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Deficiência de ferro em lactentes brasileiros com doença falciforme

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a deficiência ou sobrecarga de ferro em lactentes com doença falciforme, a fim de embasar a decisão de recomendar (ou não) a suplementação profilática de ferro nessa população. MÉTODOS: Estudo retrospectivo transversal envolvendo 135 lactentes menores de 2 anos (66 meninos e 69 meninas), com genótipos SS e SC (77/58), nascidos entre 2005 e 2006 em Minas Gerais. Os indicadores de uma possível deficiência de ferro foram: volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM), saturação da transferrina (ST) e ferritina. Dezessete lactentes [12,6%, intervalo de confiança de 95% (IC95%) 7,0-18,2%] haviam recebido hemotransfusão antes da coleta dos exames. RESULTADOS: ST e ferritina estavam significativamente mais baixas nos lactentes com hemoglobina SC (p < 0,001). Quando dois indicadores foram utilizados para definir a deficiência de ferro (VCM ou HCM baixos mais ST ou ferritina baixas), 17,8% das crianças (IC95% 11,3-24,3%) tinham deficiência de ferro, predominando naquelas com perfil SC (p = 0,003). Análise das crianças que não haviam sido transfundidas (n = 118) mostrou prevalência de ferropenia em 19,5%. Constatou-se aumento de ferritina em 15 lactentes (11,3%; IC95% 5,9-16,7%); a maioria havia sido transfundida. CONCLUSÕES: A maior parte dos lactentes com doença falciforme não desenvolve deficiência de ferro, mas alguns têm déficit significativo. Este estudo indica que lactentes com doença falciforme, principalmente aqueles com hemoglobinopatia SC, talvez possam receber ferro profilático; no entanto, a suplementação deve ser suspensa após a primeira hemotransfusão.

Doença falciforme; deficiência de ferro; ferritina; transtornos de alimentação na infância; triagem neonatal


OBJECTIVE: To assess iron deficiency or overload in infants with sickle cell disease in order to support the decision to recommend (or not) iron prophylactic supplementation in this population. METHODS: Cross-sectional and retrospective study with 135 infants below 2 years old (66 boys and 69 girls), 77 with SS and 58 with SC hemoglobin, born between 2005 and 2006 in Minas Gerais, Brazil. Indicators of possible iron deficiency were: mean corpuscular volume (MCV), mean corpuscular hemoglobin (MCH), transferrin saturation (TS), and ferritin. Blood transfusions had been given to 17 infants (12.6%, 95% confidence interval [95%CI] 7.0-18.2%) before laboratory tests were done. RESULTS: Ferritin and TS were significantly lower in SC infants (p < 0.001). When two indices were considered for the definition of iron deficiency (low MCV or MCH plus low ferritin or TS), 17.8% of children (95%CI 11.3-24.3%) presented iron deficiency, mainly those with SC hemoglobin (p = 0.003). An analysis of infants who were not given transfusions (n = 118) showed that 19.5% presented iron deficiency. Fifteen infants (11.3%, 95%CI 5.9-16.7%) presented increased ferritin; the majority had been transfused. CONCLUSIONS: Most infants with sickle cell disease do not develop iron deficiency, though some have a significant deficit. This study indicates that infants with sickle cell disease, mainly those with SC hemoglobin, may receive prophylactic iron; however, supplementation should be withdrawn after the first blood transfusion.

Sickle cell disease; iron deficiency; ferritin; feeding and eating disorders of childhood; newborn screening


ARTIGO ORIGINAL

Deficiência de ferro em lactentes brasileiros com doença falciforme

Priscila C. RodriguesI; Rocksane C. NortonII; Mitiko MuraoI; José N. JanuarioIII; Marcos B. VianaIV

IMestre, Saúde da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG. Médica, Fundação Hemominas, Belo Horizonte, MG.

IIDoutora, Saúde da Criança e do Adolescente, UFMG, Belo Horizonte, MG. Professora associada, Departamento de Pediatria, UFMG, Belo Horizonte, MG.

IIIMestre, Saúde da Criança e do Adolescente, UFMG, Belo Horizonte, MG. Professor assistente, Departamento de Clínica Médica, UFMG, Belo Horizonte, MG. Coordenador geral, Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad-UFMG), Belo Horizonte, MG.

IVDoutor, Pediatria, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor titular, Departamento de Pediatria, UFMG, Belo Horizonte, MG.

Correspondência Correspondência: Marcos Borato Viana Departamento de Pediatria da UFMG Av. Alfredo Balena, 130 - Sala 267 CEP 30130-100 - Belo Horizonte, MG Tel./Fax: (31) 3409.9770 E-mail: vianamb@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a deficiência ou sobrecarga de ferro em lactentes com doença falciforme, a fim de embasar a decisão de recomendar (ou não) a suplementação profilática de ferro nessa população.

MÉTODOS: Estudo retrospectivo transversal envolvendo 135 lactentes menores de 2 anos (66 meninos e 69 meninas), com genótipos SS e SC (77/58), nascidos entre 2005 e 2006 em Minas Gerais. Os indicadores de uma possível deficiência de ferro foram: volume corpuscular médio (VCM), hemoglobina corpuscular média (HCM), saturação da transferrina (ST) e ferritina. Dezessete lactentes [12,6%, intervalo de confiança de 95% (IC95%) 7,0-18,2%] haviam recebido hemotransfusão antes da coleta dos exames.

RESULTADOS: ST e ferritina estavam significativamente mais baixas nos lactentes com hemoglobina SC (p < 0,001). Quando dois indicadores foram utilizados para definir a deficiência de ferro (VCM ou HCM baixos mais ST ou ferritina baixas), 17,8% das crianças (IC95% 11,3-24,3%) tinham deficiência de ferro, predominando naquelas com perfil SC (p = 0,003). Análise das crianças que não haviam sido transfundidas (n = 118) mostrou prevalência de ferropenia em 19,5%. Constatou-se aumento de ferritina em 15 lactentes (11,3%; IC95% 5,9-16,7%); a maioria havia sido transfundida.

CONCLUSÕES: A maior parte dos lactentes com doença falciforme não desenvolve deficiência de ferro, mas alguns têm déficit significativo. Este estudo indica que lactentes com doença falciforme, principalmente aqueles com hemoglobinopatia SC, talvez possam receber ferro profilático; no entanto, a suplementação deve ser suspensa após a primeira hemotransfusão.

Palavras-chave: Doença falciforme, deficiência de ferro, ferritina, transtornos de alimentação na infância, triagem neonatal.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To assess iron deficiency or overload in infants with sickle cell disease in order to support the decision to recommend (or not) iron prophylactic supplementation in this population.

METHODS: Cross-sectional and retrospective study with 135 infants below 2 years old (66 boys and 69 girls), 77 with SS and 58 with SC hemoglobin, born between 2005 and 2006 in Minas Gerais, Brazil. Indicators of possible iron deficiency were: mean corpuscular volume (MCV), mean corpuscular hemoglobin (MCH), transferrin saturation (TS), and ferritin. Blood transfusions had been given to 17 infants (12.6%, 95% confidence interval [95%CI] 7.0-18.2%) before laboratory tests were done.

RESULTS: Ferritin and TS were significantly lower in SC infants (p < 0.001). When two indices were considered for the definition of iron deficiency (low MCV or MCH plus low ferritin or TS), 17.8% of children (95%CI 11.3-24.3%) presented iron deficiency, mainly those with SC hemoglobin (p = 0.003). An analysis of infants who were not given transfusions (n = 118) showed that 19.5% presented iron deficiency. Fifteen infants (11.3%, 95%CI 5.9-16.7%) presented increased ferritin; the majority had been transfused.

CONCLUSIONS: Most infants with sickle cell disease do not develop iron deficiency, though some have a significant deficit. This study indicates that infants with sickle cell disease, mainly those with SC hemoglobin, may receive prophylactic iron; however, supplementation should be withdrawn after the first blood transfusion.

Keywords: Sickle cell disease, iron deficiency, ferritin, feeding and eating disorders of childhood, newborn screening.

Introdução

A anemia ferropriva é a forma mais grave de carência de ferro e uma das muitas consequências adversas dessa condição. É também a doença nutricional de maior prevalência no mundo1. A deficiência de ferro afeta pessoas de todas as idades, embora alguns grupos etários sejam mais susceptíveis, como crianças e mulheres em idade reprodutiva2. Visando à diminuição da prevalência da anemia ferropriva, o Ministério da Saúde realiza programas de suplementação de ferro voltados para esses grupos3.

A doença falciforme é a doença hereditária monogênica mais comum no mundo, especialmente na população de ascendência africana, sendo considerada um problema de saúde pública no Brasil4. O risco potencial de sobrecarga de ferro poderia justificar a exclusão das crianças com doença falciforme nos programas acima mencionados. No entanto, os mecanismos que estimulam o acúmulo de ferro nos tecidos ainda não foram completamente elucidados, e não parecem ser semelhantes aos dos pacientes com outras anemias hemolíticas hereditárias5. Lactentes com doença falciforme, contudo, apresentam risco de ferropenia devido ao crescimento acelerado próprio da faixa etária6. Fica evidente a escassez de estudos que avaliem sistematicamente a situação nutricional do ferro em lactentes com doença falciforme. A heterogeneidade encontrada nos estudos relatados parece derivar da diversidade dos grupos quanto a idade, sexo e situação transfusional6-14.

Considerando a alta prevalência da anemia ferropriva na população brasileira15-18, o desconhecimento sobre o tema é muito preocupante e levanta a seguinte questão: os lactentes portadores de doença falciforme estariam em risco de deficiência ou sobrecarga de ferro? O objeto deste estudo foi determinar a prevalência da deficiência e da sobrecarga de ferro em crianças com doença falciforme, como primeiro passo para estabelecer recomendações de suplementação profilática de ferro para esse grupo específico de lactentes.

Métodos

Este é um estudo transversal retrospectivo envolvendo 135 lactentes com doença falciforme diagnosticada pelo Programa Estadual de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PETN-MG), seguidos na Fundação Hemominas em Belo Horizonte.

A população do estudo incluiu inicialmente todas as 160 crianças acompanhadas pelo PETN-MG de 1° de janeiro de 2005 a 12 de dezembro de 2006 e referenciadas ao Hemocentro de Belo Horizonte para a sua primeira consulta por volta dos 2 meses de idade. Todas apresentavam perfil hemoglobínico FS ou FSC ao nascimento. Vinte e cinco crianças foram excluídas: 4 foram posteriormente diagnosticadas como portadoras de Sβ+ talassemia, 5 foram transferidas para outros hemocentros, 2 tiveram o sangue coletado em laboratórios privados e 14 não tiveram o sangue coletado a tempo para a pesquisa. Entre os 135 lactentes estudados, 17 [12,6%, intervalo de confiança de 95% (IC95%) 7,0-18,2%] haviam recebido pelo menos uma transfusão de concentrado de hemácias. Nenhuma criança havia recebido ferro profilático.

O peso e altura no momento da coleta de sangue foram transformados em escores z para altura/idade (HAZ), peso/idade (WAZ) e peso/altura (WHZ) e comparados às curvas de referência do Center for Disease Control and Prevention do ano de 2000, pelo programa Epi-Info 3.5.119. Uma régua de medição foi utilizada para aferir a altura, com o lactente na posição supina; uma balança calibrada padrão foi utilizada ao longo de todo o estudo.

O sangue para os exames laboratoriais foi extraído durante a segunda consulta na Fundação Hemominas, por volta do oitavo mês de vida, ou posteriormente, se não foi possível coletar nessa ocasião. A contagem completa das células sanguíneas, assim como o volume corpuscular médio (VCM) e a hemoglobina corpuscular média (HCM) foram determinados por contador automático de células (Coulter T 890); a contagem de reticulócitos, por coloração azul cresil brilhante; os níveis de ferro sérico, capacidade total de ligação do ferro e saturação da transferrina (ST), por método Goodwin modificado, utilizando-se CELM E225, Bioclin Quibasa; e a ferritina sérica, por imunoturbidimetria, utilizando-se Beckman Coulter Access 2. Os valores de referência foram os descritos anteriormente.20,21 Foram consideradas portadoras de deficiência de ferro as crianças com VCM < 70 fl, HCM < 23 pg, ST < 12% e ferritina < 10 µg/L, e portadoras de ferritina elevada as que apresentaram níveis de ferritina acima de 142 µg/L21.

Para a comparação das médias entre as variáveis paramétricas e não paramétricas, foram utilizados os testes t de Student e de Mann-Whitney, respectivamente. A normalidade da distribuição foi testada pelo teste Kolmogorov-Smirnov. As possíveis associações entre variáveis nominais foram avaliadas por meio do teste exato de Fisher. O nível de significância estatística admitido para o erro alfa foi de p < 0.05.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Comitê de Ética da Fundação Hemominas, e foi financiado pelo Ministério da Saúde (FNS:172179850001/06-009).

Resultados

O estudo incluiu 135 lactentes, 66 (48,9%) do sexo masculino e 69 (51,1%) do sexo feminino; 77 com hemoglobinopatia SS (57%) e 58 com hemoglobinopatia SC (43%). A idade variou entre 5,7 e 25,2 meses, mediana 9,9 meses.

Entre as crianças, havia um par de gêmeos, 13 prematuros (idade de nascimento menor ou igual a 37 semanas), e sete crianças foram classificadas como de baixo peso (peso de nascimento menor ou igual a 2.500 g, mas nascidas a termo). Não foi observada diferença de peso (p = 0,93) e idade gestacional (p = 0,71) entre as crianças com hemoglobina (Hb) SS versus Hb SC.

A análise comparativa dos dados antropométricos dessas crianças com os da população de referência demonstrou que apenas o valor de WAZ foi significativamente inferior nas crianças do estudo (p < 0,001). Não foram encontradas diferenças quanto aos valores de WAZ, HAZ e WHZ entre as crianças com perfil hemoglobínico SS e SC (p = 0,93, 0,59, e 0.61, respectivamente).

Os resultados dos exames hematológicos e bioquímicos estão apresentados na Tabela 1; 15/77 lactentes SS versus 2/58 SC receberam hemotransfusão antes dos exames (p = 0,007).

Comparando-se os pacientes transfundidos (n = 17) com os não transfundidos (n = 118), não houve diferença entre os gêneros (p = 0,44) ou os respectivos pesos de nascimento (p = 0,66), embora houvesse uma pequena diferença em relação à idade gestacional (39 versus 40 semanas, respectivamente; p = 0,02). Não foram detectadas diferenças significativas quanto aos níveis de Hb total e Hb fetal e à contagem de leucócitos e plaquetas. A contagem de reticulócitos foi mais alta no grupo transfundido (12,8 versus 4%; p = 0,01). Os indicadores de uma possível deficiência de ferro (VCM, HCM, ferro sérico, ST e ferritina) foram significativamente mais baixos no grupo não transfundido (Tabela 2).

Ao serem analisadas apenas as crianças não transfundidas, não foram observadas diferenças quanto ao gênero (p = 0,71), peso ao nascimento (p = 0,92) ou idade gestacional (p = 0,8) entre as crianças SS (n = 62) e SC (n = 56). Com relação aos exames hematológicos, as crianças SC apresentaram, como esperado, níveis mais elevados de Hb total do que os das crianças SS, além de concentração de Hb fetal e contagem de reticulócitos mais baixas (p < 0,001, Tabela 3). A contagem de leucócitos não foi diferente entre os grupos SS e SC (p = 0,8) e a de plaquetas foi um pouco mais elevada nas crianças SC (p = 0,024). Os indicadores de uma possível deficiência de ferro foram significativamente mais baixos nos lactentes SC (p < 0,001, Tabela 3).

Ao serem analisadas apenas as crianças SS (n = 77), não houve diferença com significância estatística entre o grupo transfundido (n = 15) e o não transfundido (n = 62) quanto ao gênero (p = 0,58), ao peso ao nascimento (p = 0,92) ou à idade gestacional (p = 0,1), nem quanto à Hb total (p = 0,92) ou à contagem de leucócitos (p = 0,094), plaquetas (p = 0,52) e reticulócitos (p = 0,13). Somente a Hb fetal esteve mais elevada no grupo não transfundido (p = 0,042). Com relação aos indicadores de uma possível deficiência de ferro, o grupo não transfundido apresentou valores mais baixos para todas as variáveis, mas a diferença teve significância estatística apenas para ferritina e VCM (p = 0,003 e 0,046, respectivamente).

Apesar do número restrito de crianças SC que receberam transfusão (n = 2), em comparação com o grupo que não recebeu (n = 56), houve diferença estatisticamente significativa quanto aos níveis de ferro sérico (p = 0,029) e ST (p = 0.036), e não significativa quanto aos níveis de VCM, HCM e ferritina, todos mais baixos no grupo não transfundido.

A análise dos lactentes com valores de VCM, HCM, ferritina e ST abaixo dos valores de referência para a idade revelou que foram detectadas: a) 35/134 crianças (26,1%) com VCM < 70 fl; b) 54/134 (40,3%) com HCM < 23 pg; c) 16/133 (12%) com ferritina < 10 µg/L; e d) 20/132 (15,2%) com ST < 12%. A estratificação desses pacientes de acordo com o perfil hemoglobínico revelou uma alta prevalência de valores anormais em lactentes SC quanto aos níveis de VCM (p < 0,001), HCM (p < 0,001) e ST (p = 0.014), mas sem diferença significativa com relação à ferritina (p = 0,11).

Se consideradas como portadoras de ferropenia as crianças que apresentaram valores de VCM ou de HCM abaixo do limite de referência para a idade e, simultaneamente, um dos parâmetros de cinética do ferro (ferritina ou ST) também abaixo do limite de referência, 24 crianças teriam deficiência de ferro (17,8%, IC95% 11,3-24,3%).

Utilizando-se o mesmo critério, os lactentes SC apresentaram uma porcentagem significativamente maior de ferropenia do que os lactentes SS (p = 0,003; Tabela 4). O perfil hemoglobínico (SS ou SC) não esteve associado a prematuridade ou baixo peso ao nascer (p = 0.81). Da mesma forma, não foi encontrada associação entre deficiência de ferro e prematuridade ou baixo peso ao nascer no presente estudo (p = 0,76). Portanto, a associação acima mencionada entre lactentes SC e deficiência de ferro não foi confundida por outras possíveis variáveis.

Entre as 17 crianças que receberam ao menos uma transfusão, apenas uma apresentou deficiência de ferro; entre as 118 que não receberam transfusão, 23 (19,5%) apresentaram deficiência de ferro (p = 0,31).

Considerando como portadoras de ferritina elevada as crianças com concentração de ferritina superior a 142 µg/L21, foram detectados 15/133 casos (11,3%, IC95% 5,9-16,7%; a ferritina não foi determinada em 2 crianças): 13 eram crianças SS e 2 SC (p = 0,024). Entre as crianças que receberam pelo menos uma transfusão, 8/17 (47,1%) tinham ferritina elevada; por outro lado, se consideradas as 116 crianças que não receberam transfusão, 7 (6%) tinham ferritina elevada (p < 0,001).

Discussão

Os programas de triagem neonatal têm sua importância devidamente reconhecida desde sua implantação. No Brasil, a inclusão da triagem para doença falciforme, uma iniciativa pioneira do estado de Minas4, representa um marco histórico importante nos cuidados com os pacientes portadores da doença falciforme e consolidou, de forma inquestionável, a necessidade de maior estudo e compreensão da doença e sua consequências ao longo da vida dos indivíduos acometidos.

Este estudo é relevante, pois não existem, no Brasil, pesquisas sistematizadas anteriores que permitam inferências sobre a situação nutricional do ferro em crianças com doença falciforme. O número de participantes (n = 135) foi superior ao da maioria dos estudos realizados em outros países com objetivos semelhantes6-11,13,14. Todas as crianças foram diagnosticadas pelo PETN-MG, foram acompanhadas em um único cento e realizaram os exames em um único laboratório, o que possibilitou uma uniformidade da amostra. Por se tratar de estudo retrospectivo, não foi possível avaliar os hábitos alimentares dos participantes, devido à heterogeneidade dos dados previamente coletados. A maioria dos outros estudos também não avaliou hábitos alimentares6,10-12.

As crianças com doença falciforme apresentam, a partir dos 2 anos de idade, um retardo no crescimento somático que afeta mais o peso do que a altura e que se acentua progressivamente até os 18 anos22. Há estudos demonstrando diferenças entre as crianças SS e as SC, com menor déficit para as últimas, o que pode ser explicado pela maior gravidade clínica das primeiras22. No presente estudo, a maioria das crianças com doença falciforme nasceu a termo, com peso adequado para a idade gestacional. Elas apresentaram déficit de peso, mas não de altura, quando comparadas à população padrão. Não foram observadas diferenças significativas nos índices antropométricos quando os grupos foram separados de acordo com a hemoglobinopatia (SS versus SC). Estudos brasileiros que avaliaram o crescimento e a situação nutricional de crianças com doença falciforme encontraram déficits de peso e altura ao longo do tempo10,23, mas as crianças em geral eram mais velhas do que as do nosso estudo.

Pacientes com doença falciforme frequentemente necessitam de hemotransfusão para tratar eventos clínicos agudos. O pequeno número de crianças que haviam recebido transfusão no presente estudo (12,5%) pode com certeza ser explicado pela pouca idade das crianças e pelas melhorias nos cuidados e no monitoramento em nosso Centro Hematológico. Cada paciente recebe um "cartão do Hemominas", que registra o nível basal de Hb e outros dados clínicos. Consequentemente, a indicação para transfusão se restringe àquelas estritamente necessárias e se baseia na correlação entre as manifestações clínicas e os exames laboratoriais, e não apenas nos resultados desses exames.

Há um grande debate sobre qual seria o método mais adequado para o diagnóstico da deficiência de ferro em indivíduos com doença falciforme, devido a características inerentes à doença. A maioria dos exames utilizados atualmente para o diagnóstico apresenta dificuldades na sua interpretação, seja de forma combinada ou isolada. A presença de microcitose pode ser resultado de alterações genéticas como a α talassemia, que afeta de 30 a 35% com perfil hemoglobínico S7,15. Em nosso Centro Hematológico, 30% das crianças SS apresentaram deleção α3.724.

O ferro sérico tem variações circadianas e depende das condições alimentares. Por outro lado, um aumento na capacidade de ligação do ferro e uma diminuição na ST parecem ser bons indicadores de ferropenia14,25. A ferritina sérica baixa também é um bom indicador7, mas, mesmo se a ferritina estiver dentro da faixa normal, a deficiência de ferro não pode ser descartada, pois processos inflamatórios e infecciosos, eventos comuns na doença falciforme, podem elevar a concentração de ferritina acima dos valores de referência14. A avaliação do ferro medular, um método invasivo, pode não ser confiável na avaliação do ferro corporal26. A protoporfirina livre eritrocitária tem valor limitado no diagnóstico de ferropenia em pacientes com doença falciforme, pois os níveis se elevam devido à25. De forma análoga, a dosagem dos receptores de transferrina sérica, útil em pacientes com suspeita de anemia ferropriva, parece não ser um método eficaz em pacientes com doença falciforme. Um aumento de três a quatro vezes em relação aos valores normais pode estar presente em situações de ferropenia em pacientes sem hemoglobinopatia. No entanto, em pacientes com doença falciforme, seu aumento é um indicativo de exacerbação da hemólise e de atividade eritropoietica, obscurecendo, assim, uma eventual concomitância da ferropenia14.

O presente estudo sugere que 17,8% das crianças tinham deficiência de ferro, quando utilizado um critério combinado de VCM ou HCM baixo e a ocorrência simultânea de ferritina ou ST baixa. Outros estudos encontraram uma prevalência de 8,5 a 100%6-10,12-14, dependendo da idade das crianças, da definição de ferropenia e da situação econômica do país onde o estudo foi realizado. Na Jamaica, um estudo avaliou 141 paciente menores de 5 anos (121 com perfil SS e 20 SC) e encontrou anemia ferropriva em 8,5% das crianças12. Semelhante aos nossos resultados, quando os grupos foram separados, as crianças SC apresentaram uma maior prevalência de ferropenia (42%) do que as crianças SS (5,8%). O único estudo que não foi capaz de encontrar casos de ferropenia foi um estudo norte-americano que avaliou 104 crianças SS com idade média de 7,3 anos, muito maior do que a do nosso estudo. Os achados foram atribuídos à melhoria nas condições alimentares da população afro-americana ao longo dos anos11.

Um recente revisão de estudos brasileiros demonstrou uma prevalência mediana de anemia de 53% em crianças abaixo de 5 anos de idade, podendo ser mais elevada nos lactentes15. No presente estudo, todas as crianças eram menores de 2 anos, a idade com o maior risco para o desenvolvimento da ferropenia. Embora portadores de anemia hemolítica crônica, esses pacientes estão submetidos às mesmas dificuldades nutricionais que as outras crianças brasileiras da mesma idade. Na presença de ferropenia, pode haver piora da anemia nessas crianças, e há a ameaça de uma possível sobrecarga do sistema cardiovascular, o que leva à piora da oxigenação dos tecidos e a prejuízos na realização de atividades e no crescimento22.

As consequências negativas da anemia no desenvolvimento neurocognitivo de longo prazo são bastante conhecidas. A maioria dos estudos tratando de crianças com deficiência de ferro encontraram uma associação entre deficiência de ferro e pior desenvolvimento motor e cognitivo, além de problemas de comportamento27,28. Crianças com doença falciforme têm um risco maior de apresentar dificuldades de aprendizagem do que seus irmãos ou controles sem a doença, provavelmente devido a derrames cerebrais, silenciosos ou não, causados pelos episódios recorrentes de vaso-oclusão cerebral característicos da doença. Outros mecanismos podem estar envolvidos, tais como a ocorrência de anemia crônica e a piora na função pulmonar, que levariam à hipóxia tecidual crônica e suas consequências29,30.

Dado o impacto da anemia ferropriva no desenvolvimento somático e cognitivo e a ausência de evidências que contraindiquem a suplementação de ferro em lactentes com doença falciforme, sugere-se que sempre seja realizada uma avaliação individualizada. Por outro lado, considerando o pequeno número de crianças com níveis elevados de ferritina no presente estudo e a forte associação da ferritina com hemotransfusões, pode-se inferir que o uso de farinhas fortificadas e a suplementação de ferro oferece poucos riscos para lactentes com doença falciforme, principalmente para aqueles com doença SC. Observou-se que muitos desses lactentes apresentavam deficiência de ferro em nosso estudo. Acreditamos que seria inadequado impedir a suplementação de ferro por medo de acúmulo de ferro, pois, em uma condição já complexa, que com frequência limita o desenvolvimento adequado, seria insensato acrescentar mais um fator agravante.

As limitações deste estudo são: a) seu desenho transversal, que impossibilita uma avaliação longitudinal dos dados laboratoriais das crianças com doença falciforme durante os três primeiros anos de vida; b) a coleta retrospectiva dos dados, que impossibilita uma avaliação laboratorial homogênea em idades pré-determinadas. Um estudo prospectivo longitudinal está sendo concebido para comprovar se essas conclusões realmente se aplicam às crianças com doença falciforme; c) a ausência de um grupo controle sem doença falciforme. Um grupo desse tipo incrementaria o estudo, mas sua ausência não impede que as conclusões sejam consideradas válidas, devido ao fato de que a prevalência de anemia em lactentes brasileiros é consistentemente muito elevada em todo o país, como referido anteriormente15,16,18.

Concluindo, lactentes com doença falciforme, principalmente aqueles com perfil SC, podem apresentar déficit de ferro. A suplementação com ferro pode ser administrada e posteriormente suspensa após a primeira hemotransfusão. Os exames de cinética do ferro são úteis nos casos duvidosos e devem ser interpretados com base nos dados clínicos e hematológicos. São necessários estudos longitudinais para confirmar essas recomendações.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer ao Ministério da Saúde pelo apoio financeiro, ao Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Universidade Federal de Minas Gerais (Nupad-UFMG) e à Fundação Hemominas pelo apoio logístico que forneceram para este estudo, e aos estudantes de medicina Paola G. Giostri, Daniel C. Discacciati, Filipe C. R. de Souza e Maria A. G. Rocha pelas suas contribuições.

Artigo submetido em 29.01.11, aceito em 25.05.11

Apoio financeiro: Ministério da Saúde, Brasil.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Como citar este artigo: Rodrigues PC, Norton RC, Murao M, Januario JN, Viana MB. Iron deficiency in Brazilian infants with sickle cell disease. J Pediatr (Rio J). 2011;87(5):405-11.

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  • Correspondência:

    Marcos Borato Viana
    Departamento de Pediatria da UFMG
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      29 Jan 2011
    • Aceito
      25 Maio 2011
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