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A exceção Latino-Americana: por que a asma na infância é tão prevalente no Brasil?

EDITORIAIS

A exceção Latino-Americana: por que a asma na infância é tão prevalente no Brasil?

Neil PearceI; Jeroen DouwesII

IDirector, Centre for Public Health Research, Massey University Wellington Campus, Wellington, New Zealand

IIPhD, Centre for Public Health Research, Massey University Wellington Campus, Wellington, New Zealand

Há 10 anos, a maioria dos pesquisadores em países ocidentais "sabia" o que causava a asma, e nós sabíamos como evitá-la1. A asma era uma doença atópica causada pela exposição a alérgenos. O mecanismo etiológico fundamental era a sensibilização atópica produzida pela exposição a alérgenos, especialmente na infância, sendo que a exposição continuada resultava em asma pelo desenvolvimento de inflamação eosinofílica das vias aéreas, hiper-responsividade brônquica e obstrução reversível do fluxo aéreo.

Na verdade, a visão eurocêntrica da etiologia da asma nunca foi fortemente baseada em evidências2,3. Menos da metade dos casos de asma é atribuível a atopia ou inflamação eosinofílica das vias aéreas2, enquanto que a inflamação neutrofílica (não alérgica/não atópica) das vias aéreas talvez dê conta da outra metade4. Além disso, embora existam casos claros de asma causada pela exposição a alérgenos em adultos no ambiente de trabalho, em geral há poucas evidências de que a exposição a alérgenos é uma causa primária importante de asma3, além de haver algumas evidências de que a exposição a alérgenos no início da vida pode ter um efeito protetor.1 Com certeza, a exposição a alérgenos não parece ser a principal causa primária da asma, como se supunha, nem parece explicar os padrões globais e os aumentos marcantes na prevalência ao longo do tempo5.

Na medida em que os fatores de risco "estabelecidos" para asma são cada vez mais questionados, os estudos epidemiológicos têm um papel fundamental na pesquisa de novos paradigmas teóricos que sejam mais consistentes com as evidências epidemiológicas e que apresentem maior poder de explicação. Em especial, a "hipótese da higiene" tem sido introduzida pelos resultados de diversos estudos epidemiológicos que mostram que o número excessivo de pessoas na mesma casa e a falta de higiene se associam com menor prevalência de atopia, eczema e rinite alérgica, embora a evidência relativa à asma seja menos consistente6. O aumento na exposição a micróbios e infecção foi proposto como uma possível explicação para esses achados7.

O Estudo Internacional de Asma e Alergias na Infância (International Study of Asthma and Allergies in Childhood, ISAAC)8 tem tido um papel fundamental nesses desenvolvimentos recentes, tendo revelado diferenças internacionais importantes na prevalência da asma9 que não parecem passíveis de explicação pelos fatores de risco "estabelecidos" para asma. O ISAAC é um estudo verdadeiramente global10, tendo sido especialmente bem-sucedido na América Latina. Os achados da Fase I, envolvendo mais de 700.000 crianças, mostraram uma prevalência especialmente elevada de sintomas de asma relatados em países de língua inglesa. Contudo, o ISAAC também mostrou centros na América Latina com prevalência particularmente alta de sintomas. As altas prevalências no Brasil foram agora confirmadas pelo estudo de Fase III de Solé et al.11, publicado neste número do Jornal de Pediatria.

Há diversas razões pelas quais os achados, e especialmente as conclusões, de Solé et al. devem ser considerados com cuidado. Em primeiro lugar, embora todos os centros incluídos no relato dos autores aparentemente tenham empregado o protocolo de Fase III do ISAAC12, nem todos eram centros oficiais do ISAAC. Alguns não serão incluídos nos relatos globais da Fase III do ISAAC porque o tamanho de sua amostra ou a taxa de resposta foram muito pequenos, ou porque de algum modo não atendiam aos critérios do ISAAC. Assim, os achados de Solé et al. podem não ser comparáveis aos de outros centros brasileiros que satisfaziam os critérios de inclusão como centros oficiais do ISAAC.

Em segundo lugar, existem razões para ceticismo quanto aos resultados relativos à latitude. Não é preciso ser um cidadão brasileiro para perceber que muitas coisas provavelmente variam pela latitude no Brasil, não só o clima. Além disso, como os próprios autores reconhecem, as diferenças na prevalência de asma foram mais marcadas para a asma diagnosticada por médico, a pergunta do ISAAC que é provavelmente, a mais suscetível a diferenças regionais nas práticas diagnósticas. O mesmo viés provavelmente se aplica aos achados de "asma grave", já que essa categoria envolve asma diagnosticada pelo médico em sua definição. Por outro lado, as diferenças regionais na prevalência de sintomas relatados de asma foram mais modestas. Além disso, é interessante a observação de grandes diferenças na prevalência da asma em dois centros da mesma cidade, ou seja, oeste e sul de São Paulo. Esse foi o caso, em especial, da asma grave em ambos os grupos etários (6-7 anos: 8,4% versus 4,8%, respectivamente; 13-14 anos: 5,6% versus 2,9%, respectivamente) e da asma ativa no grupo com 6-7 anos (31,2% versus 24,4%). Essa observação extremamente interessante sugere que outros fatores além da localização geográfica e do clima podem estar envolvidos nas diferenças observadas de prevalência de asma. Ampliar o acompanhamento para explicar a diferença relativa de quase 50% na prevalência de asma severa entre duas populações da mesma cidade poderia ser extremamente útil para identificar fatores de risco ou proteção específicos (ver abaixo).

As altas prevalências no Brasil relatadas por Solé et al. são de grande importância internacional. Na Fase I do ISAAC, os centros de língua espanhola da América Latina mostraram prevalências maiores do que a Espanha, assim como os centros de língua portuguesa no Brasil mostraram prevalências mais altas do que os centros portugueses13. A melhor indicação do que está acontecendo globalmente será fornecida pelos achados da Fase III do ISAAC14. Contudo, os resultados brasileiros claramente indicam que a prevalência da asma continua alta no Brasil, e que está aumentando.

Essas altas prevalências na América Latina receberam relativamente pouca atenção nas discussões dos achados da Fase I, possivelmente porque eram de difícil interpretação. Agora que os dados foram confirmados, pelo menos no Brasil, por Solé et al.11, é importante que suas causas sejam investigadas em maior detalhe, especialmente porque parecem contradizer a "hipótese da higiene".

De fato, existem muitas outras anomalias na hipótese da higiene, que não parece, ao menos sozinha, explicar os padrões globais de prevalência da asma e as tendências temporais1. Uma anomalia que se destaca é a prevalência relativamente alta da asma em populações urbanas pobres dos Estados Unidos15. Além disso, embora a hipótese da higiene explique um aumento na atopia e asma alérgica, existe uma grande proporção de casos de asma que não se associa com atopia2. Contudo, seja qual for o mecanismo envolvido, é cada vez mais claro que o pacote de mudanças atrelado à ocidentalização pode estar contribuindo para os aumentos globais na prevalência da asma, e que esse processo envolve um aumento na suscetibilidade à asma, em vez de um aumento na exposição a fatores de risco "estabelecidos" para a asma4.

Então, que outros aspectos da ocidentalização podem explicar os aumentos globais na prevalência da asma? O aumento marcante da prevalência global da asma não pode ser resultado principalmente de fatores genéticos, já que a mudança está ocorrendo rápido demais, e portanto deve ser resultado de mudanças nas exposições ambientais. Parece que, como resultado desse pacote de mudanças no ambiente intra-uterino e neonatal, existe uma suscetibilidade maior ao desenvolvimento de asma ou alergia. Há diversos elementos nesse pacote, inclusive mudanças na dieta materna, maior crescimento fetal, famílias menores, menos infecções nos lactentes e maior uso de antibióticos e imunização, todos os quais têm sido (inconsistentemente) associados com maior risco de asma na infância, mas nenhum dos quais pode sozinho explicar o aumento na prevalência5.

Assim, é importante considerar a "floresta" de mudanças que acompanham a ocidentalização, assim como estudar "árvores" específicas1. É provável que o pacote seja mais do que a soma de suas partes, e que essas mudanças sociais e ambientais estejam todas empurrando o sistema imune do lactente na mesma direção. Conhecer essa direção, assim como quais componentes do pacote são responsáveis, exige o desenvolvimento de teorias etiológicas da asma mais convincentes para substituir a teoria dos alérgenos, ou incorporá-la como um caso especial. Estudar as causas da alta prevalência da asma em todas as regiões do Brasil parece ser um bom lugar para começar, especialmente porque a alta prevalência da asma no Brasil e na América do Sul e Central parece contradizer a hipótese da higiene1.

Seria útil desenvolver estudos para identificar os fatores de risco e proteção que podem explicar melhor as diferenças regionais na prevalência da asma e da alergia. Em especial, seria interessante avaliar por que a prevalência da asma é substancialmente maior nas crianças que moram no oeste de São Paulo em comparação com aquelas do sul de São Paulo. Comparações entre populações rurais e urbanas também poderiam gerar informações valiosas, particularmente porque em muitos países ocidentais observou-se que crescer em uma fazenda pode ser fator de proteção contra alergias e asma16. O Brasil está bem posicionado para perseguir essa pesquisa pois tem: (i) alta prevalência de asma; (ii) uma distribuição interessante de populações urbanas e rurais; e (iii) diferenças substanciais na exposição a fatores tradicionais de estilo de vida, grau de ocidentalização, etnia, poluição interna e externa, taxas de infecção, etc. Estudos futuros no Brasil, com foco nas questões descritas acima, seriam de grande interesse não só para o Brasil, mas teriam também grande valor internacional, já que, provavelmente, seriam capazes de revelar aspectos valiosos em termos da etiologia da asma e das causas dos padrões globais e tendências temporais da asma.

Agradecimentos

O Centre for Public Health Research recebe apoio financeiro de um programa governamental de fomento à pesquisa. Jeroen Douwes é bolsista pesquisador (Sir Charles Hercus Research Fellowship) do Conselho de Pesquisa em Saúde da Nova Zelândia.

Referências

1. Douwes J, Pearce N. Asthma and the westernization 'package'. Int J Epidemiol. 2002;31:1098-102.

2. Pearce N, Pekkanen J, Beasley R. How much asthma is really attributable to atopy? Thorax. 1999;54:268-72.

3. Pearce N, Douwes J, Beasley R. Is allergen exposure the major primary cause of asthma? Thorax. 2000;55:424-31.

4. Douwes J, Gibson P, Pekkanen J, Pearce N. Non-eosinophilic asthma: importance and possible mechanisms. Thorax. 2002;57:643-8.

5. Pearce N, Douwes J, Beasley R. Asthma. In: Tanaka H, editor. Oxford textbook of public health. 4 ed. Oxford: Oxford University Press. 2002:1255-77.

6. Pearce N, Douwes J. Asthma and the hygiene hypothesis. Are we too clean? New Ethicals. 2003;2:27-33.

7. Martinez FD. Role of viral infections in the inception of asthma and allergies during childhood: could they be protective? Thorax. 1994;49:1189-91.

8. Asher MI, Keil U, Anderson HR, Beasley R, Crane J, Martinez F, et al. International Study of Asthma and Allergies in Childhood (ISAAC): rationale and methods. Eur Respir J. 1995;8:483-91.

9. Worldwide variations in the prevalence of asthma symptoms: the International Study of Asthma and Allergies in Childhood (ISAAC). Eur Respir J. 1998;12:315-35.

10. Enarson DA. Fostering a spirit of critical thinking: the ISAAC story. Int J Tuberc Lung Dis. 2005;9:1.

11. Solé D, Wandalsen GF, Camelo-Nunes IC, Naspitz CK; ISAAC - Grupo Brasileiro. Prevalence of symptoms of asthma, rhinitis, and atopic eczema among Brazilian children and adolescents identified by the International Study of Asthma and Allergies in Childhood (ISAAC) - Phase 3. J Pediatr (Rio J). 2006;82:341-6.

12. Ellwood P, Asher MI, Beasley R, Clayton TO, Stewart AW; ISAAC Steering Committee. The international study of asthma and allergies in childhood (ISAAC): phase three rationale and methods. Int J Tuberc Lung Dis. 2005;9:10-6.

13. Asher MI, Barry D, Clayton T, Crane J, D'Souza W, Ellwood P, et al. The burden of symptoms of asthma, allergic rhinoconjunctivitis and atopic eczema in children and adolescents in six New Zealand centres: ISAAC Phase One. N Z Med J. 2001;114:114-20.

14. Asher MI, Montefort S, Bjorksten B, Lai CK, Strachan DP, Weiland SK, et al. Worldwide time trends in the prevalence of symptoms of asthma, allergic rhinoconjunctivitis and eczema in childhood: ISAAC Phases One and Three repeat multicountry cross-sectional surveys. Lancet. 2006;368:733-43.

15. Weiss KB, Gergen PJ, Crain EF. Inner-city asthma. The epidemiology of an emerging US public-health concern. Chest. 1992;101:362S-7S.

16. Riedler J, Braun-Fahrlander C, Eder W, Schreuer M, Waser M, Maisch S, et al. Exposure to farming in early life and development of asthma and allergy: a cross-sectional survey. Lancet. 2001;358:1129-33.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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