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Composição da flora gastrointestinal e saúde

EDITORIAL

Composição da flora gastrointestinal e saúde

Yvan Vandenplas

PD, PhD, Universitair Ziekenhuis Kinderen Brussel, Vrije Universiteit Brussel, Brussels, Bélgica.

Correspondência Correspondência: Yvan Vandenplas UZ Brussel Laarbeeklaan, 101 1090 Brussels - Bélgica Tel.: +32 (2) 4775780 Fax: +32 (2) 4775783 E-mail: yvan.vandenplas@uzbrussel.be

Neste número, de Mello et al. relatam que o número de colônias de lactobacilos (Lb) e bifidobactérias (Bif) presentes na flora gastrointestinal varia conforme o status socioeconômico1. Os autores sugerem uma relação entre status nutricional e a flora gastrointestinal, já que um baixo número de Lb e Bif se mostrou associado a um baixo índice de massa corporal1. Não está claro se essa associação deve ser considerada como "causal" ou mais como uma "consequência". Crianças vivendo em favelas têm um risco maior de desenvolver enteropatia ambiental. Embora o volume de fezes possa ser um fator de influência (crianças de favelas produzindo volumes significativamente maiores de fezes, resultando em números menores de unidades formadoras de colônia por grama de fezes), o fato de que Lb e Bif estiveram ausentes em aproximadamente 10% das amostras de fezes das crianças de favelas e presentes em todas as crianças de maior nível socioeconômico é um argumento forte contra esse viés hipotético.

A hipótese da higiene sugere que o "estilo de vida ocidental" favorece o desenvolvimento de doenças imunomediadas, como diabetes, doença atópica, enteropatia inflamatória e muitas outras, enquanto que um contato maior com endotoxinas protege contra o desenvolvimento de manifestações atópicas2. Uma redução no número de doenças infecciosas virais frequentes, como hepatite A, foi associado a uma maior incidência de doença atópica3. Um estudo comparou a flora gastrointestinal de crianças da Estônia e da Suécia e demonstrou que números menores de Lb e Bif predispõem à doença atópica4: crianças vivendo na Estônia apresentaram uma incidência menor de doença atópica e contagens maiores de Lb e Bif. Além disso, a atopia apresenta-se reduzida em crianças de famílias com estilo de vida antroposófico5. Em comparação com uma população controle, essas crianças apresentaram uso reduzido de antibióticos (52 versus 90%), índice menor de vacinação contra sarampo, caxumba e rubéola (18 versus 93%) e um consumo maior de alimentos fermentados (63 versus 4,5%)5. Fatores de estilo de vida relacionados a um modo de vida antroposófico influenciam a composição da flora intestinal em crianças, aumentando o número de Lb6.

Uma interpretação superficial das evidências encontradas na literatura parece sugerir que o estilo de vida ocidental predispõe a doenças imunomediadas e que isso se relaciona, pelo menos em parte, a uma incidência menor de Lb na flora gastrointestinal; além disso, parece sugerir que um estilo de vida não ocidental, como ocorre nas favelas, estimulará a predominância de Lb e Bif na flora gastrointestinal. No entanto, o consumo dietético determinará substancialmente a composição da flora gastrointestinal. O consumo de alimentos fermentados e oligossacarídeos prebióticos é (ou era) reduzido nos hábitos dietéticos ocidentais7. Por outro lado, o consumo dietético em condições de vida muito precárias, como é o caso das favelas, também parece reduzir os números de Lb e Bif1. Oligossacarídeos prebióticos estimulam o desenvolvimento de Lb na flora gastrointestinal. Tem-se demonstrado que os Lb aderem à mucosa gastrointestinal, causam um impedimento estérico à adesão de patógenos e estimulam o desenvolvimento imune através de uma maior secreção de IgA e da produção de mucina. Bactérias probióticas e oligossacarídeos prebióticos estimulam o desenvolvimento de placas de Peyer e, assim, estimulam o desenvolvimento de uma melhor resposta imune8,9. Lb aumentam a produção de mucina10,11. Tudo isso resultará em um menor pH das fezes e na produção de ácidos graxos de cadeia curta. Um número menor de Lb resulta em uma maior permeabilidade intestinal.

Entretanto, outras considerações também devem ser levadas em consideração. Apenas uma minoria dos microorganismos presentes no trato gastrointestinal pode ser cultivada. Além disso, os resultados das culturas de fezes não são necessariamente representativos da flora gastrointestinal no sistema digestivo, mais especificamente no intestino delgado, ceco e cólon ascendente.

Contagens baixas de Lb podem ser consequência dos hábitos alimentares ocidentais e também são observadas em crianças vivendo em condições precárias nas favelas brasileiras. Em crianças com um baixo índice de massa corporal, o número de Lb é ainda mais baixo. No entanto, não está claro se o número menor de Lb e Bif favorece a desnutrição ou se é consequência desta. Crianças vivendo em favelas apresentam um maior contato com patógenos, uma vez que elas têm quase nenhuma disponibilidade de abastecimento de água e recolhimento de lixo. Em suma, a sentença "quanto mais lactobacilos melhor" parece ser uma realidade.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Vandenplas Y. Gastrointestinal flora composition and health. J Pediatr (Rio J). 2009;85(4):285-286.

  • 1. de Mello RM, de Morais MB, Tahan S, Melli LC, Rodrigues MS, Mello CS, et al. Lactobacilli and bifidobacteria in the feces of schoolchildren of two different socioeconomic groups: children from a favela and children from a private school. J Pediatr (Rio J). 2009;85:307-14.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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