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Uso do óxido nítrico em crianças com asma persistente

EDITORIAIS

Uso do óxido nítrico em crianças com asma persistente

Luis Enrique Vega-BriceñoI; Ignacio SanchezII

IPediatric pulmonologist, Department of Pediatrics, Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago, Chile

IIPediatric pulmonologist, Department of Pediatrics, Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago, Chile. Director, School of Medicine, Pontificia Universidad Católica de Chile, Santiago, Chile

A inflamação crônica, caracterizada pela presença de linfócitos, eosinófilos e mastócitos, é considerada a marca registrada da asma. Entretanto, a inflamação das vias aéreas não é medida direta e rotineiramente na prática clínica1. Este é provavelmente um dos fatores que dificultam o manejo da asma, que geralmente se baseia em medidas indiretas, tais como sintomas e função pulmonar. Existe agora evidência de que a inflamação pode preceder a instalação da asma, o que sugere que crianças assintomáticas podem já estar sofrendo de inflamação crônica das vias aéreas2. As evidências atuais sugerem que a detecção precoce da inflamação poderia ter um importante impacto terapêutico3.

A inflamação das vias aéreas pode ser detectada por diferentes métodos, tais como a biópsia brônquica e o lavado bronco-alveolar. Entretanto, esses métodos são invasivos e têm aplicabilidade prática muito baixa; por isso, não são adequados para o uso rotineiro em crianças. Hoje nos baseamos em sintomas clínicos e medidas de função pulmonar, mas esses parâmetros não refletem diretamente a inflamação das vias aéreas. Medidas subjetivas de controle da asma incluem parâmetros próprios do paciente, tais como número de episódios de sibilância, sintomas noturnos, sintomas induzidos por exercícios físicos, uso de beta-agonistas de curta duração, ciclos de esteróides, atendimentos na emergência e número de hospitalizações. A qualidade de vida do paciente com asma é associada à morbidade da asma, e os pacientes com qualidade de vida inicial melhor têm melhores desfechos. A asma tem custos diretos, principalmente com hospitalizações e atendimentos nas emergências de hospitais, e também indiretos, como o absenteísmo escolar. Os sintomas podem não refletir a extensão da inflamação subjacente devido às diferenças de percepção, e a função pulmonar pode ter um papel pequeno principalmente na asma leve persistente ou intermitente4. Nenhum desses parâmetros é capaz de distinguir os efeitos de diferentes doses de corticosteróides inalatórios (CI).

Apesar do óxido nítrico (NO) ter sido identificado já há 200 anos, sua importância fisiológica só foi reconhecida no início dos anos 80. Muitos estudos estabeleceram o papel do NO como uma molécula mensageira essencial nos sistemas orgânicos. O NO está presente no ar exalado por humanos e por outros mamíferos. É gerado nas vias aéreas inferiores por enzimas da família da óxido nítrico sintase (NOS), embora a síntese não-enzimática e processos de consumo de oxigênio também possam influir nos níveis de NO no ar exalado. As propriedades biológicas do NO nas vias aéreas são múltiplas, complexas e bidirecionais. Sob condições fisiológicas, o NO parece ter um papel homeostático e broncoprotetor. Entretanto, suas propriedades pró-inflamatórias podem também potencialmente causar dano aos tecidos e contribuir para a disfunção das vias aéreas em doenças tais como a asma e a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Além disso, estudos mostraram haver uma relação significativa entre as mudanças nos níveis de NO exalado e outros marcadores de inflamação das vias aéreas. Ao longo da última década, houve um interesse crescente no papel potencial da medição do NO exalado como indicador de inflamação das vias aéreas em diferentes doenças pulmonares. O NO exalado é um marcador não-invasivo, sensível, objetivo, fácil, reprodutível, confiável e adequado para alguns tipos de inflamação das vias aéreas, tais como a asma eosinofílica, e seus níveis variam em diferentes doenças. A concentração do NO exalado também pode estar aumentada na DOPC, na bronquiectasia, na fibrose cística e em algumas doenças do tecido conjuntivo. Mostrou-se que a produção aumentada de NO de origem alveolar está envolvida na deficiência de oxigenação em pacientes com doença hepática, particularmente em casos de síndrome hepatopulmonar5. Sua medição pode ser obtida instantaneamente (on-line), com a exalação direta no aparelho de análise de NO, ou em outro momento (off-line). A medição padronizada é um método completamente não-invasivo de monitorar a inflamação das vias aéreas. Os níveis de NO exalado, que também foram estudados em um grande número de crianças sadias, aumentam com a piora do controle da asma e estão correlacionados aos marcadores de inflamação nos pulmões. Adultos e crianças com asma têm uma concentração maior de fração exalada de NO do que controles sem asma. Essa fração se eleva em pacientes com asma, durante crises agudas de asma, e também em respostas asmáticas tardias a alérgenos inalados. Além disso, seu nível cai após o tratamento com corticosteróides orais ou inalatórios, em uma correlação positiva significativa com eosinófilos no escarro4,5.

Neste número do Jornal de Pediatria, Jentzsch et al.6, do grupo de estudos do Dr. Camargo, publicam um estudo em que se propuseram a avaliar a diferença nos níveis de NO exalado em pacientes com asma atópica e não-atópica tratados com drogas antiinflamatórias. Para tanto, compararam os resultados de medição de NO exalado com os de testes de função pulmonar6. O objetivo do estudo era determinar o perfil clínico e funcional e os níveis de NO exalado em crianças e adolescentes atópicos e não-atópicos com asma persistente. Seu estudo de corte transversal registrou os níveis de NO exalado em 45 crianças com asma selecionadas consecutivamente. A freqüência de eczema e os níveis de NO exalado foram maiores entre os pacientes atópicos. Seus resultados sugerem que a estabilidade clínica e funcional da asma nos pacientes atópicos não reflete necessariamente um controle eficiente do processo inflamatório, nem define uma maior probabilidade de recorrência após a interrupção do uso de CI. Esse estudo é uma seqüência natural de estudos anteriores7,8 que, de forma convincente, demonstraram que o NO exalado é um marcador útil da inflamação das vias aéreas. Parece, entretanto, que o NO exalado não é indicador de controle da asma, nem reflete a gravidade da asma. Na comparação com o grupo controle, o NO exalado foi mais elevado em pacientes atópicos com asma moderada a grave aparentemente tratada de forma adequada com CI.

Jentzsch et al. definiram o diagnóstico de asma de acordo com os critérios do GINA, mas a gravidade da inflamação das vias aéreas freqüentemente não é estabelecida antes das crianças iniciarem o uso contínuo de CI. Infelizmente, uma das principais vantagens de se fazer medições repetidas do NO exalado não foi plenamente explorada neste estudo. Uma das mais importantes contribuições da medição de NO exalado é a possibilidade de comparação com o melhor valor pessoal. Talvez as crianças com asma atópica apresentassem doença mais grave no momento em que foram incluídas no estudo e tratadas com CI. Como a asma não estava bem controlada em um número significativo dessas crianças, elas tiveram que receber esteróides sistêmicos. Por outro lado, Jatakanon et al. mostraram que o uso de budesonida em doses diárias de 100 mcg levou a uma redução significativa nos níveis de NO exalado em comparação com níveis basais, sem alterações significativas na função pulmonar9. Outros autores demonstraram que há um efeito dose-dependente na resposta das vias aéreas à metacolina e nos níveis de NO exalado10. Os níveis de NO exalado não se mostraram correlacionados a VEF1, FVC e FEF25-75 no estudo de Jentzsch et al., o que sugere que a espirometria não está significativamente correlacionada ao estado atópico ou aos níveis de NO, confirmando resultados de outros estudos11. O nível de NO foi mais alto em pacientes com asma atópica fazendo uso de doses baixas de CI, o que pode significar que esse grupo tem, provavelmente, uma pior qualidade de vida.

Acreditamos que há várias limitações no estudo de Jentzsch et al. O tamanho da amostra foi relativamente pequeno, e o ponto de corte para a determinação de teste cutâneo positivo não foi discutido. Os autores não detectaram nenhuma relação entre os testes de função pulmonar, os níveis de NO e o tratamento com CI a longo prazo, apesar de não terem avaliado completamente os sintomas, efetuado medidas repetidas da função pulmonar, nem avaliado o estado atópico específico. O uso de CI é geralmente eficiente no controle dos sintomas da asma, mas o presente estudo mostrou haver um pequeno mas significativo número de pacientes (6/24) com sintomas persistentes e freqüentes exacerbações que requereram a administração de esteróides sistêmicos. Por fim, os autores relatam que o NO exalado estava aumentado em pacientes com asma atópica, mas não revelam qual o mais freqüente alérgeno positivo nas crianças do estudo. Há evidências fortes de que a sensibilização a alguns alérgenos seja mais fortemente relacionada ao NO exalado do que a sensibilização a outros alérgenos12,13. Há também evidência de que a exposição a alérgenos perenes, tais como ácaros da poeira doméstica, tem maior probabilidade de causar inflamação das vias aéreas do que alérgenos sazonais. Um experimento italiano mostrou que os níveis de NO exalado se elevam durante a exposição a alérgenos naturais. O pêlo de gato também é um alérgeno perene e tem sido associado a sintomas de asma. O NO exalado também aumenta em crianças atópicas e em pacientes sintomáticos. Indivíduos atópicos têm maiores níveis de NO exalado do que os pacientes não-atópicos. Isso sugere que o NO exalado pode ser um marcador de atopia em vez de fornecer informações sobre a inflamação de vias aéreas14,15. Jentzsch et al. apresentam resultados que sugerem que a própria atopia induz a produção de diferentes populações de células e/ou a produção de diferentes citocinas, independentemente do uso de drogas antiinflamatórias. Ainda é preciso definir mais detalhadamente se existe uma associação entre o NO exalado e a inflamação das vias aéreas e descrever como os níveis de NO se alteram quando o alérgeno varia sazonalmente. Estudos anteriores mostraram resultados semelhantes: o NO exalado é elevado em adultos e crianças com asma e atopia, e os valores mais altos são encontrados em pacientes com asma atópica, o que sugere que o NO reflete a inflamação eosinofílica das vias aéreas.

Os interessantes resultados do estudo de Jentzsch et al.6, publicado neste número do Jornal de Pediatria, chamam atenção para a importância do NO exalado como uma ferramenta valiosa na monitoração da inflamação das vias aéreas. O nível de NO exalado é um exame não-invasivo que permite repetidas medições para avaliar a resposta ao tratamento com CI e, desta forma, facilita a decisão sobre mudar ou não a dose de CI. Muitos relatos sugerem que o NO exalado poderá ser usado para monitorar o tratamento antiinflamatório, já que altos níveis são observados em pacientes não tratados. Essa medição também poderá ser usada para prever exacerbações da asma16-18. Acreditamos que ainda é preciso realizar mais estudos clínicos sobre o NO exalado para que se possa planejar estratégias de tratamento efetivo e possíveis intervenções precoces no manejo da asma em crianças. Estudos futuros mostrarão se é possível incluir esse método de medição na rotina da prática clínica. Sua inclusão na avaliação convencional do controle da asma parece promissora. O uso desse método para avaliar o estado inflamatório parece obrigatório na pesquisa de novas estratégias terapêuticas e de manejo da asma. Acreditamos que, na prática especializada, o manejo da asma em crianças com base apenas nos sintomas e na função pulmonar já deixou de ser o estado da arte.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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