Acessibilidade / Reportar erro

Retirada da fralda e dificuldades na aquisição da continência

CARTAS AO EDITOR

Retirada da fralda e dificuldades na aquisição da continência

Prezado Editor,

Congratulo aos autores e ao Jornal de Pediatria pela publicação do artigo "Treinamento esfincteriano: métodos, expectativas dos pais e morbidades associadas"1, o qual aborda um tema importante que tem ocupado pouco espaço nos periódicos nacionais. Durante a leitura dessa revisão, chama atenção a afirmativa feita no primeiro parágrafo da introdução, em relação ao controle esfincteriano: "Todas as crianças irão adquirir este controle, mas a dificuldade em adquiri-lo é uma grande preocupação para os pais (...)". Ainda que a maioria das crianças vá naturalmente alcançar a continência, existe um grupo que, por razões funcionais ou estruturais, não conquistará esta capacidade, expondo-se ao risco de uma série de conseqüências que vão desde problemas psicológicos e sociais até insuficiência renal2. Cabe ao pediatra não apenas tranqüilizar os pais e orientar sobre a retirada da fralda, mas também reconhecer as crianças que necessitam de investigação diagnóstica e tratamento, possibilitando a intervenção precoce e evitando as complicações inerentes aos distúrbios da micção. A idéia de que todas as crianças acabarão, com a idade, adquirindo o controle esfincteriano pode contribuir para a desvalorização desse tema.

Outro aspecto importante a ser destacado é que, ao descrever os fatores que podem afetar a aquisição do controle esfincteriano, as alterações anatômicas e a disfunção do trato urinário inferior não são citadas. Apesar de a disfunção miccional ser, em muitos casos, conseqüente a tentativas inapropriadas de retirada da fralda, ela pode preceder essa etapa e ser a causa da dificuldade em alcançar êxito. A disfunção nem sempre se origina de um treinamento esfincteriano mal sucedido. Diante de crianças com dificuldade em alcançar a continência, a hipótese de disfunção do trato urinário inferior, de origem neurológica ou não, deve ser sempre considerada2. Infecção urinária de repetição e constipação intestinal, quando presentes antes do início do processo de treinamento esfincteriano, também sinalizam para esta possibilidade. O pediatra deve buscar, através da anamnese e do exame físico, os indícios de anomalias estruturais ou de disfunção do trato urinário inferior para adotar as condutas necessárias2,3. Além de minimizar as repercussões psicológicas e sociais, o diagnóstico precoce da disfunção miccional também previne o dano renal. O diagnóstico de disrafismo oculto e da conseqüente disfunção do trato como causa da incontinência urinária é feito com freqüência na adolescência, apesar dos estigmas neurocutâneos em região lombo sacra presentes desde o nascimento. Da mesma forma, muitas crianças com perda urinária contínua por ureter ectópico têm seu diagnóstico feito em idade escolar, após muito sofrimento desnecessário causado pela incontinência.

A preocupação dos pais deve ser sempre valorizada, e a criança avaliada em busca de sinais indicadores de possíveis alterações responsáveis pela dificuldade na aquisição da continência para corrigi-las ou, na sua ausência, tranqüilizar os pais. A escassez de informação sobre os distúrbios de função do trato urinário entre pediatras tem sido apontada como um dos principais obstáculos para o seu reconhecimento4. Desta forma, consideramos que as discussões sobre dificuldades no treinamento esfincteriano não devem omitir a disfunção do trato urinário inferior e as anomalias estruturais como possíveis causas e também os dados principais para o seu diagnóstico. A divulgação deste tema no Jornal de Pediatria, importante veículo de informação para pediatras, será, com certeza, uma grande contribuição para a disseminação deste conhecimento.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Eliane Maria Garcez O. Fonseca

Doutora, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro, RJ. Professora, Faculdade de Medicina Souza Marques, Rio de Janeiro, RJ. Chefe, Setor de Urodinâmica, Serviço de Pediatria, Hospital dos Servidores do Estado, Rio de Janeiro, RJ

Resposta dos autores

Prezado Editor,

Agradecemos os comentários sobre nosso artigo, cujo recebimento nos alegra por mostrar que tanto o texto como o tema despertam interesse. Um dos principais objetivos do artigo foi exatamente chamar a atenção dos médicos, e em especial dos pediatras, sobre um assunto que representa a primeira "crise" para a maioria das crianças. Apesar de sua importância, mostramos que há interesse limitado por parte dos médicos em relação ao tema. Assim, não acreditamos que uma frase isoladamente possa desvalorizar o tema por indicar que, no fim, as crianças irão adquirir o controle de esfíncteres. Deixamos bem claro no artigo a importância do processo e possíveis conseqüências de um treinamento inadequado1. E visto que o texto se baseia essencialmente no processo de retirada de fraldas de crianças saudáveis, a afirmação de que todas as crianças irão atingir o controle esfincteriano não pode ser considerada errada.

Por outro lado, só podemos concordar com a autora da carta quando diz que cabe ao pediatra orientar os pais no processo de retirada de fraldas e detectar alterações que possam se manifestar durante este período. O controle esfincteriano vem sendo postergado na maioria dos países, coincidindo com o aumento da prevalência de disfunção miccional, que tem etiologia multifatorial. Falhas no processo de treinamento esfincteriano podem contribuir para esse problema, que muito nos preocupa. Na realidade, foi a disfunção miccional2 uma das razões que nos levou a estudar o controle esfincteriano nesta coorte de nascimentos. Juntamente com a divulgação dos métodos de treinamento disponíveis3, enfatizamos a necessidade de pesquisar os hábitos urinários e intestinais durante as consultas pediátricas de rotina4. Relembrando esta etapa do desenvolvimento, chamamos a atenção do pediatra para a necessidade de conhecimento sobre o tema e de seu envolvimento no processo, assim como queremos estimular pesquisadores a trabalhar no tema, especialmente no sentido de avaliar as estratégias hoje existentes e adaptá-las para nossa realidade, ou mesmo propor novos métodos.

Continuamos com o seguimento das crianças da coorte de 2004, em Pelotas (RS), de forma que será possível avaliar a idade de aquisição do controle esfincteriano para todo o grupo e também detectar disfunções miccionais e intestinais, assim como outras patologias do trato urinário. As crianças com história de infecção urinária nos 2 primeiros anos de vida estão sendo avaliadas e investigadas e serão abordadas em outro artigo.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Denise Marques MotaI; Aluísio J. D. BarrosII

IMestre. Nefrologista pediátrica, Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS

IIDoutor. Professor associado, Programa de Pós-graduação em Epidemiologia, UFPel, Pelotas, RS

Referências (Resposta dos autores) / References (authors' reply)

  • 1. Mota DM, Barros AJ. Toilet training: methods, parental expectations and associated dysfunctions. J Pediatr (Rio J). 2008;84:9-17.
  • 2. Bauer SB, Koff SA, Jayanthi VR. Voiding dysfunction in children: neurogenic e non-neurogenic. In: Walsh PC, Retik AB, editors. Campbell's urology. Pennsylvania: Elsevier; 2002. p. 2231-83.
  • 3. Fonseca EM, Costa Monteiro LM. Diagnóstico clínico de disfunção miccional em crianças e adolescentes enuréticos. J Pediatr (Rio J). 2004;80:147-53.
  • 4. Lima MG. O reconhecimento da disfunção miccional pelo pediatra [dissertação ]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Fernandes Figueira/ FIOCRUZ; 2003.
  • 1. Mota DM, Barros AJ. Toilet training: methods, parental expectations and associated dysfunctions. J Pediatr (Rio J). 2008;84:9-17.
  • 2. Bakker E, Wyndaele JJ. Changes in the toilet training of children during the last 60 years: the cause of an increase in lower urinary tract dysfunction? BJU Int. 2000;86:248-52.
  • 3. American Academy of Pediatrics. Toilet training: guidelines for parents. Elk Grove Village, IL: AAP; 1998.
  • 4. Mota DM, Victora CG, Hallal PC. Investigação de disfunção miccional em uma amostra populacional de crianças de 3 a 9 anos. J Pediatr (Rio J). 2005;81:225-32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: jped@jped.com.br