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Perspectivas atuais do tratamento da cetoacidose diabética em pediatria

Resumos

OBJETIVO: Revisar os conceitos atuais da fisiopatologia, diagnóstico e tratamento da cetoacidose diabética (CAD) na infância, assim como as medidas preventivas para evitar o edema cerebral. FONTES DOS DADOS: Os autores selecionaram artigos na MEDLINE com as palavras-chave diabetes, cetoacidose, hiperglicemia e edema cerebral, priorizando estudos realizados em crianças, que tenham textos completos publicados em inglês, português ou espanhol. Revisaram, ainda, capítulos de livros publicados no Brasil descrevendo o tratamento de CAD em unidade de tratamento intensivo pediátrico. Baseados na literatura revisada e em sua experiência, apresentam as medidas mais eficazes e recomendadas no manejo da CAD. SÍNTESE DOS DADOS: Consolida-se cada vez mais a utilização de solução fisiológica (NaCl 0,9%) tanto na fase de reposição rápida quanto na fase de hidratação, em substituição às soluções diluídas (hipotônicas), assim como a contra-indicação do uso de bicarbonato de sódio para corrigir acidose metabólica na CAD. A insulina regular deve ser utilizada sob a forma de infusão contínua (0,1 UI/kg/h) sem a necessidade de dose de ataque. Para rápidas correções das oscilações da glicemia, é apresentado um esquema prático com duas bolsas de soluções eletrolíticas. Revisam edema cerebral, seu mecanismo fisiopatológico e o tratamento atual. CONCLUSÕES: O uso de infusão contínua de insulina regular associada à reposição hídrica adequada com soluções isotônicas, além de tratamentos efetivos da CAD, preserva a osmolaridade plasmática e previne a ocorrência de edema cerebral.

Diabetes; acidose; desidratação; insulina; edema cerebral


OBJECTIVE:To review current concepts of physiopathology, diagnosis and treatment of diabetic ketoacidosis (DKA) in childhood, as well as preventive measures to avoid cerebral edema. SOURCES: The authors selected articles from MEDLINE with the keywords diabetes, ketoacidosis, hyperglycemia and cerebral edema, and priority was given to studies including children and that contained complete texts published in English, Portuguese or Spanish. Chapters of books published in Brazil describing the treatment of DKA in pediatric intensive care unit were also reviewed. Based on the reviewed literature and on the author's experience, the most efficient and recommended measures for DKA management are presented. SUMMARY OF THE FINDINGS: Normal saline solution (NaCl 0.9%) has been increasingly used for fast replacement and hydration, as a substitute to diluted (hypotonic) solutions, as well as contraindication of sodium bicarbonate to repair metabolic acidosis in DKA. Regular insulin should be used as continuous infusion (0.1 IU/kg/h) without the need of a loading dose. For fast corrections of glucose oscillations, a practical scheme using two bags of electrolytic solutions is presented. Cerebral edema, its physiopathological mechanism and current treatment are reviewed. CONCLUSIONS: Use of continuous infusion of regular insulin associated with adequate water and electrolyte replacement using isotonic solutions, besides being an effective treatment for DKA, preserves plasma osmolarity and prevents cerebral edema.

Diabetes; acidosis; dehydration; insulin; cerebral edema


ARTIGO DE REVISÃO

Perspectivas atuais do tratamento da cetoacidose diabética em pediatria

Jefferson P. PivaI; Mauro CzepielewskiII; Pedro Celiny R. GarciaIII; Denise MachadoIV

IProfessor, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Departamento de Pediatria, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Chefe associado, UTI Pediátrica, Hospital São Lucas da PUCRS, Porto Alegre, RS

IIProfessor, Departamento de Medicina Interna, UFRGS, Porto Alegre, RS. Serviço de Endocrinologia, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Porto Alegre, RS. Diretor, Faculdade de Medicina, UFRGS, Porto Alegre, RS

IIIProfessor, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, PUCRS, Porto Alegre, RS. Chefe, UTI Pediátrica, Hospital São Lucas da PUCRS, Porto Alegre, RS

IVResidente, 3º ano, Pediatria, área de concentração em UTI pediátrica, Serviço de Pediatria, Hospital São Lucas da PUCRS, Porto Alegre, RS

Correspondência Correspondência: Jefferson P. Piva Vicente da Fontoura, 3008/301 CEP 90640-002 - Porto Alegre, RS Tel.: (51) 3315.2400 Email: jpiva@pucrs.br

RESUMO

OBJETIVO: Revisar os conceitos atuais da fisiopatologia, diagnóstico e tratamento da cetoacidose diabética (CAD) na infância, assim como as medidas preventivas para evitar o edema cerebral.

FONTES DOS DADOS: Os autores selecionaram artigos na MEDLINE com as palavras-chave diabetes, cetoacidose, hiperglicemia e edema cerebral, priorizando estudos realizados em crianças, que tenham textos completos publicados em inglês, português ou espanhol. Revisaram, ainda, capítulos de livros publicados no Brasil descrevendo o tratamento de CAD em unidade de tratamento intensivo pediátrico. Baseados na literatura revisada e em sua experiência, apresentam as medidas mais eficazes e recomendadas no manejo da CAD.

SÍNTESE DOS DADOS: Consolida-se cada vez mais a utilização de solução fisiológica (NaCl 0,9%) tanto na fase de reposição rápida quanto na fase de hidratação, em substituição às soluções diluídas (hipotônicas), assim como a contra-indicação do uso de bicarbonato de sódio para corrigir acidose metabólica na CAD. A insulina regular deve ser utilizada sob a forma de infusão contínua (0,1 UI/kg/h) sem a necessidade de dose de ataque. Para rápidas correções das oscilações da glicemia, é apresentado um esquema prático com duas bolsas de soluções eletrolíticas. Revisam edema cerebral, seu mecanismo fisiopatológico e o tratamento atual.

CONCLUSÕES: O uso de infusão contínua de insulina regular associada à reposição hídrica adequada com soluções isotônicas, além de tratamentos efetivos da CAD, preserva a osmolaridade plasmática e previne a ocorrência de edema cerebral.

Palavras-chave: Diabetes, acidose,desidratação, insulina, edema cerebral.

Introdução

A cetoacidose diabética (CAD) é uma causa freqüente de admissão em emergência ou unidade de tratamento intensivo pediátrico (UTIP) e, mesmo nos dias atuais, apresenta alta morbidade e mortalidade. Com o descobrimento e emprego da insulina no tratamento da CAD associado à melhora nos cuidados clínicos, foi possível reduzir sua mortalidade de 100% (início do século XX) para os atuais 2-5%1-12. Apesar de todo o arsenal terapêutico, a CAD permanece sendo a principal causa de morte em crianças e adolescentes com DM tipo 1 (DM1). A maioria dos casos fatais está relacionada ao desenvolvimento de edema cerebral, que está presente em 0,5 a 2% dos pacientes com CAD, com mortalidade de 40 a 90% e capaz de produzir seqüelas em 10 a 25% dos sobreviventes1,2,3,13,14. Outras causas de morbimortalidade são hipocalemia, hipercalemia, hipoglicemia, infecções e alterações do sistema nervoso central (SNC)1,2,9,11.

Na CAD, por definição, deve haver acidose metabólica (pH < 7,3 e/ou HCO3 < 15 mEq/L) secundária à cetose (cetonemia e cetonúria), hiperglicemia (acima de 200 mg/dL) e graus variáveis de desidratação em pacientes com DM (DM)1,2,9,10. A hiperglicemia nesta situação é usualmente elevada, mas não obrigatória. Crianças pequenas ou parcialmente tratadas, assim como adolescentes grávidas, podem apresentar CAD com níveis de glicemia quase normais (cetoacidose euglicêmica)1,2,9. Na CAD, há deficiência relativa ou absoluta de insulina, associada ao aumento de hormônios contra-reguladores, alterando o metabolismo de carboidratos, proteínas e lipídeos1-12.

Em crianças pequenas, muitas vezes é difícil caracterizar os sinais clássicos e característicos de DM, como poliúria, polidipsia e emagrecimento. Muitos desses sintomas podem ser atribuídos a outras patologias mais prevalentes, retardando o diagnóstico. Mesmo em países desenvolvidos, entre 15 a 70% dos novos casos de DM na infância são diagnosticados a partir de uma crise de CAD1-12. A prevalência de CAD está inversamente associada às facilidades do sistema de saúde e à prevalência de diabetes na comunidade1,3. Adolescentes e adultos jovens com DM tipo 2 também podem apresentar CAD no momento do diagnóstico, não sendo considerado, portanto, um distúrbio patognomônico de DM11-12.

Embora uma parcela significativa tenha a CAD como manifestação inicial de DM, é necessária a exclusão e/ou identificação de um ou mais fatores desencadeantes. É fundamental que anamnese e exame clínico sejam completos e detalhados, associados a uma investigação laboratorial mínima, procurando identificar possíveis fatores desencadeantes. Está fartamente documentada que a mortalidade e morbidade da CAD estão associadas ao tipo de intervenção e tratamento realizado nas primeiras horas1,3,11,13-15.

Em pacientes com diabetes previamente diagnosticada, a CAD costuma estar relacionada ao uso inadequado de insulina. Adolescentes apresentam problemas de adesão ao tratamento e à dieta, assim como fatores psicológicos associados a distúrbios alimentares que podem ser os desencadeantes em até 20% dos casos de CAD recorrente1-3,9,10. Em pacientes submetidos a terapia insulínica por bomba, a sua interrupção inapropriada, mesmo que transitória, leva à CAD diabética em função das baixas reservas de insulina comum a esse esquema de tratamento2.

Entre os fatores precipitantes mais comuns de CAD, estão as infecções (30 a 40% dos casos)1-3,13,14. A resistência à insulina está associada ao aumento nos níveis dos hormônios do estresse (adrenalina, glucagon, hidrocortisona e hormônio do crescimento) e algumas citoquinas (por exemplo: interleucina-1) que também aumentam nas infecções2,10. Altas doses de glicocorticóides, antipsicóticos atípicos, diazóxido e algumas drogas imunossupressoras foram relatadas como precipitantes de CAD em pacientes sem diagnóstico prévio2. Outras causas de CAD são a pancreatite e o trauma9,15. Como regra geral, em todo paciente com CAD devem ser avaliados os possíveis fatores desencadeantes e, somente quando estes forem afastados, considera-se o tratamento irregular como fator causal. Em 2 a 10% dos casos, não é possível identificar o fator precipitante9,15.

Fisiopatologia

As manifestações clínicas e alterações laboratoriais na CAD (Figura 1) ocorrem em decorrência das interações da deficiência absoluta ou relativa de insulina e do aumento dos hormônios contra-reguladores (glucagon, catecolaminas, cortisol e hormônio do crescimento). Estes hormônios contra-reguladores costumam, portanto, estar aumentados em situações de infecção e estresse, que freqüentemente precipitam CAD em pacientes diabéticos, ao passo que a hiperglicemia, a desidratação, a hiperosmolaridade, os distúrbios eletrolíticos e ácido-básico perpetuam a liberação dos hormônios contra-reguladores1-13.


Cetoacidose

A insulina é um hormônio anabolizante, estimulando a síntese e/ou armazenamento de carboidratos, gorduras, proteínas e ácidos nucléicos. A ação da insulina permite gerar energia através da utilização da glicose pelo músculo, tecido adiposo e células hepáticas. Na ausência de insulina, ocorre lipólise com aumento da mobilização de ácidos graxos para gliconeogênese hepática e liberação de cetonas. A excessiva produção de cetonas ultrapassa a capacidade de tamponar dos álcalis orgânicos, resultando em acidose metabólica. Conseqüentemente, de acordo com a intensidade da acidose, pode-se quantificar a CAD em leve (pH 7,3-7,2), moderada (7,2-7,1) e severa (< 7,1)1,2,9,15. A característica da acidose metabólica na CAD é o aumento do anion gap (normalmente situado entre 10 e 12), que é obtido pela seguinte fórmula: anion gap = Na - (HCO3 + Cl).

Na CAD, a cetose é causada primariamente pela elevação do b-hidroxibutirato e acetoacetato. Beta-hidroxibutirato é a cetona encontrada em maiores níveis circulantes durante a CAD, com uma relação b-hidroxibutirato:acetoacetato de 3:1 no início do quadro. Os testes de cetonemia são usualmente feitos de maneira qualitativa ou semiquantitativa em relação ao acetoacetato. Considerando que, durante a correção da cetoacidose, o b-hidroxibutirato é transformado em acetoacetato, o teste da cetonemia pode manter-se positivo por algum tempo, mesmo com tratamento adequado. Portanto, a persistência de cetonemia positiva não significa necessariamente que o tratamento da CAD esteja sendo inefetivo9. Assim sendo, o anion gap poderia ser utilizado como indicador indireto dos níveis de corpos cetônicos, pois a diminuição do valor do anion gap traduz a redução do nível de corpos cetônicos, o que traduz a eficácia do tratamento1,2,9,10,12.

Hiperglicemia

Na deficiência (ou ausência) de insulina associada à ação dos hormônios contra-reguladores, as células ficam impossibilitadas de captar e utilizar a glicose, ocorrendo glicogenólise muscular e hepática e tendo como conseqüência a hiperglicemia9. Níveis de glicemia acima de 180 mg/dL excedem a capacidade máxima de reabsorção de glicose no túbulo proximal, causando glicosúria e diurese osmótica. A diurese osmótica leva à poliúria com perda de água livre e eletrólitos e terá como conseqüência o surgimento de polidipsia. No caso de manter-se a ingesta hídrica adequada, a desidratação será leve e a glicemia se estabilizará em 300 a 400 mg/dL. Em alguns casos, a glicemia pode atingir níveis de 800 mg/dL, principalmente quando ocorre desidratação grave com diminuição da taxa de filtração glomerular9,15,16. Embora na CAD a hiperglicemia seja a regra, podem ocorrer casos de CAD com níveis normais de glicemia. Este fenômeno ocorre em pacientes parcialmente tratados com insulina e sem receber fluidos com carboidratos e/ou naquelas situações com longo período de vômitos e sem ingestão de carboidratos1,2,9,12,16.

Desidratação

A diurese osmótica associada a vômitos e ingesta insuficiente causa desidratação de graus variáveis na CAD, sendo o choque um evento raro nesta situação1. Com a progressão da desidratação, há diminuição do volume intravascular e conseqüente queda progressiva na taxa de filtração glomerular. A diminuição da taxa de filtração glomerular provoca redução da diurese e da perda de glicose, acarretando o agravamento da hiperglicemia. Níveis de glicemia próximos a 600 mg/dL indicam que a taxa de filtração glomerular está reduzida em aproximadamente 25%, ao passo que glicemia de 800 mg/dL sugere uma redução de 50% na taxa de filtração glomerular, em decorrência de grave desidratação1,2,9,10.

Hiperosmolaridade

A osmolaridade plasmática pode ser estimada através do cálculo [(Na + K)x2] + (glicemia/18). É fácil perceber que, com uma glicemia de 180 mg/dL, a contribuição da glicose na osmolaridade plasmática será mínima (ao redor de 10). No entanto, ocorrendo uma elevação da glicemia para, por exemplo, 720 mg/dL, a osmolaridade devida à hiperglicemia será, neste caso, de 40. Nestas circunstâncias, ocorre movimento de água livre do interior das células para o espaço extracelular (desidratação intracelular). A manutenção deste estado hiperosmolar estimula que as células (principalmente neurônios) produzam substâncias com atividade osmótica intracelular (osmóis idiogênicos) para preservar a água intracelular. No caso de haver queda brusca da osmolaridade sangüínea (queda rápida da glicemia ou diminuição do sódio plasmático), isso propiciará o movimento de água em direção ao intracelular, favorecendo o aparecimento de edema cerebral14-16. Tem sido demonstrado que a hipernatremia pode agir como um fator protetor de edema cerebral em pacientes com CAD16.

Distúrbios eletrolíticos

A poliúria causada pela diurese osmótica pode induzir a desidratação com graus variáveis de alterações eletrolíticas associadas: hiper ou hiponatremia, hipocalemia, hipofosfatemia e hipocalcemia.

Sódio

Na CAD, pode ocorrer hiponatremia dilucional associada ao aumento da osmolaridade causada pela hiperglicemia. Estima-se uma redução de 1,6 mEq/L no sódio sérico para cada 100 mg/dL de glicose acima do limite de 100 mg/dL. Outros fatores, como aumento dos lipídeos séricos com baixo teor de sódio, ação do hormônio antidiurético, perda urinária de sódio relacionada à diurese osmótica e eliminação de corpos cetônicos, podem acentuar a hiponatremia1,2,9,11. A hipernatremia, apesar de menos freqüente, tem sido observada em presença de CAD. A elevação do sódio sérico, por manter a osmolaridade plasmática, parece ser um fator protetor no desenvolvimento de edema cerebral na CAD, à medida que há redução nos níveis da glicemia16. Portanto, à luz dos conhecimentos atuais, a hiponatremia deve ser evitada e combatida em crianças com CAD. Já na hipernatremia moderada (entre 150 e 160 mEq/L), seria aceita e considerada como protetora naquelas crianças com CAD que apresentem hiperglicemia mais acentuada (acima de 600 mg/dL)16.

Potássio

A glicogenólise e a proteólise por deficiência de insulina promovem a saída de potássio celular para o líquido extracelular. Vários fatores influem na queda do potássio plasmático na CAD: excreção urinária junto com os cetoácidos, aumento de aldosterona causado pela desidratação, vômitos e entrada de potássio na célula junto com a glicose quando do início da infusão de insulina. Entretanto, no momento do diagnóstico da CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado, porque a acidose provoca saída de potássio do meio intracelular para o espaço extracelular1,2,9. Entretanto, mesmo nesta eventualidade, deve-se ressaltar que o potássio corporal total está diminuído. Portanto, a dosagem de potássio normal ou diminuída no início do quadro de CAD indica necessidade de reposição precoce, pois, com o tratamento, a tendência é de queda ainda maior nos níveis séricos deste íon1,2,9,11.

Cálcio

Com a correção da acidose durante o tratamento da CAD e a melhora da taxa de filtração glomerular, ocorre uma tendência à hipocalcemia. A utilização de fosfato no tratamento dos pacientes com CAD também está relacionada à hipocalcemia1,2,9.

Fósforo

Durante o quadro de CAD, da mesma forma que ocorre com o potássio, há inicialmente uma hiperfosfatemia conseqüente à acidose metabólica. Com o aumento das perdas urinárias de fósforo em função da poliúria, é comum a hipofosfatemia, que provocará queda nos níveis de 2,3-DPG eritrocitária. Baixos níveis de 2,3-DPG podem levar a uma diminuição na oferta de oxigênio aos tecidos por deslocamento da curva de dissociação da hemoglobina; no entanto, este é um efeito que não costuma ter maior repercussão clínica na CAD1,2,9.

Diagnóstico clínico e laboratorial de cetoacidose diabética

Poliúria, polidipsia, enurese, perda de peso e polifagia caracterizam o DM. Na evolução para CAD, ocorrem náuseas, vômitos, anorexia progressiva, dor abdominal, fadiga e sinais de desidratação: pele e mucosas secas, turgor cutâneo diminuído, taquicardia e perfusão diminuída de acordo com o grau de desidratação. Estima-se que o déficit de líquido extracelular na CAD seja entre 5 e 10% do peso corpóreo. Porém, como já referido anteriormente, a hipotensão (choque hipovolêmico) é um achado raro e tardio em crianças com CAD, freqüentemente associada a sepse ou edema cerebral1,2,9,16. Ocorrendo alteração do sensório (sonolência, obnubiliação), deve-se imediatamente pensar na hipótese de edema cerebral, que tem elevada mortalidade.

Observa-se, ainda, taquipnéia (hiperventilação para compensar a acidose metabólica), hálito cetônico (odor adocicado devido à cetose) e febre (que pode ser associada a processo infeccioso bacteriano ou viral)1-11.

Deve-se suspeitar de CAD em todo paciente que apresentar quadro de depressão do sensório com ou sem sinais clínicos de acidose, devendo-se sempre realizar glicemia capilar (hemoglicoteste) e/ou pesquisa de cetonúria na avaliação inicial1-11.

Os critérios laboratoriais para definir CAD são pH (venoso ou arterial) inferior a 7,30 e/ou bicarbonato inferior a 15 mEq/L, glicemia superior a 200 mg/dL e presença de cetonemia e cetonúria1,2,9. Deve-se ressaltar que a gasometria arterial é dolorosa, tem maior risco e os dados que objetivamos avaliar (pH, bicarbonato e déficit de bases) são equiparáveis no sangue arterial e venoso. Além da glicemia, cetonemia e gasometria venosa, deve-se monitorar inicialmente os valores séricos de lactato, sódio, potássio, cálcio iônico, cloro, fósforo, uréia, creatinina, hematócrito e hemoglobina, assim como glicosúria e cetonúria. Se houver suspeita de infecção, deve-se solicitar os exames necessários de acordo com o quadro clínico1,2,9,11. A leucocitose com desvio para a esquerda é um achado freqüente nos pacientes com CAD, não havendo uma forte associação com a presença de infecção1,2,9. A amilase sérica está freqüentemente elevada na CAD, o que não é usualmente indicativo de pancreatite. Esta hipótese deve ser investigada na presença de sinais clínicos sugestivos e níveis acentuadamente elevados de amilase1,2,9.

Em várias casuísticas de CAD, são descritos casos de pacientes submetidos a laparotomias exploradoras em caráter de urgência cuja indicação se demonstrou posteriormente desnecessária. Esta conduta pode acrescentar significativa morbimortalidade no atendimento da CAD. Portanto, salienta-se que a presença de dor abdominal associada a vômitos e, muitas vezes, com sinais de irritação peritoneal (sinal de Blumberg positivo) pode ocorrer na CAD, mimetizando abdome agudo por infecção, apendicite aguda, pancreatite, colecistite ou outras causas. Nestas situações, antes de indicar o tratamento cirúrgico através de laparotomia exploradora, deve-se melhor investigar o paciente e corrigir a CAD, aguardando algumas horas para resolução da dor abdominal. Esta conduta evidentemente não deve ser estabelecida na presença de quadro infeccioso grave, sepse ou evidência inequívoca de doença abdominal associada.

Tratamento

A CAD é uma situação de risco de vida em que o tratamento deve ser realizado por equipe médica experiente em unidade de tratamento intensivo (UTI) ou em uma unidade hospitalar habituada e treinada para receber este tipo de pacientes. Esta é uma situação que não permite improvisações ou atitudes baseadas no empirismo. É recomendável, portanto, que todo serviço tenha seu próprio protocolo ajustado às facilidades e dificuldades operacionais locais. Outro importante princípio no tratamento de pacientes com CAD é a individualização da terapia, com monitorização cuidadosa de fluidos, eletrólitos e o controle da glicose sérica como prioridade1,2,9,16. Os critérios utilizados para o tratamento da CAD são listados abaixo1-17.

Correção da desidratação e dos distúrbios eletrolíticos

A reposição volumétrica na CAD segue os mesmos princípios de outras situações de desidratação ou choque: uma fase inicial de expansão rápida (1-4 horas) seguida de uma etapa mais lenta de reidratação e reposição de perdas (20-22 horas)1,2,9,16. Alguns estudos retrospectivos e multicêntricos concluíram por existir uma forte associação na CAD entre edema cerebral e administração de grandes quantidades de fluidos13,14. Deve-se ressaltar, entretanto, que nesses estudos não é possível concluir se o edema cerebral ocorreu exclusivamente pelo excesso de líquidos infundidos ou por tratar-se de um grupo mais grave de pacientes, fazendo com que estes necessitassem de maior reposição volumétrica. Enquanto não é dirimida esta dúvida, temos seguido as recomendações usuais para a reposição volêmica na desidratação e choque na fase de expansão (precoce) e sido mais comedidos na fase de manutenção9.

Fase de expansão (1-4 horas)

É fundamental a obtenção rápida de dois ou mais acessos venosos periféricos. Imediatamente, deve ser iniciada a fase de expansão com NaCl 0,9% (SF), 20 mL/kg a cada 20 minutos, que podem ser repetidos até obter estabilidade circulatória. Imaginemos uma criança com CAD, pesando 20 kg, com sinais evidentes de desidratação. Deveria, neste caso, receber uma primeira expansão com 400 mL de SF a correr em 20 minutos. Obviamente este volume não consegue ser infundido neste curto espaço de tempo através de apenas um vaso periférico. Por isso, recomenda-se que, na CAD, sejam puncionados dois ou três acessos periféricos, para que o volume calculado seja reposto dento do tempo previsto.

Usualmente, na CAD são necessárias duas ou três expansões de 20 mL/kg de SF até que os sinais de desidratação sejam revertidos. Esta reposição rápida com SF restabelece a volemia e melhora a perfusão renal, que aumenta a filtração glomerular, promovendo diurese osmótica de glicose, com redução da glicemia e da osmolaridade plasmática1,9,17. No tratamento da CAD, expansões com SF, por serem isotônicas em relação ao plasma (SF ou Na = 154 mEq/L), promovem maior aumento na volemia que as soluções mais diluídas, reduzindo de forma mais lenta a queda na osmolaridade1,9,17. Portanto, mesmo naquelas situações de CAD em que o sódio sérico inicial esteja superior a 150 mEq/L, não utilizamos soluções hipotônicas.

Fase de reidratação (20-22 horas)

Tão logo os sinais de depleção volêmica (taquicardia, hipoperfusão, hipotensão, etc.) tenham revertido, suspendemos as expansões rápidas com SF e passamos para a fase de manutenção1,2,9,16,17. Esta fase deve incluir o volume de manutenção (1.800 a 2.000 mL/m2/dia) acrescido do volume para reposição de perdas posteriores, nos casos de vômitos persistentes e diarréia. Naqueles pacientes com acentuada hiperglicemia, mesmo recebendo tratamento adequado, deve-se supor que continuarão a ter perdas urinárias aumentadas, sendo recomendado, nesse caso, um acréscimo de até 30-50% na ração hídrica de manutenção, o que corresponde a uma infusão de até 2.500-3.000 mL/m2/dia1,2,9,14,16. Para evitar a hiperhidratação, devem ser feitas avaliações periódicas visando a redução na oferta hídrica para os valores de manutenção.

Alguns autores sugerem que seja utilizado NaCl 0,45% (Na = 75 mEq/L) inicialmente nos casos em que o sódio sérico exceder 150 mEq/L, ou quando a osmolaridade plasmática calculada for superior a 340 mOsm/L12,15. Pelas razões acima descritas, mesmo nesses casos, optamos por manter a infusão de solução fisiológica isotônica (SF) até a glicemia situar-se ao redor de 300 mg/dL, quando deve ser adicionado 5 g de glicose para cada 100 mL1,9,16,17.

Estima-se que, na CAD, ocorra um déficit de potássio de 4 a 6 mEq/kg, que fica mais evidente com a correção da acidose e pela ação da insulina (promove a entrada de glicose e potássio para o interior da célula)1,2,9,18. Havendo diurese, deve-se acrescentar potássio (40 mEq/L) na solução de reidratação e fazer os acréscimos, caso necessários, de acordo com os dados laboratoriais. Em casos severos de hipopotassemia (níveis inferiores a 2,5 mEq/L), pode-se fazer uma reposição com 0,4-0,6 mEq/kg/h por 6 horas. Até recentemente, havia uma recomendação de administrar parte do potássio sob a forma de fosfato, mas estudos randomizados não demonstraram benefícios na reposição de fosfato, já que são raros os efeitos clínicos da hipofosfatemia. A reposição de fosfato deve ser indicada apenas em pacientes com depressão respiratória e naqueles com nível sérico < 1,0 mg/dL. Nesses casos, administra-se 1/3 do potássio sob a forma de fosfato de potássio1,2,9.

A correção da acidose metabólica nos pacientes com CAD ocorre com a reposição volumétrica e, principalmente, por ação da insulina, que reverte a formação de cetoácidos. A acidose metabólica, como já referido, é um marcador de gravidade. E, diferentemente do que se acreditava anteriormente, tem sido demonstrado que, isoladamente, o pH ácido não é um fator determinante que aumente o risco de morte ou falência orgânica9,19-22. Por outro lado, a administração de bicarbonato de sódio na CAD tem sido associada com edema cerebral e morte1,2,13-15. O uso de bicarbonato de sódio pode provocar vários efeitos adversos, como hipocalemia, agravamento da hiperosmolaridade, aumento da acidose intracelular devido à produção de CO2, acidose paradoxal no SNC, desvio da curva de dissociação da hemoglobina para a esquerda com diminuição da oferta de oxigênio aos tecidos, redução mais lenta da cetonemia e possível relação com desenvolvimento de edema cerebral1-14.

Os recentes consensos da Associação Americana de Diabetes para crianças em CAD consideram a utilização de bicarbonato quando o pH for inferior a 6,9 e persistir após a primeira hora de hidratação. Nesses casos, deveria ser administrada dose de 1-2 mEq/kg de bicarbonato de sódio em 1-2 horas1,2. Em nossos serviços, temos evitado a infusão de bicarbonato de sódio na CAD, mesmo em presença de pH inferior a 7,0.

A dieta via oral deve ser iniciada em pacientes acordados, sem vômitos e com melhora da acidose. A solução de reidratação parenteral deve ser mantida enquanto a insulina contínua for necessária1-12.

Insulinoterapia

A administração de insulina promove a entrada de glicose para o espaço intracelular, reverte o estado catabólico e suprime a lipólise e cetogênese, corrigindo a glicemia e a acidose1,2,10,18,22-24.

Apesar de alguns autores recomendarem infundir uma dose de ataque de insulina regular (0,1 UI/kg) em pacientes com CAD, temos preferido iniciar diretamente com a infusão contínua de 0,1 UI/kg/h de insulina regular diluída em soro fisiológico1,2,9,11,23. Conforme referido anteriormente, a adequada reposição volêmica induzirá a uma melhora na perfusão renal, propiciando a redução na glicemia. Se, associado a esse fato, administrarmos uma dose de ataque de insulina regular, poderemos induzir a uma queda muito intensa na glicemia e na osmolaridade (principal fator associado ao edema cerebral)1,9,23.

Em nossos serviços, utilizamos a diluição de insulina regular na proporção de 0,1 UI/mL (250 mL de SF com a adição de 25 UI de insulina regular), a qual é infundida na velocidade de 1 mL/kg/h (0,1 UI/kg/h), em bomba de infusão. Devido à ligação da insulina ao plástico, destinamos os 50 mL iniciais da solução para lavar o equipo9.

De maneira geral, inicia-se a infusão de glicose no tratamento da CAD quando a glicemia atinge 250-300 mg/dL. Para tal fim, acrescenta-se glicose ao SF até obter uma concentração de 5% (50 g/L, ou 100 mL de glicose a 50% para cada litro de SF). Uma infusão de 2.000 mL/m2/dia de uma solução com 5% de glicose fornece uma taxa de infusão de glicose entre 2,5 e 3,5 mg/kg/min. Esta variação acontece porque o peso e a superfície corpórea não têm uma correlação absolutamente linear. Portanto, além do cálculo da quantidade de líquido ofertado (mL/m2/dia), deve-se calcular a taxa de infusão de glicose (mg/kg/min), baseado na concentração de glicose da solução, no peso do paciente e na velocidade infusão.

O objetivo inicial no tratamento da CAD é corrigir a acidose e manter a glicemia entre 150-250 mg/dL durante a infusão com insulina contínua. Com a infusão de insulina contínua, espera-se uma redução na glicemia entre 50 a 100 mg/dL a cada hora1,9,23. Nos casos em que a queda dos níveis de glicose for inferior a 50 mg/dL/h, deve-se aumentar a infusão de insulina para 0,15 a 0,2 UI/kg/h. Se a redução da glicemia for mais rápida que 100 mg/dL/h na vigência de infusão contínua de insulina, deve-se aumentar a administração de glicose endovenosa, podendo chegar até 5 mg/kg/min1,9,23.

A acidose e a cetonemia são os principais marcadores da insuficiência de insulina e de glicose no metabolismo celular durante a CAD. A correção da glicemia é mais rápida do que a correção da acidose. Portanto, naqueles pacientes que apresentem queda importante da glicemia, mas que mantenham acidose e/ou cetonemia positiva, a infusão contínua de insulina não deve ser reduzida. Nestes casos, é necessário o aumento da infusão de glicose, algumas vezes com uso de glicose a 10%1,2,9,23.

Somente deve-se reduzir a infusão de insulina contínua quando houver necessidade de infusão de glicose acima de 5 mg/kg/min para manter glicemia entre 150 e 200 mg/dL. Esse fenômeno pode ocorrer em: (a) pacientes com DM recentemente diagnosticado que ainda tenham alguma produção endógena de insulina e maior sensibilidade à insulina; e (b) pacientes com níveis residuais de insulina de longa ação (por exemplo: usuários de insulina glargina ou detemir). Nesta situação, reduzimos a taxa de infusão de insulina para 0,05 U/kg/h e mantemos a infusão de glicose (entre 3,5 e 5 mg/kg/min)1,2,9,22-24.

Portanto, ao associar glicose à solução de hidratação (SF) e na vigência de infusão de insulina contínua, é comum que tenhamos que efetuar ajustes freqüentes na taxa de infusão de glicose, em função da maior ou menor queda da glicemia. Muitas vezes é necessária a troca de soluções, o que demanda tempo e custo. Alguns autores propõem a utilização de um sistema com duas bolsas (Figura 2), que têm idêntico conteúdo eletrolítico (NaCl = 150 mE/L e KCl = 40 mEq/L), diferindo na concentração de glicose (0 e 10%), colocadas em "Y" em um único acesso venoso no paciente25. As variações no aporte de glicose infundida se dariam apenas pelo ajuste do gotejo de cada uma das bolsas, mantendo o aporte hídrico estimado previamente. Esse sistema permite ajustes rápidos de acordo com a glicemia, sendo possível infundir soluções com concentrações entre 0 e 10% de glicose, de forma a individualizar a terapia às necessidades de qualquer paciente25.


A infusão de insulina contínua pode ser suspensa quando o pH sangüíneo for superior a 7,30, o bicarbonato sérico for ≥ 18, anion gap entre 8 e 12 e o paciente estiver em condições de ser alimentado por via digestiva (Figura 3)1,2,9,11.


Uma hora antes de suspender a infusão contínua de insulina, deve ser administrado um bolo de insulina regular subcutânea de 0,1 UI/kg. As doses subseqüentes de insulina deverão ser definidas de acordo com o regime prévio de uso de insulina de cada paciente. Nos pacientes cujo diagnóstico de DM foi estabelecido a partir do quadro atual de CAD, recomenda-se um regime diário de insulina inicial de 0,6 a 0,7 UI/kg/dia, divididos entre insulina de longa e curta duração, administradas em duas ou três aplicações antes das refeições1,2,9. Do ponto de vista prático, sugere-se fazer a transição da insulina endovenosa para o regime de insulina NPH em horários próximos às refeições do paciente, preferencialmente pela manhã. Nos casos em que o paciente preencha critérios para suspensão de insulina contínua fora destes horários, como durante a noite, por exemplo, pode-se manter a infusão endovenosa por mais algumas horas, com ajustes na taxa de infusão de glicose conforme a necessidade.

Uma nova opção nesta transição da insulina regular endovenosa para a insulina subcutânea é a utilização de insulina glargina (Lantus). A insulina glargina é uma insulina de liberação lenta e com ação prolongada, mimetizando o efeito obtido quando da utilização de insulina em bomba de infusão. Em um estudo envolvendo crianças com CAD, comparou-se a evolução de um grupo tratado com o esquema tradicional de insulina regular endovenosa (EV) com outro grupo que recebeu 0,3 UI/kg de insulina glargina nas primeiras 6 horas de tratamento associado à insulina regular EV. A adição desta dose baixa e estável de insulina glargina permitiu suspender insulina EV contínua mais precocemente, reduzir a quantidade total de insulina administrada, corrigir a acidose mais rapidamente e alta da UTI mais precoce26.

Complicações

Os distúrbios eletrolíticos (hipopotassemia, hipo ou hipernatremia, hipofostatemia, etc.) e a hipoglicemia (já comentada anteriormente) estão entre as principais complicações do tratamento da CAD. A acidose hiperclorêmica é também uma complicação freqüente, decorrente do excesso de reposição de cloro, presente tanto no cloreto de sódio como no cloreto de potássio, utilizados no manejo inicial dos pacientes. Em geral, manifesta-se após alguns dias da CAD e não necessita tratamento específico, evoluindo espontaneamente na presença de função renal normal.

Arritmias cardíacas

Causadas por distúrbios eletrolíticos (hipo ou hiperpotassemia, hipocalcemia, hipomagnesemia), ocorrem raramente na CAD7,9.

Aspiração de vômito

Na medida em que ocorrem alterações importantes de sensório e muitos pacientes apresentam vômitos de repetição, pode ocorrer aspiração pulmonar dos vômitos. Esta complicação deve ser prevenida com a supervisão atenta do paciente em ambiente hospitalar adequado.

Edema pulmonar

É uma complicação pouco comum. Ocorre um aumento na necessidade de oxigênio, podendo ou não haver alterações radiológicas compatíveis com edema pulmonar. Vários fatores podem estar envolvidos: baixa pressão oncótica, aumento da permeabilidade capilar pulmonar e edema pulmonar neurogênico. O tratamento envolve oxigenoterapia, uso de diuréticos e suporte ventilatório quando indicado9,27-29.

Edema cerebral

É praticamente restrita à faixa etária pediátrica, ocorrendo em 1 a 2% das crianças com CAD, sendo mais prevalente em crianças menores de 5 anos e no primeiro diagnóstico de CAD. É uma complicação muito temida na CAD, pois apresenta uma mortalidade de 40 a 90%, ao passo que uma parcela dos sobreviventes apresentará seqüelas. Existem evidências de que muitos pacientes com CAD apresentam algum grau de edema cerebral subclínico mesmo antes do início do tratamento3,13,14,16,30-33.

As manifestações clínicas do edema cerebral em geral são súbitas, podendo haver rápida progressão para herniação cerebral, mesmo quando o quadro clínico é reconhecido e tratado agressivamente31. O edema cerebral geralmente ocorre 4 a 12 horas após o início do tratamento e no momento em que a acidose, desidratação e hiperglicemia, bem como o estado geral do paciente, estão melhorando. Os sinais e sintomas iniciais são cefaléia e diminuição da consciência, que evoluem rapidamente para deterioração do sensório, pupilas dilatadas, bradicardia e parada respiratória. Em alguns casos, pode ser precedido por um período de alteração de comportamento associado ou não a cefaléia e vômitos1-3,13,14,17,31,32. Em até 40% das crianças com quadro clínico de edema cerebral, a tomografia cerebral inicial pode ser normal1.

A fisiopatologia do edema cerebral na CAD não está totalmente elucidada, sendo mais freqüentemente associada a declínio rápido na osmolaridade plasmática, excesso de líquidos (acima de 4.000 mL/m2/dia), administração de bicarbonato, baixo pCO2, uréia plasmática alta, hipoperfusão cerebral e ação direta das cetonas na liberação de interleucinas inflamatórias cerebrais. Quedas rápidas na concentração do sódio sérico e na osmolaridade plasmática durante o tratamento, associadas à presença de osmóis idiogênicos nas células do SNC, seriam o mecanismo principal na gênese do edema cerbral1-3,13,14,16,17,29-32. Acredita-se que predomine o edema cerebral vasogênico, que é mais responsivo ao tratamento1,32.

O tratamento do edema cerebral pode ser realizado com infusões de manitol 0,25 a 0,5 g/kg/a cada 2-4 horas, ou então com o uso de solução salina hipertônica 3% (5-10 mL/kg/a cada 30 min) com a manutenção do sódio plasmático entre 150 e 160 mEq/L. Nos casos diagnosticados precocemente, antes do surgimento de alterações pupilares e na freqüência cardíaca, muitas vezes o manitol promove uma melhora significativa, não sendo necessários intubação e suporte ventilatório. Quando empregado o suporte ventilatório, deve-se controlar o pCO2 entre 30 e 35 mmHg, além de manter cabeceira elevada a 30 graus e normovolemia. Nos casos de herniação, a mortalidade é alta, mesmo com a instituição do tratamento. Portanto, é imperativa a monitorização freqüente e rigorosa do estado de consciência do paciente nas primeiras horas de tratamento e, na presença de qualquer deterioração aguda, está indicada a administração imediata de manitol1,3,9,16,17,32.

Prevenção

Apesar da melhora dos recursos diagnósticos e terapêuticos, não se observou diminuição na mortalidade por CAD nas últimas 2 décadas1-3,13,14,17. Portanto, o principal objetivo do manejo de pacientes com DM insulino-dependente deve ser a prevenção de episódios de CAD através de um alto índice de suspeição com monitorização rigorosa de sintomas1,2,9,12.

A prevenção da recorrência de episódios de CAD, principalmente em adolescentes, exige uma eficiente participação e vigilância por parte da família e da equipe de saúde. Episódios repetidos de CAD devem ser considerados como falha no tratamento a longo prazo. A eficiente prevenção de CAD envolve1,2,9,12,18: (a) reconhecimento de sinais precoces de descompensação do diabetes; (b) identificação de eventos que possam precipitar o aumento da necessidade de insulina; (c) intervenção precoce; e (d) intervenção agressiva no núcleo familiar de pacientes com episódios recorrentes de CAD.

A prevenção de CAD no momento do diagnóstico de novos casos de DM envolve o conhecimento, por parte dos médicos, das manifestações iniciais da doença, bem como um alto índice de suspeição por parte dos mesmos. O diagnóstico precoce de diabetes e a instituição do tratamento evitam a progressão para CAD1. É importante salientar também que, sempre que se estabelece o diagnóstico de DM, devemos também caracterizar se o DM é ou não insulino-dependente. Em crianças e adolescentes, em princípio, todos os casos são insulino-dependentes. Nesta situação, todos os pacientes com DM devem ser tratados desde o início com insulinoterapia, não estando indicado o uso de hipoglicemiantes orais, que dependem da existência de secreção pancreática de insulina para sua ação. Infelizmente, ainda se observam casos de pacientes com DM recentemente diagnosticado que evoluem para CAD na vigência de tentativas de uso de hipoglicemiantes orais. Nestes casos, a CAD poderia ser prevenida pela correta orientação diagnóstica e terapêutica do DM insulino-dependente.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2007
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