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Doença celíaca: a afecção com múltiplas faces

EDITORIAIS

Doença celíaca: a afecção com múltiplas faces

Riccardo Pratesi; Lenora Gandolfi

Pós-doutorado em doença celíaca, Università degli Studi, Ancona, Itália. Pesquisador(a), Centro de Pesquisa, Diagnóstico e Prevenção da Doença Celíaca. Professor(a) adjunto(a) e orientador(a), Programas de Pós-Graduação em Ciências Médicas e em Ciências da Saúde, Universidade de Brasília (UNB), Brasília, DF

Nishihara et al. apresentam, neste número, interessante estudo focalizando o significativo aumento de prevalência da doença celíaca (DC) em pacientes portadores da síndrome de Down (SD), aumento este comparável ao encontrado em estudos efetuados em outros países1. A prevalência de 5,6% encontrada no estudo situa-se entre as várias prevalências citadas na literatura mundial. O número de pacientes concomitantemente afetados pela DC identificados no estudo torna-se ainda mais significativo se considerarmos o quinto paciente, com teste de anticorpos antiendomísio (EMA-IgA) positivo, como quase certamente celíaco. O teste EMA-IgA tem mostrado alta sensibilidade e especificidade2 e, apesar de não se poder completamente afastar a possibilidade de resultados falsamente negativos, na experiência acumulada de nosso laboratório, nenhum paciente com EMA-IgA positivo deixou de ter seu diagnóstico confirmado por biopsia.

Este é o primeiro trabalho no Brasil visando essa relação, e o interesse que desperta extrapola sua importância no cuidado aos pacientes com SD. A importância do artigo não decorre tão somente da constatação da existência da freqüente associação entre a SD e a DC. Afinal, de longa data é sabido que pacientes com SD, como, aliás, sucede com duas outras síndromes genéticas, a síndrome de Turner3 e a síndrome de Williams4, constituem grupo de risco para a concomitante presença de DC. Seu principal valor é, a nosso ver, o de chamar a atenção para essa entidade clínica ainda tão pouco pensada e, conseqüentemente, pouco diagnosticada em nosso meio.

Cremos não existirem, atualmente, dúvidas quanto a ser a DC, em nosso país, afecção mais comum do que previamente se supunha e que, como costuma também acontecer em outras partes do mundo, pode permanecer sem diagnóstico por prolongados períodos de tempo. Estudos indicam que o prazo para se chegar ao diagnóstico definitivo de DC pode ser extremamente prolongado, podendo ser superior a 10 anos5. Esse fato constitui-se em exemplo da desnecessária demora em se alcançar o diagnóstico. Os pacientes enfocados no presente estudo podem ser considerados um exemplo da excessiva demora em se alcançar um diagnóstico definitivo de DC. Apesar de portadores de SD constituírem um reconhecido grupo de risco para a coexistência de DC e os cinco pacientes EMA-IgA positivos já terem idades compreendidas entre 6 e 18 anos, nenhum tinha sido previamente diagnosticado como sendo portador da doença.

A prevalência de DC em populações européias ou de ancestralidade européia varia entre 0,3 a 1%, muitos casos provavelmente permanecendo sem diagnóstico por prolongados períodos de tempo6. No Brasil, os dados de prevalência disponíveis são ainda escassos, mas é provável que a prevalência em nosso país não esteja muito afastada das prevalências encontradas no Velho Mundo. Em um primeiro rastreamento de casos de DC no Brasil, efetuado entre doadores de sangue, Gandolfi et al.7 encontraram uma prevalência de 1:681 (0.14%), mas ela não deve corresponder à real prevalência da população brasileira, já que a maioria de doadores de sangue testados era constituída por homens, presumivelmente sadios e sem anemia (sabe-se que a DC é mais freqüente em mulheres, numa proporção de 2:1, e a anemia é um dos seus sintomas mais freqüentes). Em estudo de prevalência mais recente, que tem o viés de ter sido efetuado em grupo de usuários de laboratório de análises clínicas em hospital geral, apesar de terem sido excluídos pacientes com queixas gastroentéricas, a prevalência encontrada em crianças foi de 1:185 (0,54%)8. Esses estudos levam a crer que a prevalência da DC no Brasil, se não for similar à encontrada na Europa, aproxima-se em muito dela.

A DC pode ser considerada, mundialmente, como sendo um problema de saúde pública, principalmente devido à alta prevalência, freqüente associação com morbidade variável e não-específica e, em longo prazo, à probabilidade aumentada de aparecimento de complicações graves, principalmente osteoporose e doenças malignas do trato gastroentérico.

A DC é uma doença auto-imune que pode potencialmente afetar qualquer órgão, e não tão somente o trato gastroentérico, como previamente se supunha. A sua eclosão e o aparecimento dos primeiros sintomas podem se dar em qualquer idade. Como apropriadamente apontado no presente estudo, a forma clássica da doença, com sintomatologia diretamente atribuível à má-absorção, é presentemente observada numa minoria de pacientes. A ampla gama de possíveis sintomas varia consideravelmente entre indivíduos, inclusive no mesmo indivíduo em diferentes fases da doença, o que sobremaneira dificulta o diagnóstico. A DC não tratada manifesta-se, freqüentemente, de forma monossintomática, através de anemia resistente ao tratamento, dermatite herpetiforme, que pode ser considerada a expressão dermatológica da doença, menarca tardia e menopausa precoce, infertilidade, abortos de repetição, hipertransaminasemia, depressão, sintomatologia neurológica progressiva, principalmente ataxia e epilepsia associadas a calcificações cerebrais, osteoporose e hipoplasia do esmalte dentário. Expressiva parcela de pacientes, principalmente os identificados em estudos de rastreamento, relatam, antes do diagnóstico, um indefinível mal-estar geral, que aceitam como seu estado normal, apresentando nítida melhora após a instituição da dieta isenta de glúten.

A crescente importância da DC como problema de saúde pública, as dificuldades inerentes a seu diagnóstico, muitas vezes dificultado pela diversidade e não-especificidade de sua expressão clínica muito freqüentemente alheia ao sistema gastroentérico, sua progressiva gravidade se não diagnosticada a tempo e a existência de tratamento efetivo através de dieta isenta de glúten levantaram a controversa questão da validade da instituição de rastreamento sistemático da população geral9. O principal argumento levantado pelos que advogam essa medida é o da potencialidade da DC para o aparecimento de complicações graves e o de que a prevalência da DC de longe excede a prevalência de outras doenças para as quais já existem programas rotineiros de rastreamento, como é o caso do hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria e deficiência auditiva congênita.

Essa medida é evidentemente desaconselhável, e mesmo inexeqüível em nosso meio, pelo menos presentemente, não somente pelos recursos exigidos, como também porque testes sorológicos negativos em indivíduos geneticamente predispostos não afastam a possibilidade de futuro surgimento da doença. Por sinal, os autores do estudo em foco muito apropriadamente recomendam o seguimento e a repetição dos testes sorológicos a cada 2 anos em seus pacientes com SD, devido à possibilidade de eclosão futura da DC.

Em conclusão, para quais grupos de risco a aplicação sistemática de testes sorológicos está indicada? Evidentemente, os testes são obrigatórios em adultos e crianças com a forma clássica da doença, caracterizada principalmente por diarréia crônica, flatulência, distensão abdominal e perda de peso. Um segundo grupo de risco importante, para o qual tanto os testes quanto atento seguimento estão indicados, são os parentes de celíacos. Nestes, a prevalência de DC pode chegar a 18%10. Testes sorológicos também são necessários nas já citadas síndromes genéticas: SD, síndrome de Turner e síndrome de Williams. São indicados em pacientes com outras doenças auto-imunes, principalmente diabetes tipo I, síndrome de Sjögren e tireoidite. São também indicados em pacientes com alterações neurológicas sem diagnóstico definido, principalmente ataxia e epilepsias de difícil controle associadas à calcificações cerebrais, além de pacientes com osteopenia/osteoporose e em portadores de dermatite herpetiforme. São aconselháveis, a critério clínico, em pacientes freqüentemente monossintomáticos, que apresentam sintomas não-clássicos, tais como dores articulares, estomatites aftosas freqüentes, constipação crônica, defeitos do esmalte dentário, hepatite crônica ou hipertransaminasemia persistente, anemia ferropriva resistente ao tratamento, menarca tardia ou menopausa precoce, infertilidade sem causa aparente e baixa estatura.

Em conclusão, o diagnóstico da DC depende, principalmente, de sua suspeita, mesmo e, acima de tudo, na ausência do quadro clínico clássico, uma vez que, atualmente, formas atípicas, monossintomáticas ou mesmo silenciosas são as mais freqüentemente encontradas.

Referências

1. Nisihara RM, Kotze LM, Utiyama SR, Oliveira NP, Fiedler PT, Messias-Reason IT. Celiac disease in children and adolescents with Down syndrome. J. Pediatr (Rio J). 2005;81:373-6.

2. Hill ID. What are the sensitivity and specificity of serologic tests for celiac disease? do sensitivity and specificity vary in different populations? Gastroenterology. 2005;128:S25-32.

3. Ivarsson SA, Carlsson A, Bredberg A, Alm J, Aronsson S, Gustafsson J, et al. Prevalence of coeliac disease in Turner syndrome. Acta Paediatr. 1999;88:933-6.

4. Giannotti A, Tiberio G, Castro M, Virgilii F, Colistro F, Ferretti F, et al. Coeliac disease in Williams syndrome. J Med Genet. 2001;38:767-8.

5. Fasano A, Berti M, Gerarduzzi T, Not T, Colletti RB, Drago S, et al. Prevalence of celiac disease in at-risk and not-at-risk groups in the United States. Arch Intern Med. 2003;163:286-92.

6. Catassi C, Fornaroli F, Fasano A. Celiac disease: from basic immunology to bedside practice. Clin Appl Immunol Rev. 2002;3:61-71.

7. Gandolfi L, Pratesi R, Cordoba JC, Tauil PL, Gasparin M, Catassi C. Prevalence of celiac disease among blood donors in Brazil. Am J Gastroenterol. 2000;95:689-92.

8. Pratesi R, Gandolfi L, Garcia SG, Modelli IC, Lopes de Almeida P, et al. Prevalence of coeliac disease: unexplained age-related variation in the same population. Scand J Gastroenterol. 2003;38:747-50.

9. Mearin ML, Ivarsson A, Dickey W. Coeliac disease: is it time for mass screening? Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2005;19:441-52.

10. Bonamico M, Mariani P, Mazzilli MC, Triglione P, Lionetti P, Ferrante P, et al. Frequency and clinical pattern of celiac disease among siblings of celiac children. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 1996;23:159-63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2005
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