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A qualidade de vida infantil no panorama em mudança da reumatologia pediátrica

Andreas Reiff

MD. Head, Division of Rheumatology, Keck School of Medicine, University of Southern California (USC), Los Angeles, CA, USA. Children’s Hospital Los Angeles, Los Angeles, CA, USA

A última década foi palco de grandes mudanças no tratamento de crianças com doenças reumáticas. A inclusão de agentes biológicos no tratamento da auto-imunidade adulta e pediátrica trouxe uma maior compreensão de que pacientes com tais enfermidades podem experimentar um aumento de qualidade de vida.

Antes da introdução dos agentes biológicos, as possibilidades terapêuticas eram limitadas não só por seu número reduzido e por sua toxidade, mas também por sua baixa eficácia. Por outro lado, as ferramentas disponíveis para avaliar os resultados tinham um foco limitado, eram aplicadas literalmente conforme descritas na literatura para adultos, sem testes prévios, e, principalmente, não conseguiam avaliar o impacto real de uma abordagem terapêutica que, em última análise, permanece como a única relevante: qualidade de vida (QV).

O artigo de Klatchoian et al.1, de São Paulo (SP), ao qual este editorial é dedicado, examina a validade de um questionário de QV em uma população de crianças com lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite idiopática juvenil (AIJ).

Com relação a pacientes com AIJ, foi finalmente reconhecido que a doença pode persistir até a vida adulta, causando incapacidade, dor e disfunção física2,3. No passado, pensava-se que a cura da AIJ ocorria com o crescimento, porém a remissão a longo prazo é infreqüente, com taxas de remissão (definidas como paciente assintomático e sem tratamento por ≥ 2 anos) variando grandemente entre os subtipos da doença4,5. Uma análise retrospectiva recente de 392 pacientes com idade ≥ 8 anos mostrou que as probabilidades de remissão da doença 10 anos após seu início eram de 37, 47, 23 e 6% para pacientes com AIJ sistêmica, oligoarticular, poliarticular com fator reumatóide negativo e poliarticular com fator reumatóide positivo, respectivamente4.

Uma revisão de diversos estudos envolvendo 984 crianças com AIJ com duração média de 20,5 anos concluiu que, à idade média de 30 anos, 47% dos pacientes ainda apresentavam artrite ativa, 46% relatavam dificuldades na vida diária e 22% haviam sido submetidos a cirurgias relacionadas à AIJ2. Um estudo de seguimento de longo prazo envolvendo 246 adultos com AIJ de longa data mostrou que mais de 1/3 dos pacientes sofria de limitações funcionais severas5 e 1/3 dos pacientes sentia dor intensa6. Crianças com AIJ apresentam pior QV relacionada à saúde (QVRS) quando comparadas a controles saudáveis, segundo medições nos domínios de bem-estar físico e psicológico7. A artrite crônica também causa impacto negativo no desenvolvimento emocional, social e escolar4,5,8,9. Tem-se demonstrado que pacientes adultos que tiveram os primeiros sintomas de artrite ainda na infância apresentam altas taxas de ansiedade e depressão5, e uma maior taxa de mortalidade quando comparados à população em geral10.

Resultados similares foram relatados em crianças com LES. Nessa doença, tratamentos mais avançados têm levado a um aumento da expectativa de vida; no entanto, crianças e adolescentes com LES enfrentam um grau considerável de morbidade devido a seqüelas resultantes da atividade da doença, efeitos colaterais causados pelo uso de medicamentos, condições comórbidas e atrasos no desenvolvimento escolar11-15. Lacks & White16 observaram pelo menos algum grau de disfunção dos órgãos a longo prazo - não raro permanente - resultante de LES ou do seu tratamento em 88% dos pacientes amostrados. Tais complicações incluíram hipertensão (41%), retardo do crescimento (38%), insuficiência pulmonar crônica (31%), anormalidades oculares (31%), lesões renais permanentes (25%), sintomas neuropsiquiátricos (22%), lesões musculoesqueléticas (9%) e insuficiência gonadal (3%). Em vista desses dados, a abordagem terapêutica atual para pacientes com LES juvenil tem como objetivo não mais apenas prevenir a morte, mas também promover QV em crianças que estão se adaptando às conseqüências físicas e psicológicas de uma doença crônica severa.

Então, como podemos negligenciar a avaliação da QV sob essas circunstâncias?

Evidências preliminares de estudos realizados principalmente com agentes inibidores de fator de necrose tumoral (TNF), IL-1 e IL-6, em pacientes com artrite, e com tratamentos à base de inibidores de células B, em pacientes com LES, parecem sugerir que a evolução dos pacientes e, conseqüentemente, a QV estão prestes a mudar. Diversos estudos realizados durante os últimos 10 anos não apenas demonstraram eficácia e segurança sem precedentes como também, pela primeira vez, apresentaram ferramentas capazes de avaliar os efeitos globais de um tratamento para artrite e LES, incluindo escores funcionais e de dor.

A ferramenta mais recente contra artrite, conhecida como ACR Pediatric 30 (ACR Pedi 30), foi desenvolvida em 1997 para padronizar definições de resposta clínica e melhora nos estudos envolvendo pacientes com AIJ17. Essas definições de resposta preestabelecidas e validadas agora também permitem comparações entre tratamentos de artrite utilizados em diferentes estudos. A maioria dos estudos publicados depois do desenvolvimento do ACR Pedi 30 tem usado esses critérios para avaliar a eficácia dos tratamentos de AIJ. O escore ACR Pedi 30 equivale a uma melhora de pelo menos 30% em pelo menos três variáveis e a uma piora de no máximo 30% em não mais do que uma variável:

-Avaliação geral do médico sobre a atividade da doença;

-Avaliação dos pais/pacientes sobre o bem-estar geral do paciente;

-Habilidade funcional (índice de incapacidade do Childhood Health Assessment Questionnaire - CHAQ);

-Número de articulações com artrite ativa;

-Número de articulações com amplitude limitada de movimentos;

-Proteína C-reativa ou velocidade de hemossedimentação.

No entanto, uma melhora de apenas 30% não pode mais ser considerada um sinal significativo de progresso, uma vez que muitos estudos clínicos com pacientes recebendo placebo freqüentemente alcançam essa porcentagem. Escores ACR Pedi 50, 70, 90 e 100, pressupondo 50, 70, 90 e 100% de melhora, respectivamente, constituem parâmetros mais significativos para avaliar melhora real e têm se tornado o verdadeiro modelo de tratamento clínico bem-sucedido.

De modo semelhante ao ACR Pedi 30 para artrite, métodos padronizados de avaliação da morbidade foram recentemente utilizados e validados para crianças e adolescentes com LES18,19, como por exemplo o Systemic Lupus International Collaborating Clinics/American College of Rheumatology Damage Index (Índice de Danos SLICC/ACR ou SDI), embora neste caso o foco em QV seja menor.

Nesse cenário de mudanças, onde paradigmas de tratamentos são revisados e onde há um aumento da necessidade de desenvolvimento e utilização de ferramentas de QVRS pediátricas, surge o estudo de Klatchoian et al.1, que busca avaliar de forma abrangente a saúde e o bem-estar dos pacientes. O estudo publica dados iniciais de viabilidade, credibilidade e validade da versão brasileira do questionário genérico Pediatric Quality of Life InventoryTM (PedsQLTM), versão 4.0, administrado por entrevistador, em uma amostra composta principalmente de crianças de baixa renda com doenças reumáticas em São Paulo. Ferramentas multidimensionais de avaliação de QVRS têm sido cada vez mais reconhecidas como uma medida essencial de resultado na medicina pediátrica.

O estudo de Klatchoian et al.1 é baseado no questionário original estadunidense PedsQLTM 4.020, o qual tem sido validado em um número crescente de países, incluindo Austrália21, Alemanha22, Reino Unido23, Noruega24, Finlândia25 e Japão26. Usando uma versão brasileira do questionário PedsQLTM 4.0, os autores compararam 240 crianças e adolescentes saudáveis de São Paulo e 105 crianças com AIJ e LES crônicas. No entanto, diferentemente dos estudos originais de Varni et al.27,28, que eram auto-administrados, os autores optaram por ler o questionário PedsQLTM (administrado por entrevistador) para todos os grupos, assim como para os pais/cuidadores, devido ao baixo nível socioeconômico e ao alto índice de analfabetismo observados na amostra.1

Klatchoian et al.1 confirmaram que a QV em crianças com doenças reumáticas era significativamente mais baixa em todos os aspectos do que no grupo controle (p < 0,0001). Além disso, o relato dos pais/cuidadores mostrou uma alta correlação com o auto-relato dos pacientes no que diz respeito a desenvolvimento físico e escolar; por outro lado, uma correlação menor foi observada para desenvolvimento emocional e social. O estudo revelou que a administração da versão brasileira do PedsQLTM é fácil e não demorada; além disso, o instrumento não apenas se correlaciona com as versões brasileiras do CHAQ e do Childhood Health Questionnaire (CHQ), traduzidas anteriormente (p < 0,005 em todas as correlações)29,30, mas também manteve-se consistente em relação a traduções anteriores do PedsQLTM.

Com a disponibilidade desses novos dados, a doença reumática infantil não pode mais ser considerada uma doença benigna. A intervenção farmacológica agressiva aplicada no início da doença é um componente decisivo para o controle adequado da doença, com vistas a prevenir sua progressão, restaurar funções orgânicas e promover desenvolvimento e crescimento normais. Ao se adotar uma abordagem multifacetada no controle das doenças reumáticas infantis, que inclua estratégias de tratamento farmacológico agressivas e imediatas, terapias ocupacionais e tratamentos fisioterápicos apropriados, além de apoio psicossocial, a ocorrência de incapacidade funcional a longo prazo provavelmente será diminuída ou até anulada, e a QV de crianças com essas enfermidades aumentará.

Ainda que a contagem de articulações e valores laboratoriais sejam parâmetros importantes de avaliação de melhora, ferramentas como o questionário CHAQ e o PedsQLTM, apresentado em versão brasileira no artigo mencionado acima, tornar-se-ão indicadores essenciais na mensuração da real eficácia do tratamento.

O autor é membro do Scientific Advisory Board na Abbott Laboratories, Pfizer, Merck, Novartis, Promotional SpeakersBureau - Amgen Inc.,Wyeth Pharmaceuticals, Abbott.

Como citar este artigo: Reiff A. Childhood quality of life in the changing landscape of pediatric rheumatology. J Pediatr (Rio J). 2008;84(4):285-288.

  • 1. Klatchoian DA, Len CA, Terreri MT, Silva M, Itamoto C, Ciconelli RM, et al. Quality of life of children and adolescents from São Paulo: reliability and validity of the Brazilian version of the Pediatric Quality of Life InventoryTM version 4.0 Generic Core Scales. J Pediatr (Rio J). 2008;84(4):308-315.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008
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