Acessibilidade / Reportar erro

O co-leito em perspectiva

EDITORIAL

O co-leito em perspectiva

Peter S. Blair

Senior Research Fellow, Institute of Child Life & Health, University of Bristol, Bristol, UK

Correspondência Correspondência: Peter Blair FSID Research Unit, Level D Southwell St., St. Michaels Hospital BS2 8EG - Bristol - UK Tel.: +44 (117) 928.5145 Fax: +44 (117) 928.5154 Email: p.s.blair@bris.ac.uk

O co-leito inicia logo após o nascimento e muitas vezes se estende pela infância como parte das primeiras práticas de criação dos filhos. Em termos evolutivos, o lactente humano é o primata mais imaturo neurologicamente ao nascer e é o que se desenvolve mais lentamente; desse modo, o contato intenso e prolongado do lactente com a mãe atua como mecanismo de proteção contra dificuldades fisiológicas e agressões ambientais. Dentre os benefícios associados ao contato próximo entre lactentes e seus cuidadores é possível citar: maior estabilidade cardiorrespiratória e oxigenação, diminuição de episódios de choro, melhor termorregulação, aumento da prevalência e duração do aleitamento materno e melhor produção de leite1,2. Por outro lado, os benefícios do aleitamento materno estão sendo cada vez mais reconhecidos e ativamente promovidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). O co-leito pode facilitar o aleitamento materno, e a promoção de uma prática pode levar à promoção da outra. No entanto, a cama dos pais não é projetada levando em consideração a segurança do bebê, e o co-leito tem sido associado com mortes acidentais (raras, porém fatais) de bebês causadas por sufocação e esmagamento. Estudos epidemiológicos mais recentes sobre a síndrome da morte súbita do lactente (SMSL) mostraram um crescimento proporcional dessas mortes no ambiente de co-leito3, o qual levou algumas autoridades, incluindo a American Academy of Pediatrics4, a desaconselhar o compartilhamento da cama. O nível incomum de crítica e hostilidade5-8 gerado por essa recomendação é prova da polêmica atual que há sobre o tema, seja no escopo da SMSL ou de forma mais ampla, em relação aos riscos potenciais e benefícios percebidos por pais e lactentes que compartilham a mesma cama. Como Santos et al.9 apontaram de forma perspicaz em sua investigação sobre essa prática de cuidado infantil no Brasil, as vantagens e os riscos são percebidos de acordo com os valores de uma determinada sociedade.

Em uma sociedade onde o co-leito é raro ou associado principalmente a grupos étnicos minoritários ou a famílias de baixa renda, talvez seja mais fácil identificar tal prática como um fator de risco em si mesmo. A SMSL também é descrita como "morte no berço", porque esse é o ambiente em que muitos desses lactentes são encontrados. No entanto, o "berço", como ambiente de sono do lactente, nunca foi tratado como um fator de risco em pesquisas sobre SMSL; em vez disso, grande atenção tem sido prestada às circunstâncias do berço que podem oferecer risco ou proteção ao lactente. Por outro lado, o co-leito é percebido como um fator de risco, e poucos estudos levaram em conta as circunstâncias específicas nas quais tais lactentes morrem, como, por exemplo, se a cama era, na verdade, um sofá, ou se os pais haviam consumido álcool em excesso ou estavam sob o efeito de drogas indutoras do sono. Tratada desse modo rudimentar, misturando eventos raros perigosos e claramente inapropriados com formas aceitas de cuidado materno-infantil, e atribuindo rótulos simplistas como "seguro" ou "perigoso" ao cuidado como um todo, há amplas evidências para se desaconselhar tal prática. Se a sociedade percebe que não há benefícios no co-leito, então talvez haja algum mérito nessa abordagem, afinal ninguém discute o fato de que o berço ao lado da cama dos pais é o lugar mais seguro para o lactente dormir. Ao simplesmente desaconselhar o co-leito, no entanto, assume-se que os pais ouvirão tal conselho e também que eles têm uma escolha a fazer. A maioria dos lactentes geralmente acorda durante a noite, e a maioria precisa ser alimentada; ocasionalmente, as mães cairão no sono enquanto amamentam, e nesses casos, a cama dos pais é uma opção muito mais segura do que uma poltrona ou sofá. Dizer às mães que não pratiquem o co-leito impossibilita o aconselhamento sobre como fazê-lo de modo seguro, ignora preferências culturais e reduz as opções de onde as mães podem amamentar os lactentes durante o sono.

Em muitas sociedades, a prática do co-leito não é rara. Na Inglaterra, quase metade dos neonatos compartilham por algum tempo a cama com seus pais; 1/5 dos lactentes são levados regularmente à cama dos pais durante o primeiro ano de vida10. Em outros países da Europa, índices similares ou maiores de compartilhamento da cama foram relatados aos 3 meses de idade: Irlanda (21%), Alemanha (23%), Itália (24%), Escócia (25%), Áustria (30%), Dinamarca (39%) e Suécia (65%)11. Mesmo em países onde a prática é incomum, como Holanda, Noruega e EUA, um aumento foi observado na última década na prevalência do compartilhamento da cama3, período em que as taxas de aleitamento materno também aumentaram. No Brasil, Santos et al. relataram que o co-leito é comum entre lactentes com 1 ano de idade (46%), especialmente entre mães mais jovens, com menor escolaridade e com nível socioeconômico mais baixo9. Resultados similares foram relatados nos EUA e na Nova Zelândia, mas a percepção de que o co-leito é, de alguma forma, uma prática indesejável de cuidado infantil, por estar relacionada a grupos mais carentes, não é necessariamente correta. No Brasil, o aleitamento materno é comum entre os grupos mais pobres, e mais comum em grupos socioeconomicamente intermediários do que naqueles com maior status, embora o aleitamento seja visto como uma prática desejável, positiva tanto para a mãe quanto para o lactente12. O uso de chupetas é comumente associado a grupos socioeconomicamente mais pobres, mas é uma prática atualmente incentivada enquanto mecanismo potencial de proteção contra SMSL, ou pelo menos um indicador de que os pais parecem estar fazendo a coisa certa13. Pobreza não necessariamente implica más práticas de cuidado, assim como a prática do co-leito não é exclusiva de grupos populacionais mais pobres. Na Inglaterra, o co-leito ultrapassa fronteiras sociais10, assim como na Suécia14 e em diversas culturas não-ocidentais.

Em certas culturas, o compartilhamento da cama é a prática padrão, e a prevalência de SMSL é alta. Estão incluídas nesse grupo as populações negras nos EUA e as populações aborígenes e Maori no Hemisfério Sul. No entanto, interessantemente, há outras culturas nas quais o co-leito também é a prática padrão, porém as taxas de SMSL são baixas, incluindo Japão e Hong Kong, as comunidades asiáticas e bangladeshianas no Reino Unido e as comunidades do Pacífico na Nova Zelândia3. Não é o compartilhamento da cama que distingue tais comunidades, mas há outros fatores mediadores, tais como fumo materno (particularmente baixo no Japão e em Hong Kong11) e consumo de álcool pelos pais (alto entre as populações Maori e aborígenes15,16), que podem ser combinados ao co-leito e influenciar os índices de SMSL. Outro fator mediador pode ser o próprio ambiente do sono, como o futon japonês, por exemplo, um colchão firme e estreito colocado no chão, que é intrinsecamente diferente dos colchões geralmente mais macios e elevados usados nas sociedades ocidentais.

O número de estudos epidemiológicos que investigam benefícios potenciais associados às práticas de cuidado do lactente é muito menor do que os que focam em práticas possivelmente ligadas a morbidade e mortalidade infantil. A interpretação dos resultados, assim como a forma como as perguntas são formuladas e as respostas delineadas, pode dificultar a compreensão e ser dependente da maneira como diferentes culturas vêem tais práticas. Santos et al. mostraram que o despertar noturno infantil está associado ao co-leito9. Uma interpretação é que a presença de um adulto pode perturbar o sono do lactente, fazendo-o acordar; outra é que o co-leito é uma conseqüência de o lactente ficar acordando durante a noite - ou uma solução, se preferirem. Uma terceira possibilidade sugerida pelos autores é que o despertar infantil é percebido de forma diferente pelas mães que praticam co-leito, talvez como uma interação mais positiva, associada à necessidade da amamentação. Assim, embora episódios incessantes de despertar noturno possam ser descritos como um distúrbio do sono, o despertar freqüente pode também ser descrito como um bebê faminto que a mãe se alegra em amamentar. Elaborar perguntas que permitam às mães articular essas diferenças talvez seja mais complexo do que idealizar fatores de risco brutos para estudos de morbidade.

Alguns ambientes de co-leito, especialmente entre lactentes, são claramente perigosos, e os pais devem ser conscientizados sobre quais são as circunstâncias perigosas e como evitá-las. Os potenciais benefícios imediatos e futuros do compartilhamento do leito por crianças e seus pais ainda precisam ser estudados. Para fazê-lo de forma adequada, é possível que todos nós tenhamos que abandonar nossos próprios preconceitos, determinados culturalmente, e olhar mais atentamente para as circunstâncias específicas em que a prática do co-leito ocorre, a mudança da tomada de decisão dos pais que determina essa prática com o passar do tempo e a experiência tanto daqueles que optam quanto daqueles que não optam pelo co-leito.

  • 1. Anderson GC. Current knowledge about skin-to-skin (kangaroo) care for preterm infants. J Perinatol. 1991;11:216-26.
  • 2. Ludington-Hoe SM, Hadeed AJ, Anderson GC. Physiological responses to skin-to-skin contact in hospitalized premature infants. J Perinatol. 1991;11:19-24.
  • 3. Blair PS, Fleming P. Co-sleeping and infant death. In: David TJ, editor. Recent advances in Pediatrics 24. London: Royal Society of Medicine Press; 2007.
  • 4. American Academy of Pediatrics, Task Force on Sudden Infant Death Syndrome. The changing concept of sudden infant death syndrome: diagnostic coding shifts, controversies regarding the sleeping environment, and new variables to consider reducing the risk. Pediatrics. 2005;116:1245-55.
  • 5. Gessner BD, Porter TJ. Bed sharing with unimpaired parents is not an important risk factor for sudden infant death syndrome. Pediatrics. 2006;117:990-1; author reply 994-6.
  • 6. Eidelman AI, Gartner LM. Bed sharing with unimpaired parents is not an important risk factor for sudden infant death syndrome: to the editor. Pediatrics. 2006;117:991-2; author reply 994-6.
  • 7. Bartick M. Bed sharing with unimpaired parents is not an important risk factor for sudden infant death syndrome: to the editor. Pediatrics. 2006;117:992-3; author reply 994-6.
  • 8. Pelayo R, Owens J, Mindell J, Sheldon S. Bed sharing with unimpaired parents is not an important risk factor for sudden infant death syndrome: to the editor. Pediatrics. 2006;117:993; author reply 994-6.
  • 9. Santos IS, Mota DM, Matijasevich A. Epidemiology of co-sleeping and nighttime waking at 12 months in a birth cohort. J Pediatr (Rio J). 2008;84(2):114-22.
  • 10. Blair PS, Ball HL. The prevalence and characteristics associated with parent-infant bed-sharing in England. Arch Dis Child. 2004;89:1106-10.
  • 11. Nelson EA, Taylor BJ. International Child Care Practices Study: infant sleeping environment. Early Hum Dev. 2001;62:43-55.
  • 12. Araujo CL, Victora CG, Hallal PC, Gigante DP. Breastfeeding and overweight in childhood: evidence from the Pelotas 1993 birth cohort study. Int J Obes (Lond). 2006;30:500-6.
  • 13. Mitchell EA, Blair PS, L'Hoir MP. Should pacifiers be used to prevent sudden infant death syndrome? Pediatrics. 2006;117:1755-8.
  • 14. Welles-Nystrom B. Co-sleeping as a window into Swedish culture: considerations of gender and health care. Scand J Caring Sci. 2005;19:354-60.
  • 15. Chikritzhs T, Brady M. Fact or fiction? A critique of the National Aboriginal and Torres Strait Islander Social Survey 2002. Drug Alcohol Rev. 2006;25:277-87.
  • 16. Scragg R, Mitchell EA, Taylor BJ, Stewart AW, Ford RP, Thompson JM, et al. Bed sharing, smoking, and alcohol in the sudden infant death syndrome. New Zealand Cot Death Study Group. BMJ. 1993;307:1312-8.
  • Correspondência:

    Peter Blair
    FSID Research Unit, Level D
    Southwell St., St. Michaels Hospital
    BS2 8EG - Bristol - UK
    Tel.: +44 (117) 928.5145
    Fax: +44 (117) 928.5154
    Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
    Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jped@jped.com.br