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Cognição na epilepsia com início na infância

EDITORIAL

Cognição na epilepsia com início na infância

Shlomo Shinnar

MD, PhD. Departments of Neurology, Pediatrics and Epidemiology and Population Health, Comprehensive Epilepsy Management Center, Montefiore Medical Center, Albert Einstein College of Medicine, New York, EUA

Neste número do Jornal de Pediatria, Sousa-Oliveira et al.1 apresentam um estudo de desfechos cognitivos de crianças com epilepsia. Durante as últimas décadas, tem se tornado cada vez mais evidente que a disfunção cognitiva é uma comorbidade importante da epilepsia com início na infância, sendo importante identificá-la. Esse estudo contribui para a nossa compreensão dessa questão.

Em 1986, Ellenberg et al.2 relataram que o QI aos 7 anos de idade de uma coorte de base populacional de crianças com epilepsia não diferiu significativamente daquele de seus irmãos e que não houve declínio do QI entre 4 e 7 anos. Ainda há controvérsia sobre a existência de deterioração cognitiva na maioria das crianças; porém, tem-se reconhecido cada vez mais que o prognóstico para remissão das convulsões geralmente é favorável, enquanto que o prognóstico para morbidades cognitivas e comportamentais nem tanto. Essas comorbidades da epilepsia são significativas mesmo em crianças com o quadro controlado por medicação. Sillanpaa et al. relataram que em uma coorte de adultos com epilepsia com início na infância, seguidos prospectivamente, houve uma taxa mais alta daqueles que somente completaram o ensino fundamental, não eram casados, não tinham filhos e estavam desempregados em comparação com controles de base populacional3. Esses resultados mostraram-se verdadeiros mesmo no subgrupo de crianças com epilepsia idiopática/criptogênica que se mantinham bem, sem convulsões e sem uso de medicação por muitos anos. O impacto negativo persistiu por muitos anos, já que mesmo aqueles sem convulsões e sem uso de medicação eram menos propensos a dirigir durante a vida adulta, apesar de não haver impedimentos legais para tanto4. Mais recentemente, Berg et al.5 descreveram uma taxa muito mais alta de necessidade de serviços de educação especial em uma coorte de base comunitária formada por crianças com epilepsia. Os indivíduos com epilepsia refratária ao tratamento medicamentoso tinham maior propensão a precisar desses serviços. Contudo, as crianças com epilepsia refratária ao tratamento medicamentoso também são mais propensas a ter uma etiologia sintomática remota3,6, o que torna a comparação mais difícil, já que essas crianças têm lesões cerebrais que podem levar a cognição comprometida independentemente de suas convulsões.

Estudos recentes oferecem mais evidências sobre a existência de déficits cognitivos no início da epilepsia, assim como sobre o impacto das convulsões na cognição. Na coorte de Connecticut, muitas das crianças com epilepsia foram classificadas como sendo cognitivamente anormais antes do início das convulsões5. Fastenau et al.7 relataram que em uma coorte de início recente muitas das crianças já têm déficits neuropsicológicos no momento do diagnóstico. Em um estudo recente envolvendo crianças com epilepsia infantil de ausência recém diagnosticada, Glauser et al. relatam que aproximadamente um terço delas tinha déficits de atenção e de função executiva no momento do diagnóstico antes do tratamento com drogas antiepiléticas e que esses déficits persistiram mesmo após o tratamento medicamentoso bem-sucedido8. Da mesma forma, Wirrell et al.9 relatam uma alta taxa de problemas cognitivos e comportamentais em adolescentes com convulsões de ausência. A taxa foi mais alta naqueles com convulsões não controladas com medicamento, mas foi substancial mesmo nos adolescentes cujas convulsões eram controladas9. Finalmente, Hermann et al.10 relataram alterações nas substâncias branca e cinzenta do cérebro em crianças com epilepsia com o passar do tempo, o que causa ainda mais preocupações.

O estudo de Sousa-Oliveira et al.1 é pouco usual pelo fato de apresentar números substanciais de crianças em todos os três grupos (controlado com medicação, não controlado com medicação e controlado com cirurgia). Isso torna os resultados muito interessantes, já que a maioria dos estudos não inclui todos os três grupos. Contudo, é um pouco difícil comparar os resultados entre os grupos, pois o grupo refratário ao tratamento medicamentoso tem, como esperado, uma proporção maior de etiologias sintomáticas remotas do que o grupo controlado com medicação, as quais devem resultar em cognição comprometida. Também é difícil comparar os indivíduos com convulsões não controladas com aqueles que apresentam convulsões controladas com cirurgia, já que as crianças com epilepsia remediável cirurgicamente estão propensas a ter uma lesão discreta mais focal do que aquelas que não são candidatas ao tratamento cirúrgico. Essas dificuldades são originadas pelas diferenças na distribuição de patologias cerebrais de base nos diferentes grupos e não por uma falha do estudo. Apesar dessas questões metodológicas, há dois achados impressionantes nesse estudo. O primeiro é que não houve diferença significativa entre o grupo controlado com medicação e o grupo controlado com cirurgia com relação aos valores médios de QI; ainda que estejam dentro da faixa normal, os valores médios de QI são substancialmente mais baixos do que seria de se esperar em um grupo controle normal. Esse achado está de acordo com outros estudos para o grupo controlado com medicação7-9 e reflete a maior necessidade de uma triagem educacional cuidadosa e de intervenção mesmo naquelas crianças cujas convulsões estão completamente controladas. O segundo é que, como um grupo, as crianças com desfechos cirúrgicos bem-sucedidos ficaram tão bem quanto o grupo controlado com medicação. Isso enfatiza a importância de intervenção precoce em casos refratários ao tratamento medicamentoso e que apresentam lesão remediável cirurgicamente. O tratamento cirúrgico da epilepsia pediátrica tem sido utilizado em estágios muito mais precoces do que costumava ocorrer11 em uma tentativa de evitar a exacerbação das comorbidades em crianças com epilepsia refratária ao tratamento medicamentoso e permitir que elas funcionem bem na escola durante seus anos de formação, quando o desfecho é mais passível de modificação. Desfechos favoráveis têm sido relatados com intervenção precoce12. Os resultados do presente estudo1 enfatizam ainda mais a importância do controle bem-sucedido das convulsões, tanto com medicação ou cirurgia, enquanto destaca a necessidade de atenção cuidadosa às comorbidades cognitivas em todas as crianças com epilepsia.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Shinnar S. Cognition in childhood-onset epilepsy. J Pediatr (Rio J). 2010;86(6):349-350.

  • 1. Souza-Oliveira C, Escosi-Rosset S, Funayama SS, Terra VC, Machado HR, Sakamoto AC. Intellectual functioning in pediatric patients with epilepsy: a comparison of medically controlled, medically uncontrolled and surgically controlled children. J Pediatr (Rio J). 2010;86:377-83.
  • 2. Ellenberg JH, Hirtz DG, Nelson KB. Do seizures in children cause intellectual deterioration? N Engl J Med. 1986;314:1085-8.
  • 3. Sillanpaa M, Jalava M, Kaleva O, Shinnar S. Long-term prognosis of seizures with onset in childhood. N Engl J Med. 1998;338:1715-22.
  • 4. Sillanpaa M, Shinnar S. Obtaining a driver's license and seizure relapse in patients with childhood-onset epilepsy. Neurology. 2005:64:680-6.
  • 5. Berg AT, Smith SN, Frobish D, Levy SR, Testa FM, Beckerman B, et al. Special education needs of children with newly diagnosed epilepsy. Dev Med Child Neurol. 2005;47:749-53.
  • 6. Berg AT, Shinnar S, Levy SR, Testa FM, Smith-Rapaport S, Beckerman B. Early development of intractable epilepsy in children: a prospective study. Neurology. 2001;56:1445-52.
  • 7. Fastenau PS, Johnson CS, Perkins SM, Byars AW, deGrauw TJ, Austin JK, et al. Neuropsychological status at seizure onset in children: risk factors for early cognitive deficits. Neurology. 2009;73:526-34.
  • 8. Glauser TA, Cnaan A, Shinnar S, Hirtz DG, Dlugos D, Masur D, et al. Ethosuximide, valproic acid and lamotrigine in childhood absence epilepsy. N Engl J Med. 2010;362:790-9.
  • 9. Wirrell EC, Camfield CS, Camfield PR, Dooley JM, Gordon KE, Smith B. Long-term psychosocial outcome in typical absence epilepsy. Sometimes a wolf in sheeps' clothing. Arch Pediatr Adolesc Med. 1997;151:152-8.
  • 10. Hermann BP, Dabbs K, Becker T, Jones JE, Myers Y Guttierez A, Wendt G, et al. Brain development in children with new onset epilepsy: A prospective controlled cohort investigation. Epilepsia 2010;
  • 11. Harvey AS, Cross JH, Shinnar S, Mathern BW; ILAE Pediatric Epilepsy Surgery Survey Taskforce. Defining the spectrum of international practice in pediatric epilepsy surgery patients. Epilepsia. 2008;49:146-55.
  • 12. Freitag H, Tuxhorn I. Cognitive function in preschool children after epilepsy surgery: rationale for early intervention. Epilepsia. 2005;46:561-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Out 2010
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