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Análise de esteróides na saliva: uma ferramenta não-invasiva para pesquisa em pediatria e clínica médica

EDITORIAIS

Análise de esteróides na saliva: uma ferramenta não-invasiva para pesquisa em pediatria e clínica médica

Wieland Kiess; Roland Pfaeffle

Hospital for Children and Adolescents, University of Leipzig, Leipzig, Germany

A saliva é um fluido de fácil obtenção, não-invasivo que pode ser usado para monitorar a concentração de uma ampla variedade de drogas, hormônios, anticorpos e outras moléculas. Os testes diagnósticos baseados em amostras de saliva são atualmente utilizados com freqüência na endocrinologia, pesquisa em pediatria, em estudos clínicos em psicologia e psiquiatria, bem como na pesquisa sobre estresse. É importante ressaltar que o uso da saliva como veículo para a determinação dos níveis plasmáticos do hormônio esteróide em crianças e adolescentes vem aumentando consideravelmente. Neste número do Jornal de Pediatria, Silva et al. relatam o uso de cortisol salivar para avaliar o eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal em crianças hígidas com idade entre 45 dias e 36 meses1. Os autores estabeleceram valores de referência para o cortisol salivar utilizando um radio-imunoensaio in-house contendo um anticorpo contra cortisol-3-oxima conjugada à albumina bovina. Esses dados são importantíssimos já que podem ser usados como referência na rotina pediátrica diária e na pesquisa em pediatria. Eles também ajudam a elucidar o desenvolvimento de ritmos circadianos e a fisiologia do sistema endócrino nos lactentes humanos.

É importante observar que nos anos mais recentes foram desenvolvidos dispositivos para coleta da saliva, empregando-se, por exemplo, suabes de algodão ou plástico (ex: Salivette®, Sarstedt, Alemanha). Cada laboratório deve averiguar a presença de substâncias com potencial de reação cruzada nesses dispositivos pré-manufaturados, pois em alguns casos, foi encontrada reação cruzada dos imunoensaios com as substâncias presentes na camada que recobre os suabes (observação pessoal). Além disso, inúmeros agentes que podem provocar um aumento no fluxo da saliva, tais como ácido cítrico a 1 ou 5%, vêm sendo cada vez mais usados na coleta de amostras de saliva. Nos recém-nascidos e crianças muito pequenas, a aspiração através de um tubo e seringa após uma leve estimulação do fluxo salivar sem o uso de irritantes químicos é o método mais prático e menos invasivo a ser utilizado. Nas crianças mais velhas e nos adolescentes, recomenda-se o uso de tubos para coleta de saliva que contenham suabes e dispositivos prontos para usar, com duas câmaras, que possam ser centrifugados a fim de remover detritos e que também possam ser usados para armazenar sob congelamento as amostras antes da análise. Imunoensaios altamente sensíveis empregados como radio-imunoensaios, ensaios imunoenzimáticos, ou fluorescentes com resolução temporal encontram-se amplamente disponíveis. Entretanto, é importante estabelecer valores de referência para o curso da vida usando todos esses métodos separadamente e em cada centro, uma vez que a especificidade, determinada principalmente pela reação cruzada dos primeiros anticorpos com os diferentes metabólitos esteróides, assim como a sensibilidade dos ensaios diferem consideravelmente. Por exemplo, as concentrações matinais de cortisol na saliva relatadas por Silva et al. correspondem em média a 557,86 nmol/L e variam entre 76,88 e 1.620,08 nmol/l1, enquanto que Tornhage & Alfven relatam níveis matinais de 8,8 nmol/L em crianças mais velhas2 e nossos próprios valores de referência para os níveis matinais de cortisol na saliva variam entre menos de 2 nmol/L e 100 nmol/L nos lactentes, crianças e adolescentes3. Nos adultos, os níveis matinais de cortisol salivar em voluntários saudáveis ficam acima de 12 nmol/L, enquanto que as concentrações noturnas variam entre 1,0 e 8,3 nmol/l4.

No seu estudo recente, Silva et al. observaram que a diferença entre as concentrações de cortisol salivar nos períodos da manhã e da tarde tornam-se mais aparentes com a idade1. Na verdade, os níveis matinais elevados de cortisol tornam-se aparentes já nos primeiros 3 meses de vida2,3,5,6, enquanto que em recém-nascidos, não há ritmo circadiano de concentrações de cortisol na saliva5,7. Além disso, Custodio et al. demonstraram que a média de idade para a emergência do ritmo circadiano de cortisol na saliva foi semelhante em gêmeos monozigóticos e dizigóticos (7,8 versus 7,4 semanas). Sete pares de gêmeos revelaram a mesma emergência do ritmo de cortisol, enquanto que 10 pares não apresentaram coincidência: esses dados sugerem um impacto menos genético que ambiental sobre a idade de início do ritmo circadiano do cortisol8.

Estudos clínicos recentes que usaram medidas do cortisol salivar matinal mostraram que existe uma associação fracamente negativa dos níveis de cortisol com a duração da gestação, mas nenhuma relação com o peso ao nascer ou com a pressão sistólica ou diastólica9. Em um estudo com 68 meninos e 72 meninas com idades entre 7 e 9 anos, o peso ao nascer dos meninos foi inversamente relacionado às respostas do cortisol salivar ao estresse, enquanto que nas meninas as concentrações mais altas de cortisol matinal foram inversamente relacionadas ao peso ao nascer10. As medições de cortisol salivar podem ser usadas em conjunto com o teste de supressão com 1 mg de dexametasona durante a noite: o cortisol salivar foi suprimido para menos de 100 ng/dL após 1 mg de dexametasona em pacientes do grupo controle e obesos em um estudo6. Houve uma correlação negativa das concentrações de cortisol salivar matinal e da concentração total de cortisol com o índice de massa corporal em crianças com dor abdominal recorrente de origem psicossomática em outro estudo2. Esses autores também observaram que, na sua coorte de 159 meninas saudáveis e 147 meninos, a concentração de cortisol na saliva dependia da época de amostragem, idade e menarca. Em nossa amostra de 138 crianças e 14 adultos, os níveis de cortisol mostraram-se dependentes da idade e também associados positivamente ao peso e ao índice de massa corporal, mas não encontramos nenhuma diferença quanto ao sexo (Kiess et al.). Numa coorte de 119 recém-nascidos saudáveis, o índice de massa corporal, o pH do sangue arterial do cordão umbilical e a época de coleta da saliva após o nascimento influenciaram os níveis de cortisol na saliva7.

Atualmente, a amostragem da saliva e as medições do hormônio esteróide ainda competem com a coleta e medição de urina e com a medição plasmática e sérica de hormônios esteróides agregados e livres. Esse dado é surpreendente, pois há vários estudos que já demonstraram a superioridade das mensurações dos hormônios salivares11,12. Contudo, para o uso mais amplo da coleta e análise do cortisol salivar, as seguintes considerações são necessárias:

1)A época da amostragem e coleta da saliva precisa ser padronizada.

2)Ingestão alimentar, medicações e condições basais tais como sono, estresse, jejum/alimentação precisam ser padronizados ou documentados.

3)(Imuno) ensaios altamente específicos e adequados devem ser utilizados e valores de referência para esses ensaios específicos precisam ser disponibilizados por cada um dos laboratórios.

4)Controles de qualidade e procedimentos operacionais padrão (POPs) devem ser estabelecidos em cada centro.

Embora as concentrações de cortisol na saliva sejam de especial interesse para os pesquisadores que estudam as respostas ao estresse e o eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal, a determinação de outros hormônios esteróides na saliva pode ser usada para monitorar o tratamento de doenças endócrinas: um dos maiores exemplos do uso da mensuração de hormônios esteróides na saliva é a determinação da 17-hidroxiprogesterona salivar, cuja utilização facilita muito o tratamento de crianças e adolescentes com hiperplasia adrenal congênita13. Em resumo, o artigo de Silva et al. é oportuno, importante e muito útil para o clínico bem como para os pesquisadores em todas as subespecialidades pediátricas.

Referências

1. Silva ML, Mallozi MC, Ferrari GF. Salivary cortisol to assess the hypothalamic-pituitary-adrenal axis in healthy children under 3 years old. J Pediatr (Rio J). 2007;83:121-6.

2. Tornhage CJ, Alfven G. Diurnal salivary cortisol concentration in school-aged children: increased morning cortisol concentration and total cortisol concentration negatively correlated to body mass index in children with recurrent abdominal pain of psychosomatic origin. J Pediatr Endocrinol Metab. 2006;19:843-54.

3. Kiess W, Meidert A, Dressendörfer RA, Schriever K, Kessler U, König A, et al. Salivary cortisol levels throughout childhood and adolescence: relation with age, pubertal stage, and weight. Pediatr Res. 1995;37(4 Pt 1):502-6.

4. Vogeser M, Durner J, Seliger E, Auernhammer C. Measurement of late-night salivary cortisol with an automated immunoassay system. Clin Chem Lab Med. 2006;44:1441-5.

5. Grunau RE, Haley DW, Whitfield MF, Weinberg J, Yu W, Thiessen P. Altered basal cortisol levels at 3, 6, 8 and 18 months in infants born at extremely low gestational age. J Pediatr. 2007;150:151-6.

6. Castro M, Elias PC, Martinelli CE Jr., Antonini SR, Santiago L, Moreira AC. Salivary cortisol as a tool for psychological studies and diagnostic strategies. Braz J Med Biol Res. 2000;33:1171-5.

7. Klug I, Dressendörfer R, Strasburger C, Kuhl GP, Reiter HL, Reich A, et al. Cortisol and 17-hydroxyprogesterone levels in saliva of healthy neonates: normative data and relation to body mass index, arterial cord blood pH and time of sampling after birth. Biol Neonate. 2000;78:22-6.

8. Custodio RJ, Junior CE, Milani SL, Simoes AL, de Castro M, Moreira AC. The emergence of the cortisol circadian rhythm in monozygotic and dizygotic twin infants: the twin-pair synchrony. Clin Endocrinol (Oxf). 2007;66:192-7.

9. Koupil I, Mann V, Leon DA, Lundberg U, Byberg L, Vagero D. Morning cortisol does not mediate the association of size at birth with blood pressure in children born from full-term pregnancies. Clin Endocrinol (Oxf). 2005;62:661-6.

10. Jones A, Godfrey KM, Wood P, Osmond C, Goulden P, Phillips DI. Fetal growth and the adrenocortical response to psychological stress. J Clin Endocrinol Metab. 2006;91:1868-71.

11. Schmidt NA. Salivary cortisol testing in children. Issues Compr Pediatr Nurs. 1998;20:183-90.

12. Hanrahan K, McCarthy AM, Kleiber C, Lutgendorf S, Tsalikian E. Strategies for salivary cortisol collection and analysis in research with children. Appl Nurs Res. 2006;19:95-101.

13. Dressendörfer RA, Strasburger CJ, Bidlingmaier F, Klug I, Kistner A, Siebler T, et al. Development of a highly sensitive nonisotopic immunoassay for the determination of salivary 17-hydroxy-progesterone: reference ranges throughout childhood and adolescence. Pediatr Res. 1998;44:650-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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