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Near miss neonatal: uma abordagem potencialmente útil para a avaliação da qualidade do atendimento neonatal

EDITORIAL

Near miss neonatal: uma abordagem potencialmente útil para a avaliação da qualidade do atendimento neonatal

Lale SayI

IMD, MSc. Department of Reproductive Health and Research, World Health Organization, Geneva, Suíça.

Correspondência Correspondência: Lale Say E-mail: sayl@who.int

Reduzir a mortalidade na infância e melhorar a saúde materna são dois dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) estabelecidos pela comunidade internacional para promover o desenvolvimento em todo o mundo. É essencial fortalecer os sistemas de saúde e melhorar a qualidade do atendimento recebido por mulheres e crianças, especialmente durante o parto, para que haja progresso com relação a esses objetivos. São necessárias ferramentas válidas e confiáveis para a avaliação rotineira da qualidade do atendimento e para que sejam oferecidas melhorias de acordo com as necessidades.

A avaliação da morbidade materna grave, definida como “near miss materno”, é recomendada como uma medida da qualidade da atenção à saúde materna, em particular em locais onde os óbitos maternos tornaram-se relativamente raros1. Em tais situações, o foco nos casos de near miss permite a identificação de um número suficiente de casos para se estudar e entender as falhas do sistema de saúde dentro de um período de tempo mais curto se comparado a estudos sobre óbito materno. Além disso, o estudo de casos de near miss para a identificação das falhas do sistema de saúde é mais aceitável para os responsáveis pelo fornecimento de serviços de saúde, já que está associado a um desfecho positivo. A avaliação de casos de near miss também permite entrevistar as mulheres para entender suas percepções a respeito do atendimento recebido, se necessário. Assim, a auditoria de casos de near miss materno está cada vez mais sendo utilizada para monitorar a qualidade do atendimento obstétrico.

Para facilitar a utilização mais ampla da abordagem dos casos de near miss materno e melhorar o atendimento obstétrico, a Organização Mundial da Saúde (OMS) facilitou recentemente o desenvolvimento de uma definição padrão de casos de near miss materno e um conjunto de critérios através dos quais um caso de near miss materno deveria ser identificado1. Essa definição descreve um near miss materno como “uma mulher que quase foi a óbito, mas sobreviveu a uma complicação durante a gravidez, durante o parto, ou dentro de 42 dias após o término da gravidez”. Os critérios representam um conjunto de identificadores clínicos, laboratoriais e de gerenciamento aplicáveis tanto a países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Dessa forma, pode-se fazer comparações entre diferentes cenários e países. Vários indicadores que combinam a mortalidade materna e casos de near miss materno também são sugeridos para possibilitar o cálculo e a interpretação de tais comparações.

O conceito de near miss em pediatria ou neonatologia também tem sido utilizado no contexto de condições graves, tais como casos graves de icterícia, encefalopatia, ou “síndrome de quase morte súbita”, desde os anos 702-5. Seu uso constitui-se em uma ferramenta para aprimorar o atendimento clínico aos recém-nascidos; contudo, não tem sido generalizado e consistente. As mesmas vantagens da utilização da abordagem dos casos de near miss materno em comparação com o estudo de óbitos maternos se aplica à avaliação da qualidade do atendimento e à identificação de fatores remediáveis do sistema de saúde para o aprimoramento do atendimento aos recém-nascidos. Em primeiro lugar, devido ao fato de o número de sobreviventes identificados ser até quatro vezes maior do que o número de óbitos de recém-nascidos, o número de casos dos quais se pode coletar informações é maior em avaliações de casos de near miss neonatal. Em segundo lugar, as lições aprendidas através dos casos de near miss reforçam as lições aprendidas através das avaliações dos óbitos. Finalmente, podem-se calcular razões/índices entre óbitos e casos de near miss6.

Não há, contudo, uma definição padrão ou critérios de identificação com consenso internacional para os casos de near miss. O desenvolvimento de tais critérios facilitaria o uso de casos de near miss neonatal como uma medida da qualidade do atendimento neonatal e como uma ferramenta de aprimoramento da qualidade. Esses critérios deveriam ser simples, possíveis de serem usados em serviços individuais e no nível do sistema de saúde, significativos para os médicos, administradores e profissionais de saúde, estáveis em termos de gravidade e aplicáveis a uma variedade de cenários independentemente do nível de desenvolvimento local1. O consenso sobre tais critérios dependerá da geração de evidências sobre a capacidade do critério candidato de identificar os casos realmente graves, da possibilidade de fácil coleta de dados em termos de atendimento clínico e da aplicabilidade a diferentes cenários.

Pileggi et al., neste número do Jornal de Pediatria, relatam um estudo que explorou o uso do conceito de near miss neonatal como uma ferramenta para avaliar a qualidade do atendimento neonatal de forma similar à abordagem do near miss materno. Analisaram dados de 19 hospitais do Brasil incluídos na Global Survey da OMS sobre saúde materna e perinatal. Utilizando as variáveis disponíveis na pesquisa, os autores construíram e testaram uma definição pragmática e critérios para o conceito de near miss neonatal. Os achados indicam a utilidade potencial dos critérios construídos para a avaliação da qualidade do atendimento neonatal. A conceitualização e a operacionalização de near miss neonatal dentro desse estudo merece atenção no que se refere ao desenvolvimento do conceito de near miss para recém-nascidos como uma ferramenta de qualidade de atendimento. Assim, o estudo faz uma contribuição útil à literatura nessa área7.

Como os outros ODM relacionados à saúde, alcançar o objetivo de reduzir a mortalidade na infância depende muito da existência de sistemas de saúde fortalecidos em que a qualidade do atendimento clínico seja um elemento intrínseco. Os óbitos neonatais são uma porção significativa da taxa total de mortalidade infantil. Os estudos de rotina sobre near miss neonatal e a disponibilidade de ferramentas padrão com esse objetivo, pelo fato de melhorarem a qualidade do atendimento, devem contribuir para a redução dos óbitos de recém-nascidos, assegurando a qualidade do atendimento recebido durante o parto.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor e não representam necessariamente as opiniões da Organização Mundial da Saúde e seus países-membros.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Say L. Neonatal near miss: a useful approach to assess quality of newborn care. J Pediatr (Rio J). 2010;86(1):1-2.

  • 1. Say L, Souza JP, Pattinson RC; WHO working group on Maternal Mortality and Morbidity classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2009;23:287-96.
  • J Pediatr (Rio J). 1985;107:728-32.
  • 3. Bhutani VK. Screening for Severe Neonatal Hyperbilirubinemia. Pediatr Health. 2009;3:369-79.
  • 4. MacFadyen UM, Hendry GM, Simpson H. Gastro-oesophageal reflux in near-miss sudden infant death syndrome or suspected recurrent aspiration. Arch Dis Child. 1983;58:87-91.
  • 5. Keeton BR, Southall E, Rutter N, Anderson RH, Shinebourne EA, Southall DP. Cardiac conduction disorders in six infants with "near-miss" sudden infant deaths. Br Med J. 1977;2:600-1.
  • 6. Avenant T. Neonatal near miss: a measure of the quality of obstetric care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2009;23:369-74.
  • 7. Pileggi C, Souza JP, Cecatti JG, Faúndes A. Neonatal near miss approach in the 2005 WHO Global Survey Brazil. J Pediatr (Rio J). 2010;86:21-6.
  • Correspondência:

    Lale Say
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010
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