Acessibilidade / Reportar erro

O início de uma nova era no tratamento da mucopolissacaridose tipo VI: uma busca por melhores marcadores de evolução da doença e resposta ao tratamento

EDITORIAL

O início de uma nova era no tratamento da mucopolissacaridose tipo VI: uma busca por melhores marcadores de evolução da doença e resposta ao tratamento

Paul Harmatz

MD. Pediatric Gastroenterology and Nutrition, Children's Hospital & Research Center Oakland, Oakland, CA, USA

Correspondência Correspondência: Paul Harmatz Children's Hospital & Research Center Oakland 94563 - Oakland, CA - EUA Tel.: +1 (510) 428.3058 Fax: +1 (510) 450.5813 Email: pharmatz@mail.cho.org

A mucopolissacaridose (MPS) tipo VI é uma doença genética rara, de transmissão autossômica recessiva, que envolve mutação e funcionamento anormal da enzima lisossômica N-acetilgalactosamina (arilsulfatase B - ASB)1. A atividade deficiente desta enzima gera degradação incompleta do glicosaminoglicano (GAG) dermatan sulfato, levando ao acúmulo de metabólitos nas células e tecidos, em um processo que acaba resultando em dano ao lisossoma, morte celular e disfunção orgânica. Apesar de um amplo espectro da gravidade clínica associada à doença, nos pacientes significativamente afetados, as manifestações clínicas típicas incluem baixa estatura, sinais de disostose múltipla, doença articular, doença valvular cardíaca, doença pulmonar obstrutiva e restritiva, infecções respiratórias freqüentes e perda auditiva, doença ocular incluindo opacificação corneana e glaucoma, doença do nervo óptico, hepatoesplenomegalia moderada e hérnia abdominal. Diferentemente de outros tipos de MPS, doenças do sistema nervoso central (SNC) primário e retardo mental não fazem parte do espectro clínico da MPS VI. Até recentemente, o tratamento de pacientes com MPS VI envolvia principalmente tratamento de apoio médico e cirúrgico2. Alguns relatos de caso de MPS VI descrevem êxito no transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH)3,4, entretanto o risco do transplante é significativo e a obtenção de doadores compatíveis ainda é difícil.Em 2005, o Naglazyme® (galsulfase; N-acetilgalactosamina humana recombinante, rhASB) foi aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) como uma terapia de reposição enzimática (TRE) intravenosa para MPS VI. O ensaio clínico fase III do rhASB5 demonstrou uma melhora significativa na resistência em um teste de caminhada de 12 minutos e também uma redução da concentração de GAG na urina em um estudo randomizado de 6 meses, duplo-cego e controlado por placebo, que apoiou achados similares de estudos anteriores fase I/II6 e II7. A terapia foi bem tolerada e apresentou um perfil de segurança favorável. Embora tenham sido incluídas nos ensaios clínicos as medidas da mobilidade da articulação do ombro e das forças de garra e de pinça, esses parâmetros não foram examinados como biomarcadores de gravidade ou evolução da doença, como descrito no presente estudo.

No presente artigo, Cardoso-Santos et al.8 examinam sistematicamente as anormalidades esqueléticas da mobilidade articular e a redução das forças de garra e de pinça como marcadores de gravidade e evolução da MPS tipo VI e avaliam a relação desses marcadores da doença com outros marcadores já reconhecidos, que incluem excreção urinária de GAG, atividade da enzima ASB ou distância percorrida em um teste de caminhada de 6 minutos. A identificação de marcadores clínicos, bioquímicos e de desempenho, para a MPS VI e outras doenças MPS tem representado um constante desafio. Apesar da indicação dos oligossacarídeos9-11 e a heparina12 na urina, a excreção urinária de GAG tem sido o único biomarcador a ser amplamente aceito para o depósito de GAG. Antes de considerarmos as correlações dos marcadores de desempenho com os marcadores bioquímicos feitas pelos autores, é importante reenfatizar a dificuldade do teste de desempenho nesta população. Como observam os próprios autores, os testes de garra usando o dinamômetro Jamar não foram viáveis devido ao tamanho pequeno da mão e da pouca força de garra. Dificuldades similares devido a tamanho, doença articular, força limitada e amplo espectro da doença são encontradas quando tentamos utilizar outros aparelhos padronizados para realização de testes de resistência e de força, como esteiras, bicicletas ergométricas e calorimetria indireta com aparelhos portáteis. Esta população pode ser testada de uma melhor forma utilizando-se atividades simples, padronizadas e validadas como testes, que incorporam atividades exigidas na vida diária, como o ato de caminhar, de subir escadas, a função respiratória, o movimento articular, o teste para a força de pinça, o monitoramento da saturação de oxigênio noturna (como o utilizado nos ensaios clínicos para TRE). No presente estudo, os autores apresentam o valor das medidas de mobilidade articular usando técnicas bem validadas por operadores consistentes. Como era esperado, a flexão da articulação do ombro apresentou a maior limitação, presente precocemente, mas surpreendentemente não apresentando alterações progressivas com a idade, o que teria implicado em evolução da doença. Eles sugerem a explicação mais provável - que a gravidade é tal que a mudança com a idade não é aparente. Em contraste, a flexão de cotovelo e a flexão de joelho foram anormais e sofreram alterações com a idade. Interessantemente, apesar de não demonstrar alterações com a idade, a flexão de ombro apresentou forte correlação com o teste de caminhada de 6 minutos, o parâmetro que melhor demonstrou o efeito benéfico da TRE sobre a resistência. Embora um comprovado benefício do Naglazyme® para a mobilidade articular não tenha sido estabelecido nos ensaios clínicos de curta duração, será importante avaliar a resposta da flexão de ombro, assim como de outros movimentos articulares, na TRE de longa duração. Como um parâmetro, a flexão da articulação do ombro pode vir a melhorar no teste de caminhada de 6 minutos, já que este último teste pode sofrer impacto ao longo do tempo por processos secundários, como a compressão da medula cervical ou a deformidade debilitante funcional e estrutural da articulação do quadril, que podem ser menos responsivas à TRE. A avaliação da capacidade passiva da mobilidade articular pode também contribuir na avaliação da criança que ainda não tem idade suficiente para realizar o teste de caminhada. Embora a excreção urinária de GAG seja claramente uma boa medida bioquímica de resposta a terapia enzimática, o GAG urinário não se correlacionou com restrição articular ou força de pinça como medida de gravidade de doença no presente estudo. É possível que a redução normal de GAG urinário que ocorre com a idade possa estar obscurecendo esta relação. Pode também haver um efeito limiar para o GAG urinário acima do qual a doença grave é sinalizada e as diferenças nas medidas de restrição articular ou de desempenho individual podem não se correlacionar bem com o GAG urinário. Esse efeito limiar foi sugerido em um estudo de levantamento realizado por Swiedler et al.13 com 121 pacientes com MPS VI, no qual os autores observaram que altos valores de GAG urinário maiores do que 200 µg/mg de creatinina urinária estavam associados a um acelerado curso clínico.

Os autores sugerem que a restrição da flexão de ombro seja um achado presente precocemente na doença MPS VI e que a gravidade da restrição não apresente correlação com a idade. Esse achado destaca a importância do diagnóstico e do tratamento precoce. Estudos da MPS VI em modelo felino14-16 demonstraram claramente que o tratamento com rhASB iniciado precocemente resultou em anormalidades mais moderadas no desenvolvimento ósseo, na patologia articular, no espessamento das válvulas cardíacas e na estrutura da cartilagem traqueal. Além disso, os animais tratados desde o nascimento apresentaram anticorpos insignificantes contra rhASB, em contraste com os tratados após os 5 meses de idade, e haviam reduzido os depósitos de GAG em tecidos como as válvulas aorta ou cardíaca, em contraste com os animais com aumento de anticorpos. A introdução precoce do rhASB produz um estado de tolerância imunológica e elevada eficácia enzimática no modelo felino; esperamos que achados similares sejam demonstrados em humanos após a introdução precoce de TRE. Embora estudos com crianças recebendo Naglazyme® estejam em andamento, o relato de McGill et al.17 de dois irmãos com MPS VI apóia esses achados. Nesse caso, um menino, irmão mais novo de uma menina afetada, foi diagnosticado com MPS VI e a terapia com rhASB foi iniciada a 8 semanas de idade. A irmã mais velha iniciou TRE ao mesmo tempo (aos 3,5 anos de idade). O menino é descrito pelo Dr. McGill após 3 anos de terapia como não tendo hepatoesplenomegalia, apresentando mobilidade articular total e bom crescimento. No entanto, ele desenvolveu algumas alterações esqueléticas, incluindo pectus excavatum, alargamento das costelas e giba precoce, tem opacificação corneana e displasia mínima da válvula mitral. Notou-se na irmã mais velha aumento da escoliose, redução da hepatoesplenomegalia e melhora da mobilidade articular. Esperamos ansiosamente por um relato detalhado desse importante estudo. As medidas adicionais para mobilidade articular descritas pelos autores no presente estudo serão de grande valor para a avaliação da resposta a terapia nestas crianças mais novas.

Se a terapia precoce trará os benefícios relatados em estudos com animais e com os dois irmãos descrito acima, a identificação precoce de crianças com MPS VI torna-se crucial. No caso dos dois irmãos, o diagnóstico conhecido na família possibilitou a confirmação precoce no irmão recém-nascido. Na ausência de um irmão mais velho com MPS VI na família, não é usual o diagnóstico ser feito no primeiro ano de vida. A informação de que a flexão de ombro é um sinal precoce e severo de doença MPS VI deveria alertar os médicos e outros profissionais da saúde a considerar este diagnóstico. Entretanto, é provável que o diagnóstico realmente precoce dependa da implementação de programas de triagem para recém-nascidos. Duas abordagens para a triagem de recém-nascidos foram relatadas como bem-sucedidas: uma baseia-se na espectroscopia de massa em tandem e na análise de atividades enzimáticas múltiplas em amostra com uma única gota de sangue18; a segunda utiliza ensaios imunoenzimáticos múltiplos em amostra com uma gota de sangue19,20. Os dois métodos estão em processo de projeto-piloto em larga escala em um volume grande de recém-nascidos e em fase de implementação na população geral. Apenas com a realização da triagem em recém-nascidos para o reconhecimento precoce da MPS VI é que aproveitaremos em toda extensão os recentes avanços no tratamento para MPS VI. Como destacam os autores, a administração eficaz e o monitoramento do tratamento claramente exigem conhecimento sobre os perfis de mobilidade e força dos pacientes com MPS VI, como os fornecidos no presente estudo.

  • 1. Neufeld EF, Muenzer J. The mucopolysaccharidosis. In: Scriver CR, Beandet AL, Sly S, Valle D, Childs B, Kinzler KW, Volgesltein B, editors. The metabolic and molecular basis of inherited disease. New York: McGraw-Hill; 2001. p. 3421-52.
  • 2. Giugliani R, Harmatz P, Wraith JE. Management guidelines for mucopolysaccharidosis VI. Pediatrics. 2007;120:405-18.
  • 3. Herskhovitz E, Young E, Rainer J, Hall CM, Lidchi V, Chong K, et al. Bone marrow transplantation for Maroteaux-Lamy syndrome (MPS VI): long-term follow-up. J Inherit Metab Dis. 1999;22:50-62.
  • 4. Lange MC, Teive HA, Troiano AR, Bitencourt M, Funke VA, Setúbal DC, et al. Bone marrow transplantation in patients with storage diseases: a developing country experience. Arq Neuropsiquiatr. 2006;64:1-4.
  • 5. Harmatz P, Giugliani R, Schwartz I, Guffon N, Teles EL, Miranda MC, et al.; MPS VI Phase 3 Study Group. Enzyme replacement therapy for mucopolysaccharidosis VI: a phase 3, randomized, double-blind, placebo-controlled, multinational study of recombinant human N-acetylgalactosamine 4-sulfatase (recombinant human arylsulfatase B or rhASB) and follow-on, open-label extension study. J Pediatr. 2006; 148:533-9.
  • 6. Harmatz P, Whitley CB, Waber L, Pais R, Steiner R, Plecko B, et al. Enzyme replacement therapy in mucopolysaccharidosis VI (Maroteaux-Lamy syndrome). J Pediatr. 2004;144:574-80.
  • 7. Harmatz P, Ketteridge D, Giugliani R, Guffon N, Teles EL, Miranda MC, et al.; MPS VI Study Group. Direct comparison of measures of endurance, mobility, and joint function during enzyme-replacement therapy of mucopolysaccharidosis VI (Maroteaux-Lamy syndrome): results after 48 weeks in a phase 2 open-label clinical study of recombinant human N-acetylgalactosamine 4-sulfatase. Pediatrics. 2005;115:e681-9.
  • 8. Cardoso-Santos A, Azevedo AC, Fagondes S, Burin MG, Giugliani R, Schwartz IV. Mucopolysaccharidosis type VI (Maroteaux-Lamy syndrome): assessment of joint mobility and grip and pinch strength. J Pediatr (Rio J). 2008;84(2):130-5.
  • 9. Crawley A, Ramsay SL, Byers S, Hopwood J, Meikle PJ. Monitoring dose response of enzyme replacement therapy in feline mucopolysaccharidosis type VI by tandem mass spectrometry. Pediatr Res. 2004;55:585-91.
  • 10. Fuller M, Meikle PJ, Hopwood JJ. Glycosaminoglycan degradation fragments in mucopolysaccharidosis I. Glycobiology. 2004;14:443-50.
  • 11. Fuller M, Brooks DA, Evangelista M, Hein LK, Hopwood JJ, Meikle PJ. Prediction of neuropathology in mucopolysaccharidosis I patients. Mol Genet Metab. 1005;84:18-24.
  • 12. Randall DR, Sinclair GB, Colobong KE, Hetty E, Clarke LA.Heparin cofactor II-thrombin complex in MPS I: a biomarker of MPS disease. Mol Genet Metab. 2006;88:235-43.
  • 13. Swiedler SJ, Beck M, Bajbouj M, Giugliani R, Schwartz I, Harmatz P, et al. Threshold effect of urinary glycosaminoglycans and the walk test as indicators of disease progression in a survey of subjects with Mucopolysaccharidosis VI (Maroteaux-Lamy syndrome). Am J Med Genet A. 2005;134:144-50.
  • 14. Byers S, Nuttall JD, Crawley AC, Hopwood JJ, Smith K, Fazzalari NL. Effect of enzyme replacement therapy on bone formation in a feline model of mucopolysaccharidosis type VI. Bone. 1997;21:425-31.
  • 15. Crawley AC, Niedzielski KH, Isaac EL, Davey RC, Byers S, Hopwood JJ. Enzyme replacement therapy from birth in a feline model of mucopolysaccharidosis type VI. J Clin Invest. 1997;99:651-62.
  • 16. Auclair D, Hopwood JJ, Brooks DA, Lemontt JF, Crawley AC. Replacement therapy in Mucopolysaccharidosis type VI: advantages of early onset of therapy. Mol Genet Metab. 2003;78:163-74.
  • 17. McGill JJ, Inwood AC, Coman DJ, Lipke ML, Skinner J, Morris B. Enzyme replacement therapy for MPS VI with recombinant human N-acetylgalactosamine 4-sulphatase (rhASB) from 8 weeks of age - a sibling control study. J Inherit Metab Dis. 2006;29 Suppl 1:65.
  • 18. Turecek F, Scott CR, Gelb MH. Tandem mass spectrometry in the detection of inborn errors of metabolism for newborn screening. Methods Mol Biol. 2007;359:143-57.
  • 19. Hein LK, Meikle PJ, Dean CJ, Bockmann MR, Auclair D, Hopwood JJ, et al. Development of an assay for the detection of mucopolysaccharidosis type VI patients using dried blood-spots. Clin Chim Acta. 2005;353:67-74.
  • 20. Meikle PJ, Grasby DJ, Dean CJ, Lang DL, Bockmann M, Whittle AM, et al. Newborn screening for lysosomal storage disorders. Mol Genet Metab. 2006;88:307-14.
  • Correspondência:
    Paul Harmatz
    Children's Hospital & Research Center Oakland
    94563 - Oakland, CA - EUA
    Tel.: +1 (510) 428.3058
    Fax: +1 (510) 450.5813
    Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
    Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jped@jped.com.br