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Codetecção viral em lactentes hospitalizados com doença respiratória: detectar é importante?

EDITORIAL

Codetecção viral em lactentes hospitalizados com doença respiratória: detectar é importante?

Peter D. SlyI; Carmen M. JonesII

IMD, FRACP, DSc. Queensland Children's Medical Research Institute, University of Queensland, Brisbane, Austrália

IIBBiomedSc. Queensland Children's Medical Research Institute, University of Queensland, Brisbane, Austrália

Até relativamente pouco tempo, nossa visão sobre doenças respiratórias virais agudas na primeira infância era, até certo ponto, limitada. Nosso "entendimento" era o seguinte: as crianças eram expostas a vírus respiratórios através de contato com outras crianças; todas as crianças seriam expostas a vírus respiratórios comuns durante o primeiro ou segundo ano de vida, sendo que muitas dessas infecções permaneceriam subclínicas e a minoria se agravaria a ponto de exigir cuidados médicos ou hospitalização; o rinovírus humano (RVH) não causava infecções do aparelho respiratório inferior em crianças; e crianças saudáveis não "portavam" vírus nas suas vias aéreas superiores. Também "sabíamos" que os pulmões eram geralmente estéreis e, diferentemente das vias aéreas superiores, do trato gastrointestinal e da pele, não tinham microbiota residente. A partir de dados coletados de estudos de coorte de nascimentos de base comunitária e com o avanço das técnicas de diagnóstico, entendemos, agora, que muitos dos nossos conceitos anteriores eram falhos.

Estudos sistemáticos de infecções respiratórias em estudos de coorte de nascimentos de base comunitária, como o Estudo da Asma na Infância (Childhood Asthma Study) realizado em Perth, Austrália1 e o estudo das Origens Infantis da Asma (Childhood Origins of Asthma) realizado em Wisconsin, EUA2, mudaram alguns desses conceitos. Esses dois estudos coletaram amostras nasais de crianças durante infecções respiratórias agudas e amostras-controle quando as crianças estavam bem. Esses estudos confirmaram que o RVH era responsável por um grande número de infecções agudas do aparelho respiratório inferior nos primeiros anos de vida, incluindo aquelas associadas à respiração asmática, e que o RVH podia ser identificado nas amostras nasais de aproximadamente 20% das crianças enquanto elas estavam completamente livres de sintomas de infecção respiratória1. Além disso, estabeleceu-se definitivamente que o RVH infecta o epitélio brônquico3 e pode permanecer nas vias aéreas das crianças após a resolução dos sintomas clínicos agudos4. Também há prova definitiva de que as vias aéreas inferiores de indivíduos saudáveis não são estéreis e têm populações bacterianas e virais residentes5,6, e que essa microbiota residente pode estar alterada na doença5,6.

Outro conceito comum era o de que os indivíduos raramente eram infectados com mais de um vírus simultaneamente. Neste número do Jornal de Pediatria, De Paulis et al.7 relatam coinfecções virais em lactentes hospitalizados com infecções agudas do aparelho respiratório inferior. Esses autores conduziram uma análise retrospectiva de 395 lactentes hospitalizados dos quais foi coletado aspirado de secreção de nasofaringe. Foram excluídas crianças que haviam sido hospitalizadas previamente (n = 44), com comorbidade (n = 15), ou se houvesse alguma informação médica ou virológica faltando (n = 32). Foram identificadas infecções virais em 72% das crianças incluídas no estudo, e 80% dessas (176/219) estavam infectadas com o vírus sincicial respiratório (VSR). Quase 1/3 daquelas infectadas com o VSR (31.3%) estavam coinfectadas com outros vírus; 24 com o adenovírus, 16 com o metapneumovírus humano e 15 com vírus respiratórios menos comuns. Seis crianças estavam infectadas com dois vírus, mas não apresentavam infecção pelo VSR. Infelizmente, os autores não puderam investigar a infecção pelo RVH no seu estudo; portanto, a taxa de coinfecção pode ter sido subestimada. Os autores7 não encontraram um aumento na gravidade clínica nos lactentes infectados com VSR que estavam coinfectados com outro vírus respiratório.

Não há consenso na literatura sobre se a codetecção viral em crianças hospitalizadas com doenças do aparelho respiratório inferior está associada a uma gravidade maior da doença ou não (Tabela 1). O termo codetecção é mais preciso do que coinfecção, principalmente quando técnicas de diagnóstico molecular são utilizadas, pois a detecção da presença viral não necessariamente significa que esse organismo é patogênico naquela criança especificamente. As taxas de codetecção viral relatadas em crianças pequenas variam de 14 a 44%, embora nem todos os estudos incluam o RVH nos seus controles virais (Tabela 1). Na maioria dos estudos que testaram o RVH, esse é o segundo ou terceiro vírus mais frequente. Assim, as estimativas de codetecção viral nos estudos que não incluíram o RVH podem subestimar a taxa real. Dez estudos recentes utilizaram técnicas moleculares, isoladas ou em combinação com diagnósticos convencionais, para determinar a etiologia viral de doenças respiratórias agudas em crianças com menos de três anos de idade (Tabela 1). Desses estudos, quatro8-10,12 relataram aumento na gravidade clínica em crianças com mais de um vírus detectado. Um dos estudos11 relatou que a infecção somente com o VSR era mais grave do que quando um segundo vírus era detectado; quatro estudos7,13,14,16 relataram que a codetecção não estava associada a um aumento na gravidade clínica; e um estudo15 não comentou sobre a gravidade clínica. Esses estudos da Europa, do Brasil e dos EUA não permitem determinar a razão pela qual essa inconsistência é percebida no resultado. Embora a codetecção seja relatada mais frequentemente em crianças pequenas em alguns estudos15, e as doenças respiratórias, principalmente a bronquiolite aguda, sejam frequentemente mais graves em crianças pequenas, a idade por si só não explica os relatos conflitantes na literatura.

Uma vez que o impacto da codetecção viral sobre a gravidade clínica de doenças respiratórias agudas que necessitam de hospitalização não é claro, detectar a presença de mais um vírus é importante? Certamente, e a compreensão de que o RVH é responsável por um grande número de doenças com respiração asmática em crianças pequenas na comunidade1,2,17,18 mudou o pensamento sobre o papel das infecções respiratórias virais no início da asma. Aqueles que apresentam chiado com a infecção pelo RVH nos primeiros anos de vida parecem ter um risco maior de desenvolver asma posteriormente17,18. Esse conhecimento também ressalta o papel de interações sinergéticas entre infecções respiratórias virais e sensibilização alérgica nos primeiros anos de vida no aumento do risco de asma18. Não sabemos as consequências a longo prazo de detectar mais de um vírus durante doenças respiratórias agudas, tanto nas infecções comunitárias quanto naquelas que requerem hospitalização. Portanto, essas observações epidemiológicas justificam os esforços desenvolvidos para detectar múltiplos vírus em crianças que necessitam de hospitalização? Provavelmente não.

As principais razões para diagnósticos em crianças que necessitam de hospitalização por doenças respiratórias agudas são: estabelecer o diagnóstico correto para que se possa oferecer o tratamento adequado e limitar a infecção nosocomial com medidas apropriadas para o controle da infecção. Em muitos lugares do mundo, crianças internadas com o quadro típico de bronquiolite viral aguda e que tenham VSR detectado em um aspirado de secreção de nasofaringe não serão tratadas com antibióticos. A probabilidade de um antibiótico ser prescrito aumenta se o vírus respiratório for isolado, principalmente se a criança parecer doente. Em regiões onde essa prática é comum, é importante que o diagnóstico viral inclua métodos para detectar o RVH. Em lugares onde a má nutrição e a pobreza são comuns ou onde o risco de uma coinfecção bacteriana é maior, antibióticos tendem a ser usados mais deliberadamente com base na gravidade clínica, independentemente dos resultados dos diagnósticos virais. Agentes antivirais específicos são raramente indicados para tratar doenças respiratórias agudas, principalmente bronquiolite viral aguda ou pneumonia adquirida na comunidade; assim, o conhecimento do vírus infectante específico não é tão importante para determinar o tratamento. Quando a imunofluorescência é usada para a detecção inicial de VSR, técnicas moleculares podem trazer pouca vantagem no diagnóstico de outros vírus quando um resultado positivo já tiver sido obtido.

O conhecimento do vírus infectante é importante para instituir procedimentos adequados de controle de infecção para limitar infecção cruzada. Alojar uma criança com VSR com outra com VSR e RVH, ou com VSR e metapneumovírus humano, pode não ser uma boa ideia. Num mundo ideal, cada criança hospitalizada com doença respiratória aguda ficaria em um quarto separado. Porém, isso não é a realidade de muitos hospitais infantis.

Em resumo, o conhecimento da coinfecção viral em crianças pequenas que necessitam de hospitalização por doenças respiratórias agudas é certamente de interesse acadêmico e pode auxiliar na instituição de medidas adequadas para o controle de infecção para prevenir a infecção nosocomial. Contudo, não há uma vantagem clara em detectar coinfecção viral para poder determinar o tratamento adequado para cada criança.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Sly PD, Jones CM. Viral co-detection in infants hospitalized with respiratory disease: is it important to detect? J Pediatr (Rio J). 2011;87(4):277-280.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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