados sete casos (6,6%) de registros dúbios ou discordantes da reanimação cardiopulmonar em prontuário. CONCLUSÕES: os procedimentos de restrição terapêutica são freqüentes, especialmente na unidade neonatal. São ainda desprezíveis, entretanto, o diagnóstico de morte encefálica e a suspensão ativa do suporte avançado de vida. As decisões de não-reanimação, especialmente no Centro de Tratamento Intensivo, são geralmente tardias. São falhos os processos de decisões participativas e de registro das decisões em prontuário na amostra.

Assistência terminal; ordens quanto à conduta (ética médica); contenção de tratamento; relações profissional-família; morte; pacientes internados


OBJECTIVE: To study the profile of care provided to pediatric patients suffering fatal outcomes at a university hospital, including: description of models, comparisons between units, associated factors, participants involved and records of decisions made. METHODS: Cross-sectional study. One of the investigators reviewed the medical and nursing records of deceased patients. Interviews were held and questionnaires filled out with the care team members over a period of 12 months (May 1, 2002 to April 30, 2003). RESULTS: The study included 106 cases. The most frequent treatment patterns at the hospital were: withholding advanced life support (51.9%) and unsuccessful cardiopulmonary resuscitation (44.3%). The decision to make a do-not-resuscitate order occurred later in the intensive care unit (p < 0.05). The restricted care category was more prevalent in the neonatal unit and among patients with chronic diseases that limit survival (p < 0.05). The professionals that most often participated in the decision-making process were the unit's treating physician and resident (52.8%) and the medical team (31.1%). Parents or guardians were observed to have been involved in 20.8% of cases. For the entire hospital, seven cases (6.6%) of ambiguous or discordant cardiopulmonary resuscitation procedures were found. CONCLUSIONS: Procedures involving limitation of therapy are frequent, especially in the neonatal unit. Diagnosis of brain death and withdrawal of advanced life support are, nevertheless, rare. Decisions to grant do-not-resuscitate orders are generally mate late, especially in the intensive care unit. In this sample procedures for full participation in decisions and for recording decisions were imperfect.

Terminal care; resuscitation orders; withholding treatment; professional-family relations; death; inpatients


ARTIGOS ORIGINAIS

Perfil das condutas médicas que antecedem ao óbito de crianças em um hospital terciário

Henrique A.F. TonelliI; Joaquim A.C. MotaII; José S. OliveiraIII

IDoutor em Ciências da Saúde, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG. Especialista em Pediatria e Cardiologia Infantil pela SBP/SBC

IIDoutor. Professor adjunto, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, UFMG e curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, UFMG

IIIProfessor assistente e Mestre, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, UFMG. Especialista em Medicina Intensiva pela SBP/AMIB

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Henrique de Assis Fonseca Tonelli Rua São João Evangelista, 253/202 - São Pedro CEP 30330-140 - Belo Horizonte, MG Tel.: (31) 3225.0311 Fax: (31) 3281.8298 E-mail: tonelux@uai.com.br. tonelux@uai.com.br.

RESUMO

OBJETIVO: estudar o perfil de assistência aos pacientes pediátricos que evoluem para o óbito em um hospital universitário, incluindo descrição dos modelos, comparações entre setores, associações de fatores, participações envolvidas e registro das decisões.

MÉTODOS: estudo transversal observacional. Foram revistos por um dos autores os registros médicos e de enfermagem dos pacientes falecidos, tendo sido aplicados entrevistas e questionários aos membros da equipe assistente. O período do estudo foi de 12 meses (de 01º de maio de 2002 a 30 de abril de 2003).

RESULTADOS: foram analisados 106 casos. Os modelos de assistência mais empregados no hospital foram não-oferta de suporte de vida (51,9%) e reanimação malsucedida (44,3%). As decisões de não reanimar foram mais tardias no centro de tratamento intensivo (p < 0,05). A categoria restritiva de assistência foi mais prevalente na unidade neonatal e entre os portadores de doenças limitantes da sobrevida (p < 0,05). Entre as formas mais comuns de participação profissional nas decisões, destacaram-se médicos plantonistas e residentes, isoladamente (52,8%), e a equipe médica (31,1%). O envolvimento dos pais ou responsáveis foi registrado em 20,8% dos casos. Na amostra total, foram observados sete casos (6,6%) de registros dúbios ou discordantes da reanimação cardiopulmonar em prontuário.

CONCLUSÕES: os procedimentos de restrição terapêutica são freqüentes, especialmente na unidade neonatal. São ainda desprezíveis, entretanto, o diagnóstico de morte encefálica e a suspensão ativa do suporte avançado de vida. As decisões de não-reanimação, especialmente no Centro de Tratamento Intensivo, são geralmente tardias. São falhos os processos de decisões participativas e de registro das decisões em prontuário na amostra.

Palavras-chave: Assistência terminal/normas, ordens quanto à conduta (ética médica), contenção de tratamento, relações profissional-família/ética, morte, pacientes internados, criança.

Introdução

Ao longo das últimas décadas, importantes transformações da assistência médico-hospitalar culminaram em um míope processo de "medicalização da morte" e obstinação terapêutica nos hospitais.

Dentro do debate ético-filosófico sobre o tema, foram surgindo algumas posições de consenso (ao menos relativas): rejeição da obstinação terapêutica, equivalência entre os procedimentos de não-oferta e interrupção de terapias, possibilidade da interrupção de suporte de vida para alívio do sofrimento, aceitação do encurtamento da vida como efeito não-intencional do tratamento da dor ou da interrupção apropriada do suporte terapêutico, visão da morte provocada ou assistida pelo médico como eticamente inadmissível e, por fim, equivalência entre morte encefálica e morte de todo o corpo com legítima suspensão de suporte vital nesses casos1-4.

No campo das pesquisas, têm sido observados alguns registros significativos: receio de um final de vida sem autonomia, sofrido, prolongado e impessoal entre os pacientes, percepção da morte como fracasso profissional e oferta aos doentes de tratamentos exageradamente extensivos por parte dos médicos e visão médica limitada sobre os possíveis interesses dos pacientes nas decisões envolvendo doentes críticos5,6.

No presente estudo, à luz de tal debate e a partir de uma série de casos, foi realizada a descrição do perfil de assistência aos pacientes que evoluem para óbito nas unidades pediátricas do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Outros aspectos também foram avaliados: intervalos de tempo relacionados à decisão de não reanimar, comparações entre unidades, fatores associados à distribuição dos modelos (local de óbito, estado de doença crônica e instabilidade fisiológica), participações envolvidas e registro das decisões em prontuário.

Método

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFMG. Por seu caráter observacional, dispensou-se o termo de consentimento livre e esclarecido. O trabalho foi desenvolvido nas unidades pediátricas do hospital — pronto atendimento (PA), enfermaria, centro de terapia intensiva (CTI) e unidade neonatal. Também foram observados os óbitos pediátricos do bloco cirúrgico. O estudo foi transversal observacional com admissão prospectiva de pacientes. Utilizou-se uma amostra intencional, incluindo um intervalo de 12 meses (de 1º de maio de 2002 a 30 de abril de 2003). Foram revisados por um dos autores os registros médicos (prontuários, atestados de óbito) e de enfermagem dos pacientes falecidos ao longo desse período. O mesmo pesquisador aplicou uma entrevista semi-estruturada e um questionário estruturado (ambos anônimos) aos membros da equipe assistente. O acesso às fontes foi efetuado, em 93,5% dos casos, com menos de 24 horas em relação ao óbito.

Pelos critérios de inclusão, foram selecionados todos os menores de 16 anos que evoluíram para óbito nas unidades pediátricas, excluindo-os nas seguintes situações: óbito em sala de parto, perda de informação essencial e questionários/entrevistas aplicados duas ou mais semanas após o óbito.

Classificou-se o estado de doença crônica através de uma escala previamente testada em um estudo-piloto com 15 pacientes. Pelas informações objetivas da literatura (análises de sobrevida) e das especialidades acompanhantes, definiram-se as seguintes categorias: condição limitante da sobrevida (chance de sobrevida < 5%) à infância ou à adolescência, condição incapacitante na vida adulta (estado vegetativo permanente), condição não-limitante da sobrevida à infância ou à adolescência e não-incapacitante na vida adulta e condição de prognóstico indefinido e não-portador de doenças crônicas.

Para a avaliação da influência da instabilidade fisiológica, foram utilizados protocolos validados de escore de risco de óbito (dado em percentagem): PRISM/DORA, para avaliações de risco individual de óbito (de toda a internação ou por períodos de 24 horas), em maiores de 28 dias de vida7-8, e SNAPPE-II, para avaliações de risco médio de óbito por faixa de escore (de toda a internação), em menores de 28 dias de vida9.

As modalidades de assistência foram separadas em quatro categorias: morte cerebral10, reanimação cardiorrespiratória (RCR) malsucedida (ventilação com pressão positiva, compressões torácicas, uso de drogas e/ou cardioversão), não-oferta de suporte de vida (RCR, ventilação por tubo endotraqueal, expansão volêmica e/ou apoio farmacológico à circulação) e suspensão ativa do suporte de vida (ventilação por tubo endotraqueal e/ou apoio farmacológico à circulação). Um período mínimo de duas horas entre a decisão de não reanimar e o óbito foi respeitado para caracterização da decisão como orientação de não reanimar. A classificação das decisões foi executada pelo revisor dos registros e a forma de enquadramento, anteriormente testada no estudo-piloto.

O tempo transcorrido até o óbito sob a orientação de não reanimar foi registrado e corrigido para a permanência total do paciente no setor, atenuando a influência das diferentes sobrevidas na análise da agilidade das decisões.

Na avaliação do envolvimento dos profissionais nas decisões sobre a assistência, foi considerada qualquer participação em discussões e, na análise do envolvimento dos responsáveis, foram consideradas qualquer manifestação espontânea ou induzida de vontades ou a simples concordância com as decisões da equipe, após amplo esclarecimento.

Pelo isolamento físico e operacional da unidade neonatal e por suas restrições assistenciais (limitada a neonatos nascidos no hospital), utilizou-se o agrupamento binário (unidade neonatal versus demais unidades) para as análises comparativas.

Na análise dos dados, para as variáveis categóricas, registrou-se a freqüência ou a proporção de ocorrência. Para as variáveis quantitativas, realizaram-se medidas de tendência central e variabilidade. Na comparação entre proporções, foram utilizados os testes de qui-quadrado (Yates) e Fisher, quando apropriado; para a comparação de variáveis quantitativas, foi empregado o teste não-paramétrico de Kruskal-Wallis. O valor de p = 0,05 foi considerado ponto de corte para a significância estatística. Na informatização dos dados, utilizou-se o programa Epi-Info (versão 6.04d).

Resultados

A amostra de pacientes totalizou 112 óbitos e seis perdas (uma no PA, duas na unidade neonatal e três na enfermaria), perfazendo 106 casos analisados.

A relação gênero feminino/masculino na amostra global foi de 1,52. Excluindo-se os dados da unidade neonatal, houve predomínio de óbitos entre menores de 24 meses de idade (39 em 65, ou 60%).

A distribuição dos pacientes quanto ao local de óbito no hospital é apresentada na Tabela 1. A relação das principais causas de óbito é apresentada na Tabela 2. Por fim, na Tabela 3, é apresentada a classificação dos pacientes quanto a seu estado de doença crônica.

Quanto às estimativas de risco de óbito realizadas pelos escores, a percentagem de perda de informação por negligência foi desprezível (inferior a 0,5%). As perdas decorreram, essencialmente, das restrições impostas pelos protocolos (critérios de exclusão) ou pela situação dos doentes (por exemplo, paciente terminal com limitação de coleta de exames laboratoriais). A taxa de preenchimento dos escores foi de 81,3% no CTI infantil e 70,7% na unidade neonatal. O número inexpressivo de dados nas outras unidades inibiu as descrições de risco nesses setores.

Na Tabela 4, estão representados os dados relativos ao risco individual de óbito estimado a partir do PRISM/DORA no CTI infantil. A distribuição dos modelos de assistência no hospital como um todo está representada na Tabela 5.

O modelo mais empregado foi a não-oferta de suporte de vida (55 casos, ou 51,9%), incluindo 53 casos (96,4%) de ordens de não-reanimação, sendo 23 ordens isoladas e 30 associadas a outras modalidades de não-oferta. Apenas dois registros das decisões em prontuário foram observados. Dos 53 casos de decisão de não reanimar, 30 crianças (56,6%) já estavam em uso de ventilação pulmonar mecânica, e 24 (45,3%), de apoio farmacológico à circulação por ocasião do estabelecimento dessa orientação; oito pacientes (15,1%) já tinham sido submetidos a RCR no local do óbito antes do desfecho final.

O segundo modelo mais empregado foi a reanimação malsucedida (47 casos, ou 44,3%). O diagnóstico de morte encefálica foi observado em apenas três casos (2,8%), sem nenhuma confirmação por exame (eletroencefalograma). Um único caso de suspensão ativa do suporte de vida foi registrado na amostra, envolvendo a retirada de prostaglandina E1 em portador da síndrome de hipoplasia do ventrículo esquerdo.

Na Tabela 6, está representada a comparação entre as três principais unidades do estudo quanto à distribuição dos diferentes modelos. Os intervalos de tempo ligados à duração da internação e à decisão de não reanimar são apresentados na Tabela 7.

Sobre o tempo transcorrido entre a decisão de não reanimar e o óbito, em 50,9% dos indivíduos (n = 27), o intervalo medido foi superior a 12 horas. Na enfermaria pediátrica, esse percentual chegou a 83,3%, a 60% na unidade neonatal e a 23,5% no CTI.

Quanto à relação do tempo transcorrido sob a ordem de não reanimar e o tempo de permanência no setor, foram observadas diferenças significativas nos seguintes confrontos: CTI versus unidade neonatal (p < 0,01) e enfermaria pediátrica (p < 0,01), com valores menores no CTI.

A análise univariada dos possíveis fatores associados à distribuição dos modelos de assistência (categorizados de forma binária) é apresentada na Tabela 8. As participações profissionais envolvidas na definição dos modelos estão representadas na Tabela 9.

Na avaliação por setor, o maior percentual de participação da equipe foi registrado na enfermaria (70%, ou sete casos em 10) e o menor percentual, no CTI (22,9%, ou 11 em 48), com valores intermediários na unidade neonatal (36,6%, ou 15 em 41).

O envolvimento dos pais durante as discussões foi observado em 22 casos (20,8%).

O caráter súbito do evento ou a rapidez de progressão da doença foram apontados como principal motivo para as formas de decisão pouco participativas — limitadas ao plantonista e ao residente (n = 56) ou excludentes do envolvimento do médico ou da especialidade acompanhante (n = 59) — e para as decisões excludentes do envolvimento dos pais (n = 84). Os percentuais nesses casos foram de, respectivamente, 82,1, 72,9 e 66,7%. Outra justificativa freqüente foi a falta de oportunidade de manifestação — na exclusão do médico ou da especialidade acompanhante (23,7%) e na exclusão dos pais (44%). Nesse último caso, o caráter óbvio da decisão tomada (melhor interesse do doente) surgiu como principal justificativa (43,2%).

Foram observados quatro casos de discrepância entre o modelo adotado na prática e o registro no prontuário, nos quais a não-execução de RCR na prática foi contradita pelo registro de "não-resposta às manobras de reanimação", conduta justificada pelo receio das possíveis conseqüências legais da restrição terapêutica. Três casos de registro dúbio ou impreciso no prontuário também foram assinalados, quando a não-realização de RCR veio acompanhada do registro de "realizadas manobras de suporte sem resposta" (considerando-se o termo "suporte" vago ou dúbio: suporte de sustentação à vida ou suporte paliativo?), atitude novamente justificada pelo receio das conseqüências legais na restrição terapêutica.

Discussão

Nessa amostra, foi observada uma grande prevalência de doenças crônicas, muitas das quais limitantes da sobrevida, o que traduz a complexidade dos pacientes dessa série.

As baixas medianas de risco individual de óbito estimadas pelo PRISM/DORA no CTI revelam, no subgrupo estudado, a pobre relação entre a estimativa do risco e o óbito. Além de possíveis erros relacionados ao registro dos protocolos, a prevalência de algumas doenças — neoplasias em geral, cardiopatias congênitas, síndromes genéticas — implicam, reconhecidamente, um pior desempenho do escore em termos de prognóstico7.

Os dados da atual série reafirmam a alta prevalência das formas restritivas de assistência (não-oferta ou suspensão de terapias) observadas na literatura. A restrição terapêutica encontra-se, entretanto, muito mais sedimentada nos EUA, no Canadá e na Europa Ocidental. Países em desenvolvimento exibem, em geral, um perfil mais conservador no que tange ao seu emprego11,12. O único estudo brasileiro do gênero11, desenvolvido em um CTI infantil, revelou como pode ser freqüente a limitação terapêutica em nosso meio (40,9% da amostra).

Excluindo-se os registros das unidades neonatais, observam-se menores proporções de morte encefálica e de modalidades restritivas (não-oferta e suspensão de suporte de vida) no presente estudo (n = 65), comparando-se com outros dados da literatura11-21: 3% de morte encefálica em comparação a 6,5 a 38; 38,5% de restrição terapêutica em comparação a 28 a 76,7% (geralmente > 40%); 0% de suspensão do suporte essencial à vida em comparação a 4,7 a 50,6% (geralmente > 15%). Por outro lado, nesse estudo foi observada uma maior proporção de reanimação malsucedida: 58,5% em comparação a 16,9 a 46,3% nos demais trabalhos.

Analisando-se, exclusivamente, as unidades neonatais, observam-se proporções de modalidades restritivas na atual série (n = 41) similares às de outros trabalhos22-26: 75,6% em comparação a 52 a 86,6%. A suspensão do suporte avançado de vida permanece muito mais freqüente em outros estudos: 2,4% contra 66,5 a 72,4%.

Na presente série, observaram-se apenas dois registros formais das decisões de limitação de investimentos. O hábito do registro formal está muito mais arraigado em outros países17,26.

Como possíveis razões para as discrepâncias observadas, podem-se aventar: distanciamento temporal e variações amostrais entre as séries, diferenças de formação profissional e de organização das equipes de saúde, variações de cenários culturais, religiosos e jurídicos (implicações legais).

Na comparação direta entre as unidades (enfermaria, CTI e unidade neonatal), observou-se maior proporção de reanimação malsucedida no CTI (56,3%) e de modelos restritivos (incluindo a morte encefálica) na unidade neonatal (78%). A seleção de pacientes e a maior pressão para o emprego da reanimação no CTI, além de uma maior facilidade para a execução das ações restritivas entre os neonatologistas (vínculos mais tênues entre pais e neonatos), são explicações em potencial para tais diferenças.

Os intervalos de tempo entre a decisão de não reanimar e o óbito, embora sofrendo influência da forma de evolução da doença (esclarecimento de diagnóstico e prognóstico), indicam que, no CTI, a não-reanimação foi decidida após um investimento agressivo inicial, mantido até as proximidades do óbito. A busca pela quase certeza nos prognósticos e a morosidade no processo de decisão podem ter retardado a decisão de não reanimar no setor.

As doenças crônicas limitantes da sobrevida e o óbito na unidade neonatal estiveram associados, de maneira significativa, à restrição terapêutica. Outras séries registram constatações similares em relação às doenças crônicas graves ou debilitantes11,13. A análise do local do óbito estratificada pelo estado de doença crônica confirma a tendência de limitação de terapias na unidade neonatal. Quanto à instabilidade fisiológica medida pelos escores, não foi observada diferença significativa de riscos (PRISM/DORA e SNAPPE-II) entre as categorias de assistência discriminadas.

Observou-se, na presente série, um predomínio preocupante da forma de participação que conta, exclusivamente, com os médicos plantonista e residente (52,8%) e que exclui os familiares do processo (79,2%). As decisões que envolvem a equipe de saúde e os familiares, através de reuniões formais, têm sido registradas com freqüência na literatura12-18,21,22,24-26. A falta de oportunidade para manifestação foi apontada como causa importante das constatações, indicando a precariedade do processo de envolvimento dos interessados (familiares e outros profissionais) nas discussões.

A argumentação do melhor interesse do doente para a exclusão dos pais revela, por outro lado, sinais de paternalismo na relação envolvendo médicos e familiares. Embora, como destaca Kipper27, observe-se, no Brasil, uma dificuldade cultural para o estímulo de posturas mais autônomas dos familiares nas decisões, essa atitude passiva não mudará facilmente, sem que a classe médica assuma a iniciativa do processo de inclusão, por mais desconfortável e inoportuno que pareça, capacitando-se tecnicamente para tal.

Ausência igualmente preocupante foi a dos profissionais não-médicos nas decisões. Trabalhos da literatura sugerem que os profissionais de enfermagem desejam uma maior participação nas discussões sobre a assistência no final da vida e que as concepções sobre a melhor maneira de assistir os doentes são um tanto divergentes entre esses profissionais e os médicos28.

A discordância entre o modelo adotado na prática e o registro no prontuário ou o registro dúbio das ações executadas na prática, embora observados em apenas sete casos, não deixam de causar certo receio, dado o significado ético de tais procedimentos dentro de um hospital universitário. Tal iniciativa constitui, certamente, uma grave violação ética, além de contribuir para um sentimento de desconfiança e descrédito dentro da equipe assistente. Constatações semelhantes foram observadas no Brasil por Torreão et al.29, com falsos registros de procedimentos de RCR em 29 dentre 40 pacientes que evoluíram para óbito sem serem submetidos efetivamente à reanimação.

O receio das possíveis implicações legais relacionadas à restrição de investimentos tornou-se evidente no registro inadequado em prontuário. O cenário de desamparo legal no qual os médicos brasileiros atuam parece contribuir, sensivelmente, para algumas práticas que aproximam a conduta médica da obstinação terapêutica. A interpretação mais conservadora do Código Penal distancia o profissional médico da ortotanásia (morte com alívio do sofrimento e no tempo certo), impelindo-o para a "distanásia" (morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento) pelo receio da acusação de omissão de socorro. À luz da escassa jurisprudência brasileira extraída da análise de casos concretos, parece injustificável tanto receio. Movimentos jurídicos renovadores propõem, contudo, a reformulação do Código Penal (entendendo a ortotanásia como mero exercício regular da medicina), ou a modificação na forma de interpretar o atual Código (admitindo a limitação da intervenção médica embasada em justificação ética e moral)30.

A despeito do aparente desamparo legal, o desenvolvimento de protocolos de limitação do esforço terapêutico nos hospitais tornou-se uma necessidade urgente. Sem a pretensão do estabelecimento de normas rígidas para o direcionamento das decisões, os protocolos incentivariam a discussão mais ampla das questões e, em tempo oportuno, a organização do debate, o registro formal das decisões devidamente embasadas e o envolvimento dos familiares na forma de consentimento esclarecido. Além do apoio das instituições hospitalares, os protocolos poderiam receber o respaldo de associações médicas e conselhos de medicina. Suas possíveis implicações legais deveriam ser encaradas de maneira serena e corajosa por todos aqueles que atuam dentro dos princípios da boa prática médica.

Conclui-se que são freqüentes os procedimentos de restrição terapêutica em crianças que evoluem para óbito nas unidades pediátricas do HC-UFMG, aproximando-se a proporção de restrição empregada daquelas observadas em registros similares da literatura. São ainda desprezíveis, entretanto, as freqüências de diagnóstico de morte encefálica e de emprego da suspensão ativa do suporte avançado de vida. As decisões de não-reanimação no CTI são acompanhadas, na maioria das vezes, por tentativas iniciais de investimento terapêutico, mantidas, habitualmente, até as proximidades do óbito. A restrição terapêutica é empregada em maior freqüência na unidade neonatal e entre os portadores de afecções crônicas limitantes da sobrevida. As decisões éticas resultantes de participações mais amplas de profissionais e familiares são ainda restritas. O receio das possíveis implicações legais da limitação terapêutica parece ser um fator determinante do registro inapropriado das orientações de não-reanimação. Análises em profundidade, envolvendo aspectos específicos do processo, são necessárias para um maior esclarecimento dos determinantes envolvidos.

Artigo submetido em 19.08.04, aceito em 27.01.05

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005

    Histórico

    • Aceito
      27 Jan 2005
    • Recebido
      19 Ago 2004
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