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Atresia biliar no Brasil: onde estamos e para onde vamos

EDITORIAL

Atresia biliar no Brasil: onde estamos e para onde vamos

Jorge A. Bezerra

MD. The Pediatric Liver Care Center, Division of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, Cincinnati Children's Hospital Medical Center, Department of Pediatrics, College of Medicine, University of Cincinnati, Cincinnati, OH, EUA

Correspondência Correspondência: Jorge A. Bezerra Division of Pediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition Cincinnati Children's Hospital Medical Center 3333 Burnet Ave 45229-3031 - Cincinnati, OH – EUA Tel.: +1 (513) 636.3008 Fax: +1 (513) 636.5581 E-mail: jorge.bezerra@cchmc.org

Cuidar da saúde de crianças enche o dia do pediatra de alegrias: orientações nutricionais saudáveis para estimular o crescimento, imunização para prevenir doenças infecciosas, uso adequado de antibióticos para tratar uma doença aguda. No entanto, encontrar um lactente com icterícia e fezes esbranquiçadas quebra a tranquilidade do dia e faz surgir o medo do perigo: será que o paciente tem atresia biliar? Frequentemente, esses sinais clínicos se desenvolvem em lactentes sem outros sintomas e num momento em que os pais estão desfrutando da chegada do novo membro da família. No entanto, esses sinais podem indicar a presença de uma doença que tem consequências devastadoras para o paciente não submetido a tratamento. E, mesmo quando a doença é tratada, o diagnóstico de atresia biliar traz desafios importantes para a criança, para a família e para o pediatra.

Causa mais comum de icterícia patológica em lactentes, a atresia biliar é uma colangiopatia inflamatória que destrói o epitélio das vias biliares, interrompe o fluxo biliar e promove uma obstrução fibrótica dos ductos biliares extra-hepáticos. A etiologia da atresia biliar ainda não foi definida, mas os mecanismos patogênicos da doença estão intimamente ligados a uma forte resposta do sistema imunológico tendo como alvo as vias biliares1,2. Entre os elementos constituintes desse sistema, as células CD8+ e os linfócitos natural killer (NK) têm sido identificados como reguladores-chave do fenótipo da atresia biliar em um modelo experimental da doença em camundongos3,4

As características clínicas e laboratoriais da doença são icterícia secundária a hiperbilirrubinemia direta (conjugada), fezes esbranquiçadas, hepatoesplenomegalia variável, gama-glutamil transpeptidase elevada e histopatologia hepática sugestiva de obstrução biliar. O diagnóstico final é obtido no momento da colangiografia exploratória, que mostra a obstrução do ducto biliar extra-hepático. A única esperança para se restaurar o fluxo biliar é a ressecção dos ductos biliares remanescentes e a criação de um segmento intestinal anastomosado ao hilo hepático, de forma similar a um bypass em Y-de-Roux, como originalmente proposto por Kasai & Suzuki5. O curso clínico e a resposta ao tratamento obedecem aos princípios básicos das doenças: o diagnóstico precoce é associado com resposta e desfecho melhores. A reprodutibilidade desse paradigma em diferentes populações sugere que a base biológica do fenótipo clínico e a resposta ao tratamento são menos influenciadas por fronteiras geográficas. Se essa afirmação está correta, será válido estudar a atresia biliar em países específicos? O artigo de Carvalho et al.6 publicado neste número do Jornal de Pediatria mostra que a resposta é positiva. O artigo relata o estado atual do diagnóstico e tratamento de lactentes com atresia biliar no Brasil e identifica objetivos para o futuro ajustados à prática clínica nacional.

Carvalho et al. revisaram a apresentação clínica, o tratamento e o desfecho de 513 crianças com atresia biliar. Os dados foram obtidos em grandes centros clínicos localizados em diferentes regiões geográficas do Brasil. Em geral, a apresentação clínica com hiperbilirrubinemia direta, gama-glutamil transpeptidase elevada e histopatologia com proliferação ductal e plugs biliares foi típica na coorte. A idade média no momento do diagnóstico e da portoenterostomia foi de 82,6±32,8 dias, e a cirurgia foi realizada em 76,4% dos lactentes. Nos pacientes tratados com portoenterostomia, a sobrevida de 4 anos com fígado nativo foi de 36,8%, chegando a 54% quando a portoenterostomia foi realizada até os 60 dias de vida. A combinação de portoenterostomia com transplante hepático aumentou a sobrevida geral para 73,4%. No entanto, apenas 46,6% de todos os pacientes foram submetidos a transplante – uma taxa baixa comparada com a de outros países, onde o acesso ao transplante aumenta para > 60% das crianças7,8.

Como esses achados ajudam a entender o continuum do cuidado (diagnóstico, opções de tratamento, desfecho) de lactentes com atresia biliar no Brasil? Em primeiro lugar, é verdade que a idade média à portoenterostomia de 82,6±32,8 dias excede a prática observada em outras nações, que fica em torno de 60 dias7-9,11. No entanto, uma análise dos dados disponíveis para a última década (2000 a 2010) no Brasil mostra uma mudança com tendência ao estabelecimento mais precoce do diagnóstico, com uma maior porcentagem de crianças diagnosticadas entre 61 e 90 dias de vida (48,5 versus 35% nos anos 1980) e uma menor porcentagem de crianças diagnosticadas após os 120 dias de vida (4,8 versus 20% nos anos 1980). De acordo com esse conceito, embora a sobrevida de 4 anos com fígado nativo relatada em lactentes tratados por portoenterostomia tenha sido de 36,8%, a sobrevida melhorou para 54% nos lactentes com < 60 dias de vida no momento da cirurgia. Assim, há uma tendência real ao diagnóstico mais precoce na década atual, que já se traduz em um número maior de crianças sobrevivendo mais do que 4 anos com fígado nativo.

O estudo também identifica duas áreas para melhoria futura. Em primeiro lugar, foi identificado um período de quase 2 semanas separando a idade de início dos sintomas (12,3±17 dias) e a idade à portoenterostomia (82,6±32,8 dias). Embora as razões para esse atraso no diagnóstico e na intervenção cirúrgica não tenham ficado claras, elas possivelmente estiveram relacionadas com aspectos como conhecimento sobre a doença na comunidade, reconhecimento da doença por profissionais de saúde de atenção básica e acesso a atendimento especializado. Hepatologistas pediátricos firmaram uma parceria com a Sociedade Brasileira de Pediatria e com o Ministério da Saúde para aumentar a conscientização da comunidade através da incorporação de um cartão colorido com graduação de cores das fezes na Caderneta de Saúde da Criança entregue pelo Ministério aos pais de cada recém-nascido. O objetivo é ajudar a conscientizar os pais de que a acolia fecal (fezes esbranquiçadas, cor de argila) é anormal e incentivá-los a procurar auxílio médico assim que a cor anormal for identificada – espera-se que nos estágios iniciais da doença. Esses são os lactentes que presumivelmente se beneficiarão mais das modalidades atuais de tratamento.

A segunda área que requer melhorias está relacionada ao uso de transplante hepático para aumentar a sobrevida quando a criança desenvolve doença hepática avançada. Nos centros que participaram do estudo, a sobrevida de crianças tratadas com portoenterostomia e, mais tarde, com transplante hepático aumentou nos anos 2000 para 77,6%. Apesar desse sucesso, apenas 46,6% dos pacientes foram submetidos a transplante hepático. A resposta simples para esse problema é aumentar o acesso de crianças com doença hepática progressiva a centros de transplante hepático. Embora seja simples, essa solução é altamente dependente de uma expansão no número de centros de transplante acreditados, de um suporte aos custos relacionados a transplante e de um seguimento adequado. Para se tornar uma realidade, esses fatores devem passar a ser prioridades na área da pediatria e na sociedade como um todo.

Os dados divulgados por Carvalho et al. retratam o estado atual do diagnóstico, tratamento e desfecho de pacientes com atresia biliar – ou "onde estamos" hoje (Figura 1). Eles também identificam áreas com possibilidade de melhoria – ou "para onde vamos". É importante que hepatologistas pediátricos ampliem sua rede investigativa no sentido de incluir uma maior representação da diversidade geográfica e cultural existente no Brasil, uma vez que ela provavelmente influencia a história natural da doença e a qualidade do tratamento. Também é importante que eles continuem a coletar dados clínicos de forma prospectiva, a armazenar tecidos para estudar a patogênese da doença e a desenvolver ensaios clínicos. Para ser bem-sucedido, esse esforço deve ser associado a um investimento feito pela sociedade, talvez através de fundos de agências de pesquisa federais, a fim de criar uma infraestrutura sólida de pesquisa. Só assim poderemos diagnosticar precocemente e descobrir novos tratamentos para interromper a progressão da doença e salvar crianças mantendo seus fígados nativos.


Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Apoio financeiro: este trabalho foi financiado pelo National Institutes of Health (NIH), bolsa DK83781.

Como citar este artigo: Bezerra JA. Biliary atresia in Brazil: where we are and where we are going. J Pediatr (Rio J). 2010;86(6):445-447.

  • 1. Santos JL, Carvalho E, Bezerra JA. Advances in biliary atresia: from patient care to research. Braz J Med Biol Res. 2010;43:522-7.
  • 2. Sokol RJ, Shepherd RW, Superina R, Bezerra JA, Robuck P, Hoofnagle JH. Screening and outcomes in biliary atresia: summary of a National Institutes of Health workshop. Hepatology. 2007;46:566-81.
  • 3. Shivakumar P, Sabla G, Mohanty S, McNeal M, Ward R, Stringer K, et al. Effector role of neonatal hepatic CD8+ lymphocytes in epithelial injury and autoimmunity in experimental biliary atresia. Gastroenterology. 2007;133:268-77.
  • 4. Shivakumar P, Sabla GE, Whitington P, Chougnet CA, Bezerra JA. Neonatal NK cells target the mouse duct epithelium via Nkg2d and drive tissue-specific injury in experimental biliary atresia. J Clin Invest. 2009;119:2281-90.
  • 5. Kasai M, Suzuki S. A new operation for "non-correctable" biliary atresia, hepatic portoenterostomy [in japanese]. Shujutsu. 1959;13:733-9.
  • 6. Carvalho E, dos Santos JL, da Silveira TR, Kieling CO, Silva LR, Porta G, et al. Biliary atresia: the Brazilian experience. J Pediatr (Rio J). 2010;86:473-9.
  • 7. Schreiber RA, Barker CC, Roberts EA, Martin SR, Alvarez F, Smith L, et al. Biliary atresia: the Canadian experience. J Pediatr. 2007;151:659-65, 665 e1.
  • 8. Wildhaber BE, Majno P, Mayr J, Zachariou Z, Hohlfeld J, Schwoebel M, et al. Biliary atresia: Swiss national study, 1994-2004. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2008;46:299-307.
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  • 10. Serinet MO, Broue P, Jacquemin E, Lachaux A, Sarles J, Gottrand F, et al. Management of patients with biliary atresia in France: results of a decentralized policy 1986-2002. Hepatology. 2006;44:75-84.
  • 11. Shneider BL, Brown MB, Haber B, Whitington PF, Schwarz K, Squires R, et al. A multicenter study of the outcome of biliary atresia in the United States, 1997 to 2000. J Pediatr. 2006;148:467-74.
  • Correspondência:

    Jorge A. Bezerra
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    Cincinnati Children's Hospital Medical Center
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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