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Acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro

Resumos

OBJETIVO: Conhecer a acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro, reconstruindo trajetória de contatos com unidades de saúde no evento atual e caracterizando vínculos com atenção básica e adequação da morbidade ao perfil organizacional dos serviços. MÉTODOS: Estudo descritivo, transversal, realizado em novembro de 2002 e de fevereiro a maio de 2003, nos cinco serviços públicos de urgência/emergência pediátrica, em amostra de 383 crianças menores de 5 anos, residentes no Recife, calculada com 20% de adequação da morbidade, erro de 5% e perda de 10%. Utilizou-se instrumento padronizado aplicado por oito entrevistadores, devidamente treinados. RESULTADOS: Na trajetória até contato atual, 38,5% das crianças procuraram os seguintes serviços: pronto-socorro (48,3%), Saúde da Família (19,7%) e centro de saúde (17%), com 18,4% tendo dificuldades na atenção primária; 39,4% utilizaram apenas pronto-socorro e 54,4% recorreram em algum momento a esse tipo de serviço. Cerca de 88% são cadastradas numa unidade: 34,5% na Saúde da Família (56,8% não utilizaram serviços e 25,6% utilizaram) e 42% no centro de saúde (59,1% não usaram serviços e 18,2% recorreram ao próprio). Apenas 18,9% preferem unidade básica quando a criança adoece. Assim, no contato atual, a maior parte foi trazida ao serviço preferido (gosta/confia nos profissionais, acessibilidade geográfica, qualidade do atendimento). A demanda de 36,5% foi considerada adequada. CONCLUSÕES: Apesar das dificuldades da rede básica para garantir acesso e resolubilidade, parte substancial dessa demanda espontânea decorre da enorme legitimidade dos serviços de urgência perante a população.

Acessibilidade; atenção primária; sistema de referência e contra-referência; avaliação em saúde


OBJECTIVE: To investigate access to basic actions among children attended at emergency departments, reconstructing their trajectories to contact with the service for the event in question, characterizing links with basic care and the appropriateness of morbidity to the organizational profile of the service attended. METHODS: Cross-sectional study, carried out in November 2002 and from February to May 2003 at five public pediatric emergency services, of a sample of 383 children under five years old, resident in Recife, calculated for an estimated 20% of appropriate morbidity, 5% error and 10% loss. Using standard instruments applied by eight purposely-trained interviewers. RESULTS: During their trajectories to reach the contact in question, 38.5% of the children had sought other services, primarily: emergency (48.3%), family health team (19.7%) and health centers (17%), with 18.4% having experienced difficulties with primary care. 39.4% only used emergency and at some point 54.4% had resorted to this type of service. Approximately 88% are registered with a unit: 34.5% with the family health team (56.8% of these didn't use the service and 25.6% had sought them), 42% at health centers (59.1% of those didn't use the service and 18.2% had resorted to them). Only 18.9% preferred a basic unit when their child was ill, and therefore for the contact in question, the majority had been brought to their preferred service (like/confide in our professionals, geographic accessibility, and quality of care). Just 36.5% of the demand was defined as appropriate. CONCLUSIONS: Despite of difficulties with the basic network in guaranteeing access and resolution, a substantial part of this spontaneous demand came from the enormous legitimacy of the emergency services as seen by the population.

Accessibility; primary care; reference and counter-reference system; healthcare evaluation


ARTIGO ORIGINAL

Acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro

Maria Helena KovacsI; Katia V. O. FelicianoII; Sílvia W. SarinhoIII; Ana Amélia C. A. VerasIV

IMestre em Medicina Preventiva. Grupo de Pesquisa em Avaliação de Serviços de Saúde, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Pernambuco (FCM/UPE), Recife, PE

IIDoutora em Medicina Preventiva. Grupo de Estudos em Avaliação de Serviços de Saúde, IMIP, Recife, PE

IIIDoutora em Pediatria. Grupo de Pesquisa em Avaliação de Serviços de Saúde, FMC/UPE, Recife, PE

IVMestre em Pediatria. Grupo de Pesquisa em Avaliação de Serviços de Saúde, FMC/UPE, Secretaria de Saúde do Recife, Recife, PE

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Helena Kovacs Rua Setúbal, 860 B/1103, Boa Viagem CEP: 51030-010 – Recife, PE Tel.: (81) 3423.6851

RESUMO

OBJETIVO: Conhecer a acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro, reconstruindo trajetória de contatos com unidades de saúde no evento atual e caracterizando vínculos com atenção básica e adequação da morbidade ao perfil organizacional dos serviços.

MÉTODOS: Estudo descritivo, transversal, realizado em novembro de 2002 e de fevereiro a maio de 2003, nos cinco serviços públicos de urgência/emergência pediátrica, em amostra de 383 crianças menores de 5 anos, residentes no Recife, calculada com 20% de adequação da morbidade, erro de 5% e perda de 10%. Utilizou-se instrumento padronizado aplicado por oito entrevistadores, devidamente treinados.

RESULTADOS: Na trajetória até contato atual, 38,5% das crianças procuraram os seguintes serviços: pronto-socorro (48,3%), Saúde da Família (19,7%) e centro de saúde (17%), com 18,4% tendo dificuldades na atenção primária; 39,4% utilizaram apenas pronto-socorro e 54,4% recorreram em algum momento a esse tipo de serviço. Cerca de 88% são cadastradas numa unidade: 34,5% na Saúde da Família (56,8% não utilizaram serviços e 25,6% utilizaram) e 42% no centro de saúde (59,1% não usaram serviços e 18,2% recorreram ao próprio). Apenas 18,9% preferem unidade básica quando a criança adoece. Assim, no contato atual, a maior parte foi trazida ao serviço preferido (gosta/confia nos profissionais, acessibilidade geográfica, qualidade do atendimento). A demanda de 36,5% foi considerada adequada.

CONCLUSÕES: Apesar das dificuldades da rede básica para garantir acesso e resolubilidade, parte substancial dessa demanda espontânea decorre da enorme legitimidade dos serviços de urgência perante a população.

Palavras-chave: Acessibilidade, atenção primária, sistema de referência e contra-referência, avaliação em saúde.

Introdução

A integralidade, uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), deve nortear a prática de cada profissional, a organização do processo de trabalho em saúde e as respostas governamentais para desenvolvimento de um esforço intersetorial para melhorar as condições de vida. No setor saúde, a integralidade é compreendida como resultado do trabalho intra-setorial para assegurar acesso à finalização do cuidado, tanto na unidade, por meio da equipe de saúde, como na rede de serviços, por meio do sistema de referência e contra-referência1,2. Nessas circunstâncias, seria fruto da articulação entre serviços, cada um "cumprindo sua parte".

Assim, as unidades de saúde responsáveis pela atenção primária atuariam como um nível próprio de atendimento, pressupondo alta resolubilidade frente às demandas básicas e como "porta de entrada" para atenção secundária (ambulatórios especializados, serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, algumas unidades de pronto-socorro) e terciária (serviços hospitalares de maior complexidade), requerendo alta sensibilidade diagnóstica para propor encaminhamentos adequados no interior do sistema assistencial3. Os serviços de média e alta complexidade seriam compreendidos como lugares para oferecer o atendimento especializado necessário naquele momento.

Apesar dos significativos avanços obtidos no processo de descentralização4, sobretudo a partir da estratégia Saúde da Família, a relação oferta e demanda na rede básica continua expressando o confronto de interesses e necessidades5,6, o qual propicia a procura dos serviços de maior densidade tecnológica para problemas de saúde que, olhados da perspectiva técnica, poderiam ser resolvidos no nível primário. O acolhimento, proposta de reorganização dos serviços para garantir acesso, resolubilidade e atendimento humanizado, é uma tentativa de minimizar esses obstáculos7. Contudo, afora as dificuldades da rede de serviços, a demanda espontânea traduz outras formas de conceber, valorizar e agir frente ao adoecimento1,2,8,9.

As contradições nas relações entre profissionais e serviços repercutem na implantação do SUS9, já que práticas consolidadas no trabalho cotidiano são insuficientes para encarar as exigências de uma atuação cujo poder resolutivo excederia as demandas pontuais. A resolubilidade da rede hierarquizada, em cada nível e no sistema como um todo, está vinculada à qualidade técnica definida segundo os critérios e normas, às relações interpessoais, à globalidade e continuidade na utilização dos recursos disponíveis, acrescidos dos conhecimentos, experiências e concepções que orientam as decisões acerca da saúde e da doença num dado contexto sociocultural.

Esses aspectos perpassam interações entre oferta e demanda na atenção à criança, com ambulatórios especializados e serviços de urgência sendo importantes portas de entrada ao sistema de saúde. Em 1996, no Pronto-Socorro do Hospital Municipal de Volta Redonda (RJ), 66,5% das consultas pediátricas não foram de urgência/emergência2. As experiências das crianças encaminhadas também evidenciam limitações na efetivação da hierarquização. Na Emergência Pediátrica do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, em 1994, 70,7% das crianças chegaram referidas por unidades públicas do segundo e terceiro níveis de atenção, em 32,3% dos casos sem especificar motivo e em 25,6% devido à falta de pediatra10.

Num centro de referência pediátrica, com atendimento secundário e terciário, o Hospital Municipal Jesus (RJ), a demanda espontânea correspondeu a 56,8% das crianças que buscaram atendimento. A triagem não observava critérios fundamentais, tais como priorizar criança referida, aplicar enfoque de risco, evitar encaminhamento desnecessário, facilitar aprazamento das consultas e ser realizada durante todo período de trabalho, tornando-se uma das principais barreiras para acesso das crianças encaminhadas aos especialistas do serviço. Além disso, as crianças não tinham retorno agendado para ambulatório geral logo após a consulta11.

No estado de Pernambuco, em 1996, um estudo desenvolvido em 14 unidades de saúde que implementavam ações de controle da diarréia, duas localizadas no Recife, constatou alta freqüência de rechaço da demanda de menores de 5 anos, além da necessidade de chegar muito cedo para conseguir consulta e da demora para atendimento. Não existia sistema formal de referência, com a escolha do serviço para onde encaminhar a criança ficando, em 85,7% dos casos, a critério do profissional12. Certamente, esses obstáculos organizacionais são motivos importantes para que a população prefira procurar, primeiro, os serviços que funcionam 24 horas.

Todas essas questões retratando a vulnerabilidade da população infantil, que continua adoecendo e morrendo por causas evitáveis, não podem ser ignoradas na discussão sobre reorganização da rede hierarquizada de saúde. Por isso, nesta pesquisa avaliativa, buscou-se conhecer a acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro, reconstruindo trajetória de contatos com unidades de saúde no evento atual e caracterizando vínculos com atenção básica e adequação da morbidade ao perfil organizacional dos serviços. Espera-se, assim, contribuir para o desenho de novos circuitos dentro do sistema de saúde.

Metodologia

Estudo descritivo, transversal, desenvolvido nas cinco unidades públicas de referência para urgência/emergência pediátrica: Hospital de Pediatria Helena Moura (HPHM), Hospital de Pediatria Maria Cravo Gama (HPMCG), serviços de atenção secundária cuja demanda procede do Recife e Região Metropolitana, Hospital Barão de Lucena (HBL), Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP) e Hospital da Restauração (HR), hospitais terciários, de caráter estadual. Para cada serviço, calculou-se o tamanho da amostra com base na média mensal de consultas de pronto-socorro, com dados de 2001 e primeiro semestre de 2002, estimando 20% de adequação da morbidade ao nível de complexidade, erro de 5% e perdas de 10%13.

Identificaram-se as crianças selecionadas por meio da listagem de todas com idade até 4 anos, 11 meses e 29 dias, residentes no Recife, que procuraram atendimento, registrando nome, idade e local de residência da primeira criança elegível que chegou após o início da coleta. A seguir, de acordo com intervalo fixo correspondente à "fração da amostra", prosseguiu-se selecionando a próxima que preenchia critérios de inclusão no estudo. Excluíram-se quatro crianças (responsáveis não esperaram atendimento e prontuários sem informações necessárias). A coleta foi feita de modo ininterrupto a partir da identificação da primeira criança elegível, em novembro de 2002 e de fevereiro a maio de 2003, gastando para cada unidade, em média, 2 semanas.

Se a criança selecionada havia sido incluída na pesquisa em um contato anterior com o mesmo serviço, ou quando ocorreu algum engano no preenchimento das informações sobre critérios de inclusão na abertura da ficha de atendimento ou, ainda, quando a pessoa responsável pela criança selecionada recusou-se a participar - houve três recusas - foi escolhida a próxima criança que chegou ao serviço atendendo a esses critérios, com intervalo previsto para "fração da amostra" sendo contado a partir do caso excluído ou que havia recusado. A amostra constou de 383 crianças. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IMIP em 02/11/2002.

O questionário obteve respostas: 1) das pessoas que trouxeram a criança - idade, sexo, residência e relação com responsável; idade, sexo, escolaridade e ocupação do responsável; tipo de demanda, uso de serviços nesse episódio, sendo incluídas perguntas abertas sobre os motivos para escolher serviço atual, unidade onde a criança está cadastrada, os motivos para escolha, serviço preferido quando doente e os motivos da preferência, as quais foram gravadas e transcritas na íntegra pelo entrevistador; e 2) dos prontuários - diagnóstico e conduta médica. Os entrevistados deram seu consentimento livre e esclarecido. A equipe de campo constou de supervisor e oito entrevistadores experientes em pesquisa, devidamente treinados. Realizaram-se estudo piloto e controle de qualidade sobre amostragem, coleta e transcrições das gravações.

Três pediatras avaliaram a adequação da morbidade à capacidade tecnológica do serviço, considerando: dia e hora do atendimento, idade da criança, tempo de doença, contato prévio com serviço, demanda por encaminhamento, hipóteses diagnósticas e condutas no contato atual. Construíram-se cinco categorias: 1) adequação pela ocorrência (acidente, violência, convulsão, envenenamento, picadas de cobra/escorpião, bronquiolite em menores de 6 meses, eventos que requeriam internação, referência para outra unidade de urgência, hidratação venosa e corticóide injetável); 2) adequação pela aderência à orientação (encaminhamento); 3) adequação pela hora do atendimento (pronto-atendimento poderia ser feito na rede básica, mas demandaram de segunda à sexta-feira das 17h às 8h; 4) adequação pelo dia do atendimento (semelhante ao anterior, mas demandaram nos fins de semana); e 5) inadequação (necessidades de atendimento tinham caráter ambulatorial).

As respostas das perguntas pré-codificadas com opção "outras" receberam código específico, e das perguntas abertas foram estudadas para mapear "núcleos de sentido" emergentes14. Encaminhou-se a análise temática para contagem de freqüência das unidades de significação, introduzindo essas variáveis na matriz construída com o programa Epi-Info 6.04. As variáveis foram cruzadas com serviços procurados no contato atual. Na comparação das crianças atendidas nas cinco unidades, estabeleceu-se a existência de diferenças significativas entre: a) as medianas com análise de variância de Kruskal-Wallis; e b) as proporções com qui-quadrado. O termo "tendências" foi usado para resultados em que se esboçam diferenças sem significância estatística.

Resultados

A maior parte das crianças (56,7%) é do sexo feminino, com mediana de idade de 19 meses e intervalo de 9 a 35 meses entre primeiro e terceiro quartis, 15,6% menores de 5 meses; no contato atual, 55,9% utilizam unidade de referência do Distrito Sanitário onde moram; 95,8% vieram com seus responsáveis, predominantemente mulheres (95,8%), com idade entre 14 e 60 anos, mediana de 25 anos, 18,8% menores de 20 anos; a mediana de escolaridade é de 6 anos, 1,4% nunca estudou, mas 9,9% são analfabetos, sendo 91,9% a mãe, 3,8% um dos avós e 2,7% o pai. Dos 31,8% inseridos no mercado de trabalho, 31,2% trabalham até 20 horas semanais, 19,6% de 21 a 40 horas e 49,2% mais de 41 horas.

Não existe diferença entre as unidades quanto à mediana do tempo transcorrido entre o início do evento e o primeiro contato da criança com o serviço de saúde, a qual é de 48 horas, com intervalo entre o primeiro e o terceiro quartis de 24 a 72 horas. Da mesma forma para crianças que procuraram serviço anteriormente (38,5%), em relação à mediana do tempo entre o início do evento e o contato atual com o pronto-socorro, que é de 96 horas, com intervalo entre o primeiro e o terceiro quartis de 72 a 168 horas.

Os motivos para escolher os serviços do contato atual são qualidade geral do atendimento ("é uma boa referência", "atendimento é o melhor", "tem mais recursos", "muito conceituado" e "trata bem as crianças"); acessibilidade geográfica, mais mencionada no HPMCG e HBL e experiência prévia pessoal no IMIP e HBL; qualidade da atenção médica ("examina bem", "remédio que passa é sempre certo" e "solicita exame"), apresentando forte tendência para maior valorização no HR e IMIP e experiência prévia da rede social no IMIP; disponibilidade de pediatra; resolubilidade do serviço, referida exclusivamente no IMIP e HR; e acesso à medicação (Tabela 1).

Na trajetória até o contato atual, 61,5% não utilizaram serviços de saúde, mais freqüente no HPMCG e HBL, enquanto apenas 2,1% recorreram ao agente comunitário. O contato prévio com dois ou mais serviços foi maior no IMIP e HR. Praticamente metade das crianças que buscaram serviço realizou primeiro contato com unidades de pronto-socorro; seguida pelas de Saúde da Família, mais utilizadas no HBL e menos no IMIP e HR; pelos centros de saúde, as policlínicas, outros serviços públicos e privados. No primeiro contato, percentual superior no HBL (54,6%) e inferior no IMIP (16,2%) demandaram para rede básica (Tabela 2).

Entre crianças que procuraram serviço anteriormente, 39,4% utilizaram apenas prontos-socorros, enquanto 54,4% recorreram, em algum momento, a esse tipo de serviço. As justificativas para essa escolha são acessibilidade geográfica, experiência prévia pessoal, satisfação com o atendimento, orientação da rede social cuja alusão é relativamente maior no HPHM, agilidade do atendimento, persistência/agravamento da doença e disponibilidade de pediatra (Tabela 3).

Nos contatos prévios com os serviços, 38,8% das crianças tiveram dificuldades, das quais 47,4% na rede básica, relativamente mais citadas no HPMCG (83,3%) e HBL (62,5%) e menos no IMIP (27,8%). As maiores dificuldades foram agendamento da consulta para outro dia (33,3%), não conseguir ficha (25,9%), marcação pelo agente de saúde (14,8%), excesso de demanda (14,8%), não ter médico (14,8%) e não dispor de pediatra (7,4%).

As razões mais comuns para não utilizar previamente serviços de saúde foram: percepções sobre características das manifestações e expectativas de solução caseira do problema tornaram essa demanda desnecessária, apresentando tendência para ser maior no HPHM e menor no HBL; preferência pelo serviço atual, com forte tendência para ser mais citada no IMIP e menos no HPMCG; obstáculos para acesso a outros serviços e acessibilidade geográfica. Além disso, a inserção do responsável no mercado de trabalho, insatisfação com conduta e falta de resolubilidade em outros serviços (Tabela 4).

Aproximadamente 88% das crianças estão matriculadas em algum serviço de saúde. Dentre aquelas cadastradas nas Unidades de Saúde da Família, 56,8% não procuraram serviço e 25,6% utilizaram-no, proporção relativamente maior no HPHM e HPMCG. Das matriculadas em centros de saúde, vínculo mais presente no HR e menos no HBL, 59,1% não usaram serviços, especialmente no HPMCG e 18,2% recorreram ao próprio centro (Tabela 5).

A quase totalidade dos responsáveis (99,7%) prefere levar a criança doente a um determinado serviço de saúde, priorizando unidades especializadas, hospitais públicos e hospitais filantrópicos. Assim, no contato atual, a maioria das crianças utiliza o serviço preferido, sobretudo no HBL. Essa preferência é justificada pelo gosto/confiança nos profissionais (menos valorizado no HR), acessibilidade geográfica, qualidade e rapidez do atendimento, experiência prévia pessoal e resolubilidade. Apenas 18,9% preferem a unidade da rede básica, sendo maior no HR e menor no IMIP (Tabela 6).

Constata-se que 63,5% das crianças apresentavam problemas de saúde passíveis de serem solucionados na rede básica, relativamente superior no HBL (72,6%) e inferior no HR (49,2%). Dentre os 36,5% cuja demanda foi considerada como adequada, 15,2% necessitavam de atendimento em serviço de urgência/emergência e 3,9% chegaram encaminhadas. As demais tinham necessidades de pronto-atendimento que poderiam ter sido resolvidas no nível primário, sua adequação sendo conseqüência da hora (7%) e do dia em que demandaram (10,4%) (Tabela 7).

Discussão

Semelhante a outros estudos sobre perfil de morbidade da clientela dos prontos-socorros2, apenas 15,2% dos agravos que motivaram demanda infantil requeriam potencial tecnológico condizente com a capacidade assistencial da unidade utilizada. Outra evidência do descumprimento das expectativas técnicas de racionalização é o caráter residual dos encaminhamentos. Esse resultado é surpreendente, pois com a expansão do Programa Saúde da Família (PSF) no Recife, considerando que a resolubilidade da equipe é ainda restrita, esperar-se-ia maior proporção de encaminhamentos nas situações que exigissem pronto-atendimento.

Na explicação da grande demanda espontânea para serviços de urgência/emergência, sobressaem-se aspectos do plano macro-estrutural - descompasso entre crescimento da rede básica, necessidades de atenção e indefinições sobre papel das unidades básicas, percepções dos responsáveis pelas crianças sobre PSF (menor oferta de consulta médica e falta de hábito da criança ser consultada pela enfermeira), concepções sobre necessidades de pronto-atendimento, valores relativos à utilização das urgências pediátricas enraizados no imaginário da população2,9 - e do cotidiano dos serviços - acessibilidade à rede básica e qualidade do atendimento prestado.

Acerca das limitações no acesso à atenção primária, cabe explorar quatro possibilidades de que haja conflitos de interesses entre oferta e demanda. Na primeira, a criança teria apresentado um quadro que exigia atendimento mais rápido, passível de resolução no nível primário, em horário ou dia em que essas unidades estão fechadas, tornando adequada a demanda para serviço de urgência/emergência. Neste estudo, essas duas situações correspondem a apenas 17,4% dos casos. Na segunda, como a maioria das crianças não utilizou previamente o serviço no evento atual, estaria associada à inserção dos seus responsáveis no mercado de trabalho. Porém, somente 38,6% desses são trabalhadores, e pouquíssimos aludiram ao trabalho nas justificativas para não procurar serviços.

A terceira possibilidade remete à organização do atendimento, vínculos entre usuário e equipe e/ou profissional e expectativas quanto à capacidade do serviço de satisfazer necessidades imediatas5,6. Nesse sentido, as dificuldades de acesso à rede básica foram motivações importantes para não procurar serviço antes do atual. Essas percepções, certamente, estimularam grande demanda das crianças que buscaram serviços para urgências/emergências. As experiências de familiares, amigos e vizinhos influenciaram a utilização dos serviços8. Finalmente, na quarta possibilidade, apesar da expansão do PSF, o acesso geográfico tem peso na opção de não buscar outros serviços no evento atual: para 42%, a unidade onde foi entrevistado é a mais próxima de casa, fator que pode representar o principal motivo da escolha. O acesso geográfico foi fundamental para eleição do serviço de urgência procurado no episódio atual.

Praticamente todas as crianças estão cadastradas em algum serviço de saúde, sugerindo conhecimento da rede de serviços públicos pelos responsáveis. No evento atual, contudo, foi pequena a utilização do serviço ao qual a criança está vinculada. Esse comportamento, em parte, resultaria das dificuldades de acesso das crianças doentes cujas consultas não haviam sido aprazadas pelo agente comunitário – minimamente mencionados. No caso dos Centros de Saúde, os responsáveis não queriam ou não podiam aguardar o intervalo de tempo entre a marcação e a consulta, ou esperar na fila e não conseguir ficha para o dia9,12.

Entretanto, o principal motivo para não levar a criança doente ao serviço onde está matriculada é a preferência dos responsáveis pelas unidades de maior densidade tecnológica. No contato atual, a maior parte das crianças utiliza o serviço preferido, principalmente, devido à confiança nos profissionais, expectativas sobre qualidade da assistência, experiência pessoal e/ou da rede social, satisfação com o atendimento, além da acessibilidade geográfica. Essa imagem positiva das unidades de pronto-socorro, evidenciando enorme legitimidade desse tipo de serviço perante a população2,9, é reforçada quando: a) preferência por essa urgência justifica não ter levado a criança para outro serviço no evento atual; e b) praticamente metade daquelas que utilizaram serviços procurou urgência pediátrica.

A inadequação técnica da demanda repercute sobre a qualidade da assistência prestada àquelas que realmente necessitam atendimento de urgência e àquelas cujo atendimento de caráter ambulatorial termina restrito à queixa, comprometendo a integralidade da atenção, pois a contra-referência não é atividade rotineira nesses serviços que não mantêm articulação formal com a atenção primária. Nesse contexto, muito se tem discutido sobre competências da unidade básica na rede hierarquizada de saúde, persistindo o confronto entre uma visão que responsabiliza esse nível, quase exclusivamente, pelas ações programáticas dirigidas a doenças/grupos populacionais específicos e uma outra visão que lhe imputa o desenvolvimento simultâneo de ações programáticas e de pronto-atendimento2.

Como as pessoas não recebem passivamente as ações de saúde e, dentro de certos limites, adotam seus próprios critérios para escolher serviços que utilizam, é essencial compreender as razões que fundamentam as preferências nas questões de saúde e doença, adentrando esse mundo amplo e complexo de possibilidades e impossibilidades que inclui significados, valores e contingências do dia-a-dia8,9,15. Para que a hierarquização não seja apenas mais um desejo dos técnicos, precisa-se reconhecer que a organização do sistema de saúde passa pelo questionamento do que são necessidades do ponto de vista do modelo assistencial e do usuário2,15.

Agradecimentos

Aos pesquisadores de campo: Albanira Maria Alves, Cláudia Maria de Lima, Manoel Alexandre Arruda Neto, Mary Helen Nascimento de França, Paula de Cássia Mendes de Moura, Regina Lúcia Carvalho de Lima, Rosete Bibiana de Melo, Rosilda de Oliveira e ao Ministério da Saúde, pelo apoio financeiro.

Artigo submetido em 31.08.04, aceito em 12.01.05

Fonte financiadora: Ministério da Saúde

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  • Endereço para correspondência

    Maria Helena Kovacs
    Rua Setúbal, 860 B/1103, Boa Viagem
    CEP: 51030-010 – Recife, PE
    Tel.: (81) 3423.6851
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      12 Jan 2005
    • Recebido
      31 Ago 2004
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